terça-feira, 24 de novembro de 2020

A Coisa tá Feia

A humanidade está mesmo muito doente, é o que me parece. A empatia se faz rara e já não nos incomoda a dor ou aflição alheia. E eu acho mesmo que a empatia seria a mola propulsora que poderia mudar o mundo. 

A empatia é o proclamado "amor ao próximo". Ouvimos falar dele quase que todos os dias, em quase todos os templos e igrejas mundo à fora. Entra por um ouvido e sai pelo outro. 

No primeiro mundo, na Europa onde vivo, percebo vários desses seres sem sentimentos, verdadeiras caixas de carne vazias, robôs sem programação ou defeituosos de suas funções. 

Dias atrás tirei dos bolsos umas moedas para dar a uma pessoa que dizia está a passar fome numa parada de ónibus quando fui interpelado aos gritos por um nacional:

- Esse gajo não passa de vagabundo que não merece ajuda, opáh! - e  fiz cara de paisagem e nada respondi enquanto o necessitado se afastava acabrunhado e com uma vergonha, talvez maior que a minha.

A pandemia do COVID-19 tem piorado e muito a situação de quase todos mundo à fora e muitas são as pessoas que estão em situação precária na Europa. Uma multidão foi despedida e, sem condições de pagar os alugueis de suas casas, é obrigada a ir para as ruas.

Não sei se é apenas impressão minha, mas já faz algum tempo que tenho percebido, com tristeza, que a mancha escura da maldade tem aumentado. Chegamos ao ponto de desconfiarmos de tudo e de todos, o tempo todo. A mão estendida pode ser a do inimigo que apenas quer ganhar-lhe a confiança até descobrir o seu ponto fraco, o segredo do seu cofre, da sua vida, para lhe roubar tudo. 

 E a minha vizinha acaba de informar pela janela aqui:

- Estou a ouvir no jornal que 8 em cada 10 portugueses estão desempregados 

E nessa paranoia é que chego ao ponto que gostaria de vos relatar. 

Estava a ser atendido por uma manicura e a olhar a cena fora do salão através da vidraça e vi uma linda moça a receber um gajo - rapaz, no Brasil - seu companheiro com um abraço e um beijinho de carinho. O amor estava no ar e se percebia estampado no rosto de ambos. Ele chegou com o cabelo ainda molhado e uma pequena toalha ao ombro e, depois da cena de amor e carinho,  entrou para dentro de uma carrinha - o mesmo que van, no Brasil -  ali parada enquanto ela ficou na boleia. Uma cortina improvisada desceu para impedir a visão enquanto o rapaz descansava com a porta aberta.

- Eles estão aí faz mais de uma semana. Eu os tenho observado. Ele sai, vai até o supermercado ali na frente, faz a higiene pessoal no banheiro de lá e volta. Depois ela faz o mesmo - contou-me a manicura.

A grande maioria dos que moram nas ruas - e sorte têm os que possuem carro para fazer de casa - é imigrante e está por aqui de forma ilegal. Se forem pegos, serão presos e deportados sem dó, nem piedade. Assim sendo, além de se está nas ruas, se vive a fugir das polícias e demais órgãos de fiscalização. 

Ante a informação da manicura senti de imediato uma dó danada. E ela me contou que na semana anterior, um outro casal, esse com três filhos, estava no mesmo local e na mesma situação e que um cidadão nacional - muito provavelmente um desses psicopatas que descrevi nos parágrafos anteriores - incomodado com a cena, foi até eles, esbravejou impropérios mil e ameaçou chamar a policia caso permanecessem ali. A família apavorada ligou seu carro casa e se foi em fuga, coitada.

E diante dessa outra estória, tive o ímpeto de tentar ajudar ao casal que muito parecia ser de brasileiros. Por vezes, a ajuda pode ser só um gesto de boa vontade, uma manifestação de apoio e solidariedade, um cuidado, uma palavra - pensei eu. Pensei que podiam usar o banheiro do meu apartamento, minha cozinha... , sei lá, não sei. Talvez eu lhes pudesse lhe levar uma garrafa de café, quem sabe. 

A manicura, muito humana e empática, também achou que podia ajudar de alguma forma. Com todo o cuidado, escolhendo a melhor maneira de contato e a buscar as palavras, me dirigi à moça que me respondeu com um sotaque indiano ou de algum país asiático. Era mesmo muito linda a moça. Uma pele delicada e morena, cabelos lisos como seda e num corte Channel perfeito. O rapaz que descansava protegido das vistas pela cortina improvisada assustou-se que eu percebi, mas ficou lá, sem mostrar a cara.

