segunda-feira, 18 de abril de 2022

Maria é Mario

  

POLITEAMA não é a maior casa de espetáculos de Lisboa. O nome da casa me soou estranho aos ouvidos, mas foi ela que adentrei para a assistir à exibição artística que, pelo nome, torci o nariz. “Espero por ti no POLITEAMA” é título estranho para um espetáculo, penso eu. Com capacidade para 2.300 espectadores, distribuídos por três pisos, a sala não é a mais requintada da cidade, mas, mesmo assim, é verdadeiro espanto. Aconchegante e luxuosa até o limite do bom gosto, a sala de shows foi inaugurada em 1913.

Espero por Ti no POLITEAMA é riquíssima apresentação que conta com cantores-bailarinos tão multiversáteis quanto o próprio espetáculo. Muitas plumas e paetês envolvem a cena num delírio que mostra duas Lisboas, a velha e a contemporânea. Satírica e de humor ácido, com texto rico de críticas à atualidade política de Portugal e até do Brasil. O texto ficcional informa-nos sobre os maiores escroques da atualidade. Ouvem-se os nomes de Bolsonaro (cruz credo), como fascista e de Lula (cruz credo), como o maior ladrão do planeta, enquanto outro ladrão menor, Sócrates, ex-primeiro-ministro português, lidera a cena. Quem informa que “só um filho da pata é que pode ser fascista” é a estátua do Padre Viera, ora pois, pois!

Do teto descem e sobem estruturas gigantescas, bem como o próprio deus Mercúrio. De pequenas aberturas no piso, a todo instante, surgiam infinitas personagens, como, por exemplo, uma cantora de fado ou um bando, ao estilo La Casa de Papel, que decide assaltar a plateia, depois de descobrir que seus cofres alvos em Portugal já haviam sido esvaziados pelos corruptos, os nacionais e, inclusive, os do Brasil.

Um ator franzino, com uma voz que vai desde o agudo de Montserrat Caballé ao grave de Pavarotti, canta o famoso fado “Nem às paredes confesso”, só que em ritmos, versões e línguas diferentes. Começa num legítimo tango portenho e passeia pela ópera italiana; vai à belle musique francése e entra em frenesi num samba brasileiro à la Carmen Miranda, que é pura magia.

Engana-se quem pensa que num espetáculo de humor escancarado não cabe o drama. Após muitas gargalhadas e justo depois de um providencial ataque de machismo de uma personagem, entra no palco, sem mais nem menos, como que numa interrupção abrupta e sem nexo, uma pessoa que até agora não sei se ator travestidx de homem ou se mulher travestidx de homem. Com o dedo em riste e no nariz do preconceituoso, arranca aplausos da plateia, enquanto expõe todo o seu drama.

- Eu nasci Maria de Fátima Silva. Hoje sou Mário. Informa-nos aquelx personagem.

- Se fosses minha filha, eu te teria educado para seres uma pessoa normal. Rebumba aos bofes o machão.

- Mãe, tu não tiveste uma filha. Eu sempre fui menino.

E passa a narrar a sua falta de identificação ante o espelho, quando ainda usava vestidos e lhe surgiram os peitos na adolescência.


 A plateia, hipnotizada, aplaude ensurdecedoramente.

- Eu era diferente, mas queria viver. Não me afastes por ser diferente. Dentro de mim sou eu. Não é fácil viver sem mentir.

São as frases de impacto do texto, que recita aos soluços, sob as lágrimas.

A usar um par de botinas por engraxar, calças jeans surradas e frouxas, uma jaqueta preta do tipo motoqueiro, com um queixo de fazer inveja a Stallone, solta a voz num solo triste, entre soluços e lágrimas, enquanto a plateia estupefata, boquiaberta, se solidariza com o drama denso do transexual e aplaude, de pé, aquelx que, até agora, não sei o gênero que carrega fora do palco.

Bichas, travestis e dragqueens estão para os espetáculo teatral como àgua para o sedento. São elas, as drags, que fazem um duelo entre as fadistas deste Portugal. Uma delas, com peso muito acima da média, rouba a cena num vestido vermelho Benfica, não sei se de seda ou de cetim, e trepida enquanto engata notas mais longas, fazendo corpo e voz parecerem uma radiola enganchada. O riso é certo e largo.

O mesmo ator fora de forma se insere no contexto cenográfico como mestre de cerimônias, é quem conduz o espetáculo. A cortina sobe e desce várias vezes, enquanto os aplausos perduram.

Voltei para casa em êxtase e a pensar que bom seria ter a mesma sala cheia de conterrâneos, muitos deles ruborizados com as cenas mais picantes, outros impressionados por como num palco tão pequeno se pôde botar tanta coisa. Outros levariam para suas casas as lembranças febris e eróticas das belíssimas pernas e bundas das bailarinas e seus chapéus emplumados.

E em Barra do Corda, nossa cidade com mais de 100 mil habitantes?

Claro que temos um teatro a apresentar espetáculos com regularidade, com o seu corpo de baile de atorxs pagos pelo município, não é verdade?

Não valoriza a arte e o artista quem nada entende de sociedade e de cultura.

Em Portugal, as salas de teatro, cinema e museus estão a competir entre si, muitos deles na mesma rua. Não há como comparar as duas realidades, a lisboeta com a barra-cordense, diriam alguns. Seria injusto, eu concordaria. Por isso é que aceito que Barra do Corda, com seus mais de 100 mil habitantes, tenha apenas um teatro. A propósito, qual é mesmo o nome do teatro de Barra do Corda?


 

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