terça-feira, 5 de julho de 2022

A Andorinha Mensageira

Uma andorinha, desde Lisboa, cruza o oceano atlântico rumo ao Brasil. Pousa sobre um fio de iluminação publica na esquina do Colégio Pio XI, de frente para o Bar Kaburas. Desde o seu assento percebe a cena naquele pequeno boteco de esquina. O salão apertado está apinhado de gente de várias gerações, inclusive, de muitos que já nem se encontram mais nesse plano. 


O pequeno salão tomava dimensões bem maiores na visão da andorinha e agora mais parecia a Gafieira Elite. A multidão se apertava enquanto a banda dos Bílio botava todo mundo pra dançar. O chefe de Cerimónias, o Sr Kaburas, se vestia elegantemente e se diferenciava dos demais pela longa cartola. 


Parecia que já não cabia mais gente, mas chegava mais gente a toda hora. No balcão o movimento dos copos era frenético e o teor alcoólico subia quando se ouviram os sinos da matriz a informar que a missa começava. Ninguém queria saber de missa naquele dia de festa.


A nata da sociedade estava presente, mas também os excluídos e descamisados. Ali não se discriminava ninguém e até umas senhoras de pencas adentraram e foram saudadas com reverencia. O pessoal do Buru de fazia representar, assim como os do Matias e São Benedito.


O padre largou a igreja vazia e também foi comemorar. Tinha gente da Altamira e do Canadá; do Barro Branco e das Cajazeiras; do Escondido e do Sujapé; tinha gente até de Tuntum e Grajaú.


O Sr Kaburas foi convidado a cortar um bolo e apagar 40 velas enquanto se cantava o “parabéns”.


E a andorinha voltou para Lisboa ferida por um tiro de espingarda “por fora” que lhe foi dado por tal “capitão de meia-tigela” que odeia índios, pobres e tudo o que seja de natureza. 


E grande foi a minha dor a andorinha ferida na minha sacada. Ela estava assustada, mas conseguiu contar-me que estivera numa cidade que era pura poesia, bem no meio do Maranhão e que se chamava Barra do Corda. E contou-me tanta coisa que nem caberia nestas poucas linhas. 


A andorinha agora voa sobre o Tejo. Eu também

Justino, o Poeta Feio

Ele canta em verso e prosa a sua feiura. Mas o que mais me chamou a atenção na figura de Justino Morais não foi a sua estampa nas fotos postadas nas redes sociais, mas a sua ousadia naquilo que escreve sem medo e vergonha da opinião alheia. Eu não o conheço pessoalmente, mas pelas fotos ouso dizer que Justino nem feio é. Não que seja algum Marlos Brando barracordense, de jeito nenhum. Mas, nas nossas conversas nas redes posso garantir tratar-se de pessoa gentil e educada.


Justino Morais é louco para muitos. Louco porque decidiu escrever sobre assunto a que todos amamos. Ele não mede palavras, não floreia, não esconde nada quando descreve o sexo em sua literatura a que muitos denominam imoral e a que eu vejo como pornográfica. A pornografia, a velha e boa pornografia que todos levamos. Mesmo aquelas senhoras mais pudicas ou aqueles homens que nos passam imagem de santos.


Ao descrever suas peripécias, não sei se apenas imaginadas, causa espanto a forma nua e crua como a que se refere às genitálias e como descreve atos sexuais e travessuras que podem ocorrer em qualquer rua, beco ou esquina da cidade. Nada de metáforas e as coisas são chamadas pelos nomes que levam nos baixios, nas currutelas, nos cabarés.


A hipocrisia parece não fazer parte da sua literatura escrachadamente pornografica. Há quem o bloqueie, quem o despreze. Eu sei que Justino não é nenhum anjo pornográfico como denominam a Nelson Rodrigues. E eu que nem anjo ou demónio sou, pleno da minha carne, com espanto, vos afirmo que gosto da literatura pornografica e  imoral de Justino Morais.