- Boa tarde, tudo bem? Nós estávamos a lhes observar e parece que vocês estão a precisar de alguma ajuda. Seria o caso ou estamos enganados? Nós só queremos ajudar. E desculpe se estamos a incomodar.

- Boa tarde! - respondeu ela com um sorriso contido - muito obrigada, mas estamos bem sim. Não precisamos de nada. Muito obrigada.

E percebi que havia medo na voz, no olhar. Mas, assim sendo, fui para minha casa, logo na outra rua.

- "Menino! Foi você dobrar a esquina e o rapaz ligou a carrinha e se foram embora acelerados" - foi a mensagem que me mandou a manicura pelo whatssap.

Mas a que ponto chegamos! - pensei eu. Um ato de ajuda, por mais que tenha a melhor das intenções, nos dias de hoje, pode resultar num evento desses. E, de novo, me doeu. E pensei que melhor teria sido nada ter tentado.

A humanidade está muito doente. 

Cuide-se! Proteja-se! Sempre que puder, ajude a quem precisa, não importando se é parente, amigo, conhecido ou conterrâneo. Em primeiro lugar deve está o sentimento de humanidade que é o mesmo que a empatia. Branco ou preto, gordo ou magro, bonito ou feio, rico ou pobre, hétero ou gay... é um ser humano. 

E nunca ajude ninguém pensando em alguma recompensa ou reconhecimento futuro por parte de quem você ajudou. A ajuda tem que ser desinteressada, senão escraviza o outro e deixa de ser ato de filantropia e passa a ser ato de egoísmo.

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Pequeno Glossário de Expressões Portuguesas:

 1  - Não é grande a espingarda = Significa dizer que algo não é grande coisa;

2 - Estar com a bezena = É estar embriagado;

3 - Pedir a dolorosa = Pedir a conta num restaurante

4 - Dar tanga = É o mesmo que dizer: estas a brigar comigo?

5 - A ver navios = a pessoa que foi enganada e ficou desiludida



quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Rojões, Caracóis e Guaraná Jesus

A minha crónica desta semana começa em São Luís do Maranhão, com o mestre Cesar Braga, da Revista Virtual Turma da Barra - TB, na piscina com sua casa ao lado de sua amada e a me informar, por whatssap, que está a fazer rojões à portuguesa - e peço licenças ao mestre para usar o seu nome em vão, sem sua autorização e na esperança de que ele não seja assim tão melindroso. 

E os rojões, meu caro leitor, nada mais são que pedaços de carne de porco marinados ao vinho e cozidos ao lume brando e servidos, em geral com batatas ao murro - batatas ao murro? não sabe o que é? Cozinhe-as com casca, depois leve ao forno e após tirá-las, numa superfície dura, soque um murro em cada uma e depois jogue um fio generoso de azeite por cima delas e pronto.  

Os tais rojões estão por aqui em todos os cardápios de biroscas a restaurantes gourmets.

E aí me lembrei de uma estória vivida cerca de um ano depois que aqui cheguei. Eu sempre me considerei muito eclético para comer. Sempre achei que ia de 8 a 80, independentemente da iguaria servida, numa boa e com raríssimas exceções. Entretanto, nunca passou pela minha cabeça comer rãs, lebres e perus corriqueiramente como se come frango fossem. 

Aqui as carnes que para nós são exóticas estão dispostas na mesma quantidade e nos mesmos freezers e geladeiras. E, desconfio que o frango nem seja a carne mais consumida. E no meio dessa variedade todas estão todos os frutos do mar que o leitor conhece e mais uma centena que nunca viu, nem verá. E dentre essa variedade toda, os caracóis e caracoletas. E de caracóis é que passo a vos falar.