Acho que a sua feiura cantada e alardeada por si mesmo é mera estratégia para receber o colo de mulheres com as quais ele e todo mundo sonha. Ainda bem que estamos no século XXI e que as fogueiras da Santa Inquisição já foram apagada. Senão Justino já estaria a arder numa fogueira ao lado da minha. 


segunda-feira, 20 de junho de 2022

Prakash, o Indu

Prakash contou-me sua história resumidamenteenquanto me conduzia, dirigindo o seu Uber. Nascido em Moçambique, filho de pais indianos. O pai chegara àquele país, oriundo da Índia, ainda criança. Seu pai casou-se com uma moça moçambicana e, dentre os filhos, tiveram Prakash. Quando Prakash tinha menos de 2 anos, a Índia fincou bandeira nas colônias portuguesas, caso de Goa. Portugal, na pessoa do ditador Salazar, decidiu expulsar de seus territórios, inclusive Moçambique, todos os residentes indianos.

 

A Índia enviou navios para recolher seus nacionais em Portugal e nas colônias. O pai de Prakash se viu obrigado a embarcar sozinho, sem a família, rumo ao seu desconhecido país natal.  Soube-se, cerca de 2 anos depois da sua partida, que morrera de tristeza. O pai dele, de indiano, só tinha a cara. Sequer falava a língua, não praticava a religião nem reconhecia os próprios parentes. Ficou sozinho em meio àmultidão, sem qualquer assistência do governo ou de quem quer que fosse.

 

Prakash viu Moçambique se tornar independente de Portugal. Já casado e com três filhas, desembarcou em Lisboa, tempos idos, e aqui fez a vida e sustenta a família. As três filhas estão casadas com maridos de nacionalidades diferentes. Um canadiense, um chinês e um russo.

 

Prakash diz trazer no peito o peso da mágoa em relação à Índia, país onde jamais pretende pôr os pés. Com razão, considera aquele país responsável pelo seu drama familiar e pela morte do seu pai.

 

Ainda bem que as coisas mudaram, diria algum leitor, menos informadoque não está a acompanhar as atrocidades recém-cometidas na Ucrânia. Famílias inteiras sendo separadas e mães assistindo a seus filhos serem obrigados a entrar em ônibus, rumo à Rússia, mesmo que algemados. Esse, aliásé o menor dos dramas.

 

Temos de encarar a dramática realidade que se nos impõem os presidentes, eleitos ou não, ignorantes, negacionistas, antidemocráticose cruéis, os quais não pensam duas vezes antes de destruir vidas e famílias . Vejam as imagens de Mariupol e de Donetsky.

 

Pôres de Sol

Vejo pôres do sol desde o mirante do Calvário, em fotos postadas por Álvaro Braga, por Jorge Abreu e por tantos outros encantados com as cores da nossa boreal brasílica. Um Corda e um Mearim prateados num horizonte irregular e bucólico. 

 

Depois de tanta luta, regada a muito suor lágrimasde noites sem dormirem plantões infernais de trabalho duro e arriscado, vivo o meu momento a ver pôres do sol, sem culpa. 

 

Já trabalhei demais na vida. Desde que me percebi por gente. Na infância dentro da roça a derrubar, encoivarar roçado, plantar e colher tudo do que precisávamos para a sobrevivência, até na olaria, debaixo de sol a pino, dia após dia. 

 

Migrei para Brasília, adolescente ainda, a deixar para trás todo o meu mundo e família. Apavorado ante a minha premonição de sofrimentos na capital federal, ali,paguei um bocado dos meus pecados.

 

Eu me via, num futuro distante, aposentado e ainda com saúde, a viver aventuras em viagens mundo afora. Eu fui impregnando o meu DNA com meus desejos e sonhos e galgando os degraus da realidade com muita dificuldade. Muitos erros e alguns acertosenquanto sentia-me abençoado pelo Universo. A existência, mesmo com todas suas dores, sempre me foi verdadeiro deslumbre.

 

“Deus ajuda quem cedo madruga”, diz o sábio provérbio popular. Eu precisava de saúdeforça, inteligênciacoragem, disciplina e determinação. Acreditava e acredito no meu potencial, mesmo que com verdadeiras crateras de carência escolar, bem como de vários outros itens de uma relação de valores que sempre podem facilitar a trajetória até o objetivo.

 

 estou a mostrar-lhes pôres do sol, em tons tão vermelho-alaranjados que até parecem pinturas e que me remontam ao Morro do Calvário. A magia do pôr-do-sol em Oia, Santorini, tão inesquecível, é a mesma do Calvário. 

 

Qualquer dia desses, de propósito, vá ver um pôr do sol desde o Calvário equando perceber o privilégio da existência e as cores boreais que estão dentro de si mesmo, agradeça... e peça por si e pelos demais. 

 

 

A Andorinha Ferida

As fitinhas do Senhor do Bonfim tremulavam nas portas do meu armário, quando ouvi um barulhinho não identificado, como se fora de um pequeno roedor a destruir o meu baú. 

 

 Abri a porta da varanda e lá, entre os vasos e plantas, uma andorinha, preta como carvão, se debatia. Uma das asas estava visivelmente machucada e o sangue podia ser visto em pequeninas poças no chão. Meu coração se compadeceu, como se eu pudesse sentir toda a sua dor e desespero. Recolhi-a com cuidado e a protegi entre minhas mãos, sentindo seu pequeno coração quase que a sair do peito. 

 

 -“Pequena andorinha… quantas vezes estive no teu lugar? ” Pensei, enquanto a colocava numa cesta de frutas e a cobria com um tapete.

 

Eu já estava mesmo de saída, para vacinar o meu cão, o Karl. Levei comigo a andorinha  para que fosse lá tratada ou para que os profissionais me fornecessem o número telefônico do SOS ANIMAIS, que aqui em Portugal existe e funciona.

 

Eu não sabia, mas era o feriado do Dia de Portugal. Voltava então para casa com a andorinha ferida. Eu iria localizar o SOS ANIMAIS e aguardaria pelo socorro. Não deu tempo. No meio do caminho da volta, a andorinha conseguiu sair da cesta e, quando percebi, ela voava baixo pela rua. Eu torci para que ela não batesse num imenso musgo ou nos prédios ali ao lado. Ela ziguezagueou e levantou voo, rumo ao céu azul, desaparecendo. 

 

Tantas vezes fui andorinha ferida, cansada, sem poder levantar voo. Não foram poucas as vezes que o Universo me mandou seus anjos a me socorrer. Quando não me apareceram  anjos, veio-me a força de superação . 

 

Quantos agora estão feridos, com fome, com frio, doentes? Enquanto os desprezamos, praticamos a nossa aparofobia. Qual o retorno, segundo as alegadas leis espirituais, a quem pratica tanto desprezo? E Jesus, o “vosso” mestre, como agiria? Um pão, um cobertor... ou de um prato de sopa, todos deveriam dispor. Não esperem por agradecimentos. Quem pratica o bem, à espera de gratidão, melhor que não o faça, porque o bem não está a fazer.

 

A andorinha deve estar agora a voar sobre o Tejo. Eu também!

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

O Grito da Feminazi


Sentada à minha frente, cara a cara, a doce mulher, conterrânea da minha cidade natal,
Barra do Corda, informa-me estar cansada de amar.

- É que quando amo, perco as estribeiras. Cansei! Jamais amarei novamente!
Afirmou, taxativa e categoricamente.

No livro “IMPROPÉRIOS”, ela não poupa ninguém e chega até assustar. É um impacto dos grandes e dos bons ler seu livro. A doce mulher vira guerrilheira, com um fuzil entre os dedos.

homens
“melhor não tê-los
mas se não os temos”
como fodê-los?”