Eu sai da minha casa rumo às margens do Tejo, logo aqui abaixo de casa, só para uma caminhada matinal e apreciar a paisagem, já lá se iam pelas 10h e decidi tomar um café numa pastelaria do bairro. E aqui as pastelarias não vendem apenas os pasteis - e não são os nossos deliciosos pastéis de feira recheados de queijo ou carne e acompanhados de caldo de cana... e vixe! Quanta saudade! - mas são restaurantes completos que servem toda uma gama de pratos portugueses. E por trás do balcão estava um típico português com seu bigodinho indefectível e óculos na ponta do nariz. E por trás dele, protegida por uma vidraça transparente, com um pano de prato jogado ao ombro e uma touca transparente a lhe segurar os cabelos desalinhados, uma mão pousada nas cadeiras e outra a segurar uma colher de pau que girava frenética num tacho enorme e a fazer um barulho que mais parecia que estava cheia de bolas de gude... croooc, croooooc, crooooc... a Maria.

Senti que a atmosfera estava meio paradona. O Zé - não sei se era esse o nome do gajo - parecia enfezado e a Maria - também não sei o nome - pareciam mesmo era muito zangados. E imaginei que a cozinha devia mesmo está era muito quente e que aquela rotina portuguesa podia mesmo ser muito aborrecida e até senti pena da Maria. Estava ela com a cara lumiada de suor enquanto me passava a impressão de não gostar do que fazia. Mas percebi que, dentro do tacho, as imaginadas bolas de gude eram branquinhas e leves e até pareciam levantar ante a fervura. E querendo travar um diálogo amigável até para quebrar aquela atmosfera, lasquei:

- O que ela está a cozinhar?

- Mas opá! Caracóis, não estás a "veire"? - e percebi a portuguesa na cozinha a bufar enquanto revirava os olhos em demonstração de irritação e - como sei ler pensamentos - imaginei o que ia naquela cabeça quente.

- Ai Jisuis! Lá vem mais um estrangeiro a "perguntaire" coisas tão obvias! Ai Jisuis! Que parvos sois! Que asnos! - e pensei também que se fora ela uma mula um coice eu teria levado ali e agora.

Meses atrás, sai com meu cão, o Karl - e não Marx e sim Lagerfeld, se faz favor -  para um passeio pelo Monsanto, o parque silvestre e gigantesco daqui, considerado o pulmão de lisboa e que também está próximo de minha casa, só que à cima, e vi os putos e as raparigas com seus pais e avós, todos com um saquinho na mão, a recolher alguma coisa que pensei ser alguma frutinha de época, nos arbustos e vegetação rasteira. E aí, minha lembrança me levou para as margens e caminhos do Rio Flores quando menino, colhia e comia murtas frescas e verdinhas. E depois que sai do Centro Velho dos Oliveira nunca mais comi ou vi as murtas que se imortalizaram na minha memória e que, vez ou outra, acordo com aquele sabor azedinho e travoso que, bem sei, nunca mais provarei.

Mas, me aproximei da malta que não era pequena, e  como estavam todos alegres e felizes, a expressar gritos enquanto falavam entre si.

- O que vocês colhem aí nos arbustos? - perguntei com receio, mas certo que mataria a minha curiosidade

- São caracóis, opáh! - me informou um velhinho magrinho e simpático ao lado do seu netinho. E foi com a mesma simpatia que me explicou que os tais caracoizinhos, do tamanho da cabeça de nosso dedo mindinho, já salvou foi muita gente neste Portugal, de morrer de fome. Era prato das camadas mais carentes que ganhou as altas rodas e que agora se come a chupar a lesma de dentro da conchinha e a lamber os beiços.

E o caro leitor, preconceituoso tanto quanto eu, logo já pensaria:

- Pois eu... morreria de fome mas nunca comeria caramujo. Deus me livre!

E aí fico a pensar como explicar a um português que já comi aos montes, fritinho e crocante, mingongos mil? Que no Maranhão até hoje se come tripa seca assada e há quem muito goste? Como explicar a buchada de bode? 

Aqui se comem caracóis ao milhões e todos os dias. E não somente eles, mas também as caracoletas - e essas são já do tamanho de um pequi com casca, enormes. E ainda os caríssimos e tão desejados escargots que são do tamanho de um pão francês e que só quem muita grana tem pode comer. Eu nunca comi nem lebre quanto mais os caramujos daqui, da França ou do Brasil. Mas já comi buchada de bode sim.

E nem vou me referir às bebidas exóticas que temos por ai, inclusive um guaraná cor-de-rosa que muito gosto, do Maranhão, e que quem o toma vira qualira maranhense na mesma hora, segundo o nosso cientista-mor. Eu já tomei e foi muito o tal guaraná que, de tão bom, é hoje posse da poderosa Coca-cola. Quem nunca tomou e quiser experimentar, pegue sua garrafa, tranque-se no seu quarto, jogue a chave fora -  é que nunca se sabe o tamanho do qualira que vai em cada um de nós, não é mesmo? Então, qualire-se você também! 