É assim mesmo, com essa coragem toda e sem papas na língua, com dedo em riste contra a hipocrisia e o machismo, que ela enche as páginas com sua poesia.

Ela é a favor do aborto e se declara, em cama, a outras mulheres, sem sequer ser fancha. Grita contra estupros; contra os assassinatos de mulheres, de membros da comunidade lgbtquia+, de negros e índios e de muitos mais.

Com acidez irônica fala de uma certa ministra dos direitos humanos, aquela que tem visões com homem na goiabeira e que 

quer garantir
igualmente
que o estuprador 
possa dar carinho
ao filhinho

Faço minhas as palavras da feminazi.

- Credo! Que horror! Imoral! - Dirão os que creem naquele livro sagrado que dizem seguir, sem que jamais o tenham lido. Se o leram, todavia, como explicar a santidade oriunda da boca do Deus, exposta em Ezequiel 23:20 ?

Como toda figura inteligente e literata, é excêntrica, e tanto, como não poderia deixar de ser. Ter à mesa a sua companhia é privilégio para poucos e, não fora a mediação diplomática de Guilherme Martins, jamais a teria conhecido.

Não preciso mesmo o seu nome citar, porque sequer lhe pedi permissão para fazê- lo. Cito seu livro e espero que não a tenha desagradado.

Quem ainda não teve contato com sua escrita não sabe o que está a perder. Impropérios é para ser lido como quem toma uma talagada de cachaça, de boa cachaça, mas que sente a queimação do álcool goela abaixo.

Vivas à feminazi!
Grite feminazi! Grite! Eu gritarei junto contigo!

Do Guará à Paulista


A minha ultima viagem ao Brasil foi intensa e cheia de emoções. Não caberia nesta crónica, tudo o que vivi. Estive em mesas de bares, com pessoas inusitadas e cheias de curiosidade. Não foi possível me fazer presente em alguns encontros solicitados e peço desculpas pelas faltas.


Sempre que volto ao Brasil, o faço com o intuito de ver minha família, em especial minha mãe. Entretanto, desta vez, não pude fugir ou evitar o bom convívio com meus conterrâneos. 


No Bar do Seu Juca, no Guará, DF, para um encontro animadíssimo com barracordense. Sergio Nava, Rubem Milhomem, Ednar Lira, Guilherme Martins, Raquel Milhomem,  Celio Maciel, Marcio Melo, Magali, e até Heider Moraes. Tantas mais pessoas à mesa que se eu as fosse citar, não caberia nessa crónica. Aquele encontro virou uma festa que mais parecia um barracão de escola de samba.


Guilherme Martins fe a diplomacia no sentido de encontrar-me com Luciana Martins, a dona da pena mais poderosa de Barra do Corda e que, entre seus dedos, vira metralhadora contra a opressão de todos os géneros. Eu estava interessado em conhecê-la, claro. Mas, eu queria mesmo era seu livro autografado. Ela já me esperava quando cheguei e, claro, me constrangi um pouco ante minha falta de cavalheirismo. Uma conversa das mais agradáveis com uma mulher doce e suave que foi abrilhantada por Rubem Milhomem que chegou de surpresa. 


Já em São Paulo a coisa tomou outra dimensão. Aconteceu na Avenida Paulista e em dia de domingo quando essa vira parque entupido de gente. Gisele Lira, sobrinha de Lu Mota, se apresentava em grande estilo como cantora que é. Lu Mota saiu de Birigui, a quase 600 kms de distancia e o fez apenas para me ver e conhecer. Emoções turbinavam-me o juízo. Muita arte e gente jovem e bonita até fui anunciado ao microfone e houve o chamado para uma selfie com cerca de 100 pessoas que quase não cabiam na foto.


Desde Barra do Corda, os rogos pela minha presença. Desta vez ainda não, respondia eu. Mas, estarei convosco, na capelinha do Sujapé, logo logo.


*Esta crónica foi originalmente publicada na Revista Virtual Turma da Barra a quem muito agradecemos.






segunda-feira, 18 de abril de 2022

Bacanal de Carnaval

Comi todo mundo

Todo mundo me comeu

Todo mundo se comeu

Ninguém era dono de ninguém 

Era carnaval

Era bacanal

Nem era real

Era mesmo só poesia 

Banal

E era carne fresca cheirando a sangue

E sei que também fui servido naquela mesa farta

Não sei se meu sabor era doce ou amargo

Mas me saborearam

E lamberam-se beiços e dedos

E nesse lambe-lambe

Lambi cavidades e protuberâncias mil

Sem nojo

Sem repulsa

Todo mundo se deu bem 

Voltei para casa farto 

Quase a explodir 

Fui glutão 

Pierrôs e Colombinas se empanturravam

E me provaram o sabor

E lhes provei seus sabores

Para trás apenas o rastro branco dos empoados

Nas velhas ruas de ladeiras íngremes 

As janelas estavam fechadas

Todos estavam no bloco

Era carnaval

O carnaval nosso de cada dia nos dai hoje

Pelos séculos dos séculos 

Amém!

E veio a quarta-feira de cinzas

Na matriz a hipocrisia escancarada nas caras surradas

Pedaços de de pó ainda caiam da pele sem banho

Marcada pelos puxões e chupões 

Deus perdoai-nos

Mas a carne é que vale

Enquanto vivo, vivo na carne

Enquanto carne, estamos vivos

Aquele padre ainda essa noite passada

Foi colombina

Era carnaval 

Maria é Mario

  

POLITEAMA não é a maior casa de espetáculos de Lisboa. O nome da casa me soou estranho aos ouvidos, mas foi ela que adentrei para a assistir à exibição artística que, pelo nome, torci o nariz. “Espero por ti no POLITEAMA” é título estranho para um espetáculo, penso eu. Com capacidade para 2.300 espectadores, distribuídos por três pisos, a sala não é a mais requintada da cidade, mas, mesmo assim, é verdadeiro espanto. Aconchegante e luxuosa até o limite do bom gosto, a sala de shows foi inaugurada em 1913.

Espero por Ti no POLITEAMA é riquíssima apresentação que conta com cantores-bailarinos tão multiversáteis quanto o próprio espetáculo. Muitas plumas e paetês envolvem a cena num delírio que mostra duas Lisboas, a velha e a contemporânea. Satírica e de humor ácido, com texto rico de críticas à atualidade política de Portugal e até do Brasil. O texto ficcional informa-nos sobre os maiores escroques da atualidade. Ouvem-se os nomes de Bolsonaro (cruz credo), como fascista e de Lula (cruz credo), como o maior ladrão do planeta, enquanto outro ladrão menor, Sócrates, ex-primeiro-ministro português, lidera a cena. Quem informa que “só um filho da pata é que pode ser fascista” é a estátua do Padre Viera, ora pois, pois!

Do teto descem e sobem estruturas gigantescas, bem como o próprio deus Mercúrio. De pequenas aberturas no piso, a todo instante, surgiam infinitas personagens, como, por exemplo, uma cantora de fado ou um bando, ao estilo La Casa de Papel, que decide assaltar a plateia, depois de descobrir que seus cofres alvos em Portugal já haviam sido esvaziados pelos corruptos, os nacionais e, inclusive, os do Brasil.

Um ator franzino, com uma voz que vai desde o agudo de Montserrat Caballé ao grave de Pavarotti, canta o famoso fado “Nem às paredes confesso”, só que em ritmos, versões e línguas diferentes. Começa num legítimo tango portenho e passeia pela ópera italiana; vai à belle musique francése e entra em frenesi num samba brasileiro à la Carmen Miranda, que é pura magia.