E quanto aos rojões suínos feitos em São Luis do Maranhão imagino que a acompanhar esteja uma garrafa de dois litros e meio do mais puro Guaraná Jesus que, por aqui, ainda não encontrei. E me questiono se alguém se desenqualira por abstinência do referido guaraná. Se já desenqualirei não vos posso informar - e tá rindo de quê, abestado? Mas maranhense até morrer, com certeza!

Wan Lucena

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Pequeno glossário português de Portugal/português do Brasil


Malta = turma

Autocarro = ónibus

Fato = terno

Fato de Banho = maiô

Sumo = suco

Pequeno Almoço = Café da manhã

Fiambre = Presunto

Tasca = Boteco






O Milagre do Galo que cantou depois de Assado

O que chamamos de Carreirão de Santiago ao olharmos para o céu, caso o leitor não o saiba, leva esse nome por causa do Apóstolo de Jesus Cristo, Tiago, o filho de Zebedeu. E como bom cristão o amigo leitor deve saber também que eram dois os Tiagos apóstolos. E o Tiago a que me refiro não é o Menor, ou seja, o filho de Alfeu,  mas o filho de Zebedeu, Tiago Maior. 

Segundo a lenda, um eremita - aquela pessoa que decidiu viver isolado e completamente afastado da civilização, em geral no meio de alguma floresta e por motivos religiosos - de nome Pelayo, por muitas noites observava, desde uma colina, uma insistente chuva de estrelas cadentes. E foi o próprio Apostolo Tiago que lhe apareceu em sonhos e lhe revelou que as luzes das estrelas a cair lhe indicariam o local exato onde estaria a sua sepultura. 

E o Abade-eremita caminhou, sempre guiado pelas luzes das estrelas a cair, de não sei onde até o local onde se encontra hoje a Catedral de Santiago de Compostela. Depois de cavoucar a terra acumulada por séculos, descobriu a sepultura a sepultura de Santiago. Pelayo comunicou sua descoberta ao Bispo Teodoro de Iria Flavia, e este comunicou ao Rei Alfonso II das Astúrias, o Casto, e que caminhou até lá para verificar os fatos.

E o Rei Alfonso II se tornou assim, o primeiro peregrino da História, tendo ele caminhado desde Oviedo até Santiago, fazendo assim o que se conhece como o Caminho Primitivo. Depois de verificar a veracidade dos fatos, no ano de 847 depois da "Graça de nosso Senhor Jesus Cristo", mandou erigir uma pequena capela no local do túmulo que depois virou a magnifica catedral que hoje se ver.

Aqui deixo a História e passo para lenda, a estória com "E". Quero contar ao leitor a lenda - uma linda lenda - do Galo de Barcelos. E essa lenda tem à ver com o Caminho de Santiago. Tal peregrinação leva milhares de pessoas - e só no ano de 2018 foram 300 mil peregrinos - a sair de diversos pontos na Europa, à pé, rumo ao túmulo de Santiago, em Compostela, na  Espanha.

Barcelos é uma cidade portuguesa que fica bem lá ao norte, já quase na divisa de Portugal com a Espanha e donde cheguei já no meio da tarde, muito cansado depois de quatro dias de peregrinação, desde a Cidade do Porto. Cheguei lá à pé, sim senhor! E sim senhor, este que lhe escreve e que nem homem de religião é, estava a fazer a famosa peregrinação até ao túmulo do dito Apostolo Tiago -  Santiago depois de santificado por decreto papal como o são todos os santos. Foram 12 dias de caminhada. Mas essa é outra Estória.

Barcelos conta com sítios arqueológicos muito bem preservados, dos tempos romanos, e que estão ao dispor dos turistas por toda a cidade. Muralhas medievais, ruínas de igrejas e túmulos feitos em pedra estão aos olhos de qualquer um que decidir fazer uma visita à cidade.

Mas foi as margens do Rio Cávado - rio que corta a cidade - onde decidi "bater um rango". Entrei num restaurante de boa cara e percebi que tinha pompa. Olhei o cardápio e, depois de constatar que cabia no meu bolso, entrei e fui atendido pelo Chef e proprietário já à porta.  Vestido à caráter com o típico uniforme branco e, na cabeça, o seu gorro enorme e estufado e imponente. De sorriso largo e sem cáries. Era ainda jovem, tinha lá seus 40 anos, e não apresentava aquele bucho a bater nos joelhos, tampouco o bigodinho indefectível português.

- Boa tarde - cumprimentei 

- Brasileiro? Amo o Brasil! Inclusive tive um restaurante no Rio, a cidade do Rio, no Rio de Janeiro, onde morei por uns tempos - disse ele efusivo e caloroso, mas contido e profissional, e percebi que o jantar seria muito agradável. E o foi.

Já estava a sorver um gole do bom vinho português, a olhar a estátua de um imenso galo pela janela,  com seus seis metros de altura, todo pintado em preto e vermelho, com corações e flores desenhados a lhe enfeitar enquanto mirava fixo, impávido e colosso, o Rio Cávado, caudaloso e a refletir os últimos raios do sol. Foi quando o Chef se aproximou da mesa e puxou assunto.

- É mesmo bem bonito o nosso Galo de Barcelos, não é? O senhor conhece a estória do nosso galo? - e pensei eu "senta que lá vem a estória!". E senti certa euforia não sei se advinda do vinho ou da perspetiva do que iria ouvir.

Ante a minha negativa o Chef começou:

- Diz a lenda que nossa cidade de Barcelos, faz mais de 500 anos, estava assombrada com um crime cujo autor não havia sido identificado. Certo dia, a passar por aqui um peregrino Galego - aquele que é  nascido na Galícia, Estado espanhol donde se situa Santiago - foi ele acusado do tal crime. Apesar de jurar inocência, foi preso e condenado à forca. Como ultimo desejo antes da forca, o galego pediu que o levassem até o juiz que o condenara. Ao chegarem à casa do juiz, condenado e a escolta policial, ele estava a se deliciar num banquete com os amigos. 

E aqui o Chef pegou a garrafa de vinho sobre a mesa e, gentilmente, me completou a taça enquanto se curvava com uma mão devidamente presa às costas como manda a etiqueta marcial desses ambientes e serviços. E eu não me fiz de rogado... incorporei o fino que nunca fui e ele continuou:

- Ante o juiz naquele banquete, o peregrino galego jurou inocência. O juiz e seus convidados riram às gargalhadas do condenado e da sua alegação. E o condenado então declarou: sou tão inocente que esse galo à sua mesa se levantará e cantará quando do meu enforcamento.

E o Chef riu de canto enquanto me contava que:

- Pelo sim, pelo não, receosos que ficaram o juiz e seus convidados, ninguém comeu o galo assado e suculento que estava numa bandeja de prata, no meio da rica e farta mesa. E enquanto o cadafalso era aberto pelo carrasco que enforcava o condenado galego peregrino, o que parecia impossível aconteceu. O galo ergueu-se na mesa e cantou em alto e bom som, tal e qual aquele outro galo cantou em Jerusalém depois do Apóstolo Pedro ter negado a Jesus por três vezes. Afinal, era mesmo inocente o condenado.

E aí entendi que estava a ouvir uma lenda, apenas uma lenda, uma belíssima lenda. E Osmar Monte deve está a pensar que essa estória podia ter acontecido na Barra do Corda, só para ser ele a ter o prazer vos conta-la com toda a sua maestria. E aqui eu rio. Com todo o respeito ao contista fabuloso que o é, o grande Osmar.

- Correram todos para o local onde acontecia o enforcamento certos de que já era tarde e que o condenado já estaria era pendurado à corda. Mas, ficaram atónitos ao perceber o galego vivíssimo com a corda ainda no pescoço enquanto o carrasco preparava um segundo nó. Na primeira tentativa, por causa de um nó mal dado pelo carrasco, o enforcamento falhara. O  Juiz então inocentou o condenado e o mandou seguir em paz a sua peregrinação. Anos mais tarde, o mesmo peregrino voltou a Barcelos e ali erigiu o Monumento do Senhor do Galo em louvor à Virgem Maria e Santiago Maior.

- E terminou a lenda - pensei eu.

- E tão importante é o nosso galo que o GAL que o senhor pronuncia todas as vezes que fala o nome Portugal, esse Gal de Portugal, é por causa do nosso galo aqui de Barcelos.