Engana-se quem pensa que num espetáculo de humor escancarado não cabe o drama. Após muitas gargalhadas e justo depois de um providencial ataque de machismo de uma personagem, entra no palco, sem mais nem menos, como que numa interrupção abrupta e sem nexo, uma pessoa que até agora não sei se ator travestidx de homem ou se mulher travestidx de homem. Com o dedo em riste e no nariz do preconceituoso, arranca aplausos da plateia, enquanto expõe todo o seu drama.

- Eu nasci Maria de Fátima Silva. Hoje sou Mário. Informa-nos aquelx personagem.

- Se fosses minha filha, eu te teria educado para seres uma pessoa normal. Rebumba aos bofes o machão.

- Mãe, tu não tiveste uma filha. Eu sempre fui menino.

E passa a narrar a sua falta de identificação ante o espelho, quando ainda usava vestidos e lhe surgiram os peitos na adolescência.


 A plateia, hipnotizada, aplaude ensurdecedoramente.

- Eu era diferente, mas queria viver. Não me afastes por ser diferente. Dentro de mim sou eu. Não é fácil viver sem mentir.

São as frases de impacto do texto, que recita aos soluços, sob as lágrimas.

A usar um par de botinas por engraxar, calças jeans surradas e frouxas, uma jaqueta preta do tipo motoqueiro, com um queixo de fazer inveja a Stallone, solta a voz num solo triste, entre soluços e lágrimas, enquanto a plateia estupefata, boquiaberta, se solidariza com o drama denso do transexual e aplaude, de pé, aquelx que, até agora, não sei o gênero que carrega fora do palco.

Bichas, travestis e dragqueens estão para os espetáculo teatral como àgua para o sedento. São elas, as drags, que fazem um duelo entre as fadistas deste Portugal. Uma delas, com peso muito acima da média, rouba a cena num vestido vermelho Benfica, não sei se de seda ou de cetim, e trepida enquanto engata notas mais longas, fazendo corpo e voz parecerem uma radiola enganchada. O riso é certo e largo.

O mesmo ator fora de forma se insere no contexto cenográfico como mestre de cerimônias, é quem conduz o espetáculo. A cortina sobe e desce várias vezes, enquanto os aplausos perduram.

Voltei para casa em êxtase e a pensar que bom seria ter a mesma sala cheia de conterrâneos, muitos deles ruborizados com as cenas mais picantes, outros impressionados por como num palco tão pequeno se pôde botar tanta coisa. Outros levariam para suas casas as lembranças febris e eróticas das belíssimas pernas e bundas das bailarinas e seus chapéus emplumados.

E em Barra do Corda, nossa cidade com mais de 100 mil habitantes?

Claro que temos um teatro a apresentar espetáculos com regularidade, com o seu corpo de baile de atorxs pagos pelo município, não é verdade?

Não valoriza a arte e o artista quem nada entende de sociedade e de cultura.

Em Portugal, as salas de teatro, cinema e museus estão a competir entre si, muitos deles na mesma rua. Não há como comparar as duas realidades, a lisboeta com a barra-cordense, diriam alguns. Seria injusto, eu concordaria. Por isso é que aceito que Barra do Corda, com seus mais de 100 mil habitantes, tenha apenas um teatro. A propósito, qual é mesmo o nome do teatro de Barra do Corda?


 

sábado, 9 de abril de 2022

As Libélulas do Flores

 

Quando era eu apenas um menino que acompanhava minha mãe até o rio Flores, sempre aos sábados, onde se lavavam roupas e pescavam-se peixes por meio da prática do “tingui”, o que mais me impressionava eram as libélulas, a voar num balé mágico por entre os juncos.


Ninguém sente nojo de libélulas como se sente de moscas e de outros insetos. As libélulas são limpas, ao menos eu acho. Há graciosidade nos seus corpos frágeis a portar asas enormes e transparentes. Algumas delas, multicoloridas, são de hipnotizar.