Meses depois, já em Lisboa e dentro de um táxi, enquanto contava a dita lenda a um amigo brasileiro de visita por aqui, fui interrompido pelo motorista:

- Ora Pois! Mas, alto lá! Isso é o que diz a lenda. A História com H é outra. O nome Portugal é derivado de PORTVCALE, nome dado pelos romanos quando aqui desembarcaram no porto, hoje cidade do Porto e por causa de uma outra localidade ali perto e por eles batizada de Cale. 

PORTVCALE é com V mesmo por ser a língua romana que depois virou Portugal, sim "senhoire".

E eu me rendi à História com H. Mas, fico mesmo o Galo de Barcelos só porque gosto mesmo é de lendas e estórias.

Wan Lucena

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Hoje, ao invés do nosso pequeno glossário, vão algumas expressões portuguesas que podem lhe surpreender:

1 - À grande e à francesa = significa em abundancia; com pompa;

2 - Ficar em águas de bacalhau = significa a ideia de falhar ao combinado; de se atrasar; de se perde ou de não chegar à tempo;

3 - Como sardinhas em lata = significa superlotação do mesmo espaço. Usa-se muito para a superlotação dos transportes públicos;  

4 - Ter as favas contadas = ter o resultado, de algo ou alguma coisa, por certo e inevitável;

5 - Dar graxa = elogiar excessivamente e, muitas vezes, em falso.





quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Janela e o Mundo

A minha janela em Lisboa não é o que se pode denominar de uma janela qualquer. A cena não é mesmo nada pequena. Todos os dias, se quisesse eu, teria uma estória a vos contar. Eu explico. Moro para o lado de dentro de um imenso quarteirão onde os prédios têm cerca de 8 andares. Moro bem na quina interna do quarteirão. Posso passar até uma marmita para a vizinha que fala comigo de frente, mas na diagonal, de janela para janela. 

As moradias térreas contam com terraços e jardins onde se plantam laranjas, limões, figos, oliveiras etc... Nos terraços se podem ver gatos e cachorros, velhotes a a andar em círculos a fazer um exercício matinal e velhotas a estender suas roupas. 

Tem muitos pombos os quais se alimentam das migalhas jogadas sobre as lajes desde os apartamentos. Tem as gaivotas enormes e famintas que alimentam dos nacos de carne que a minha vizinha de janela lhes joga. 

Depois de o leitor visualizar a minha janela, passo agora passo a descrever um pouco - e apenas um pouco - de toda a cena que assisto a partir dela. E nessa crónica vos relatarei dois acontecimentos muito "pra lá de engraçados" e que espero, ajudem a levantar o canto da boca do leitor, senão uma gaitada.

Essa minha vizinha de parede alpegada... - eu vou dizer que ela é "uma graça" - ama os animais, mas todos os animais mesmo, desde os cães, gatos e pombos as gaivotas e sabe-se lá mais o quê, e desde sua janela passa a brigar com a vizinha do outro lado do quarteirão - e isso significa quase 500 metros de distancia - porque uma cadela qualquer está a latir sem parar e, segundo ela, estaria a passar fome.

É briga também com outro vizinho por causa de outra cadela no terraço lá em baixo que está muito magrinha e a morrer de frio enquanto pede um carinhozinho que seja, coitadinha. E grita daqui para lá e já ninguém sequer lhe da atenção e que vai fazer denuncia aos órgãos de defesa dos animais e que aqui, além de multa, maus tratos a animais pode render até cinco anos de xilindró. 

Ainda esta semana, dei de cara com o marido dessa dita vizinha, um velhinho calvo e  sem dentes, de olhos arregalados e com olheiras profundas e pele de quem precisa, faz anos, de um pouco de banho de sol - coitadinho!

- Coitadinha, da cadela. Sofre muito a coitadinha da bichinha - disse-me ele a dirigir-me a palavra nesses diminutivos e pela primeira vez desde que aqui estou,  e já lá se vão três anos ao menos.

E enquanto eu travava um diálogo "pequeninho", também no diminutivo, quase monossilábico, na janela ao lado, no mesmo apartamento, e sem ser vista por ele, me aparece a referida vizinha, sua esposa, a fazer círculos com o dedo indicador ao ouvido e a balbuciar:

- Ele é doido! Ele é doido! Percebes? - E tentei responder sem que o velhinho me visse a balançar a cabeça em negativa.