Eu as observava por horas e, como menino danado que era, por vezes, com muita delicadeza, capturava-as com minhas mãos. Elas se debatiam assustadas até que eu, de novo, as libertasse. O interessante é que somente me dei conta de que as libélulas são fadas, depois de adulto. Enquanto me lembrava, com saudade, daqueles momentos vividos às margens do rio Flores, passei a ver libélulas e elas me chegavam de uma memória muito distante, mas com cores e vivacidade, quase como se pudessem transmudar para a realidade presente.

Peço perdão a elas por tê-las aprisionado entre meus dedos infantis e por não as ter percebido como fadas, já naquele momento, mas eu nem sequer sabia o que eram fadas.

Acho realmente que as libélulas, de tão encantadoras e mágicas, deveriam pertencer a uma outra classe animal que não a dos insetos. Sequer estou a dizer que sou mais importante do que um inseto, do ponto de vista da natureza. De tanto que me encantavam aqueles seres bailarinos, entretanto, desconfio de que as libélulas sejam mesmo, em verdade, fadas.

Se as libélulas são fadas ou não, deixo com a fantasia de cada leitor. Para mim, que virei criança ao escrever esta crônica, elas não são insetos e, se posso voltar a ser menino danado, enquanto me lembro das libélulas do Flores, por que não posso vê-las como fadas, já que estas são seres que habitam o mesmo reino fantástico ?

Em minhas fantasias, aliás, vejo o meu leitor. Um dia, escrevo-lhes sobre estas e outras...

Sol de Prata

Quando adentramos a tradicional A Padaria Portuguesa, na Praça Marquês de Pombal, em Lisboa, percebi um nevoeiro. Nevoeiro nesta época de primavera, por aqui, é coisa do quotidiano. Percebi, entretanto, uma atmosfera um tanto quanto diferente.


- Um dia o sol vai se apagar e tudo vai ser escuridão - Ouvia eu quando ainda criança, no Centro Velho dos Protestantes. A profecia apocalíptica estava na bíblia, dizia-se.

A Padaria Portuguesa é uma rede de estabelecimentos de panificação em que pão quase nem se vende. Tratam de vender doces; salgados variados; sandes, que são a versão lusa do clássico sandwich; saladas; pratos rápidos e prontos. Tudo a preços mais ou menos populares. A padaria está sempre cheia de clientes a comer e a bebericar em suas mesas. O ambiente é até elegante, e a vista dos seus salões, em geral, dá para a rua. Na da Marquês de Pombal não é diferente, entretanto, os vidros pelos quais se veem a cena exterior impedem a clareza.

Quando saímos do referido ambiente, cerca de uma hora depois, dei de cara com uma cena alaranjada que mais parecia um filme dos anos 60. Havia, então, uma paralisação. Parecia que não se viam mais pessoas nem mesmo o trânsito intenso daquele local.

- Isso é um nevoeiro? - Perguntou-me o amigo brasiliense, a quem eu mostrava a cidade.

- O que é aquilo? - Indagou-me enquanto apontava para uma esfera, que mais parecia uma bandeja de aço inox no céu.

sol podia ser encarado  como se encara a lua, sem qualquer proteção aos olhos. Estava ali, muito perto do chão, dava- nos a falsa impressão, e nós nos perguntávamos, várias vezes, se era mesmo o sol ou um drone.

As fotos e os vídeos que fizemos estavam todos numa cor alaranjada, que mais pareciam resultado de um filtro qualquer.

Ao chegarmos a casa, na TV, todos os telejornais davam a notícia de que uma nuvem depoluição arenosa, vinda do deserto do Saara, a quase 5 mil quilômetros daqui, pairava sobre Lisboa. A recomendação era de que todos ficassem em casa, de portas e janelas trancadas.

Já agora, enquanto lhes escrevo esta crônica, estamos sob nova nuvem de areia, também oriunda do mesmo deserto