- Não, não percebi - menti eu por entre os lábios 

Mais adiante, na outra janela, mora um gajo que já vai com os seus trinta e poucos anos e que fuma como uma caipora e não apenas tabaco - e nada tenho eu com isso, deixo muito bem claro. Meses atrás, feliz da vida que eu estava, a fazer um almoço, por voltas das 14 horas e a bebericar umas taças do bom vinho português, aumentei o som na minha caixinha JBL, a ouvir "Hoje eu não saio não" de Marisa Monte e a achar que estava a todos agradar ante o momento triste de pandemia a que estamos todos submetidos quando ouvi os gritos na janela do dito gajo. Fui até minha janela e o vi com uma espada que deve ter sido usada por Dom Pedro no grito da independência do Brasil.

- Vais baixar o som som ou não vais? - perguntou-me o gajo em bom português de Portugal enquanto a espada zigzagueava janela a fora.

Eu fiz cara de impávido colosso e fingi não perceber a ameaça. Com a tranquilidade de um monge budista que estava há anos em posição de lótus a meditar no Tibet, pedi um minutinho, voltei para dentro de casa e baixei o som. De volta a janela e na segurança de que ele não tinha asas, nem era o super homem para voar desde a janela dele ate a minha com um fosso de, no mínimo, uns dez metros de profundidade entre nós, perguntei:

- Pois não! O que o senhor deseja? - e sorvi mais um gole daquele vinho português

E em tom nada amigável e naquele desalinho de quem acaba de acordar, com aquele humor de quem nada dormiu a noite,  me disse que o som estava alto e coisa e tal e que estava a lhe "incomodaire". 

- Mas era só isso? - perguntei como quem estava a falar com um padre e dentro de um sacro santo lugar - quando tomaremos uma taça? - e se recolheu.

A vizinha do marido doido, essa a que me referi acima, depois de alguns dias me informou que ele era seu vizinho de porta, que era arqueólogo, e muito inteligente, e que vivia de ler, que era meio doido, mas super gente boa. E eu captei tudo - mais um  doido, pensei.

A posteriori, a estender minhas roupas no varal à janela, me aparece o dito cujus com um sorriso largo e embotado.

- Bom dia, vizinho! Deus o abençoe sempre!

- Bom dia  - respondi eu sem titubear e certo que um "bom dia" podia salvar não só o meu dia

Ainda ontem, depois de muitas conversas de janela a janela com ele, a falar de politica do Brasil e de Portugal, ele me perguntou:

- Ó vizinho, conheces o Isaiah Berlim?

 Se conhecia Isaiah Berlim? Como assim? Quem diabos era Isaiah Berlim? - pensei eu

- Não, mas o nome me soa familiar 

- Pois pegue ai papel e caneta para que possas anotar o nome dele - e assim o fiz

- Isaiah Berlim, anotaste? Berlim mesmo, como a se escreve a capital alemã. Tens que ler "Quatro Ensaios sobre a Liberdade".

Eu fui pesquisar sobre o filósofo que nada escreveu. E o que dele foi escrito deve-se aos seus alunos que redigiram e publicaram suas aulas quando já estava ele morto. E lá fui eu ler os ensaios de Isaiah Berlim.

E que essa cronica nunca seja lida pelos meus referidos vizinhos a quem sequer sei os nomes, assim como sei que eles também não sabem o meu. E se eles se sentirem magoados - não foi a minha intenção e juro pela santa cruz - que escrevam eles sobre mim uma daquelas crónicas de vingança grega e que todos morramos no final, e que "falem bem ou falem mal, mas que falem de mim" - já dizia Simone de Beauvoir? 

Certo é que se o caro leitor, barra-cordense ou não, pode pensar que somente numa janela lisboeta se pode viver estórias como essa. E eu vos afirmo estarem redondamente enganados. Apure os sentidos desde os ouvidos à visão, do tato ao paladar e olfato. Abra a sua janela e seu coração, pode está na Altamira, no Incra, no Sitio dos Ingleses ou na Trisidela, e vai perceber que a vida é tão rica de estórias quanto as de qualquer lugar do mundo. Porque bom mesmo é sonhar acordado e se fazer personagem de um enredo onde somos sempre o ator principal. E até o vento que nos bate a cara e nos levanta os cabelos, com um pouco de sensibilidade, pode virar uma boa estória, um poesia, um conto. E quem conta, sempre aumenta um ponto.

Aos conterrâneos Barra-cordenses, o meu abraço!


Mini glossário português de Portugal em relação ao português do brasil:


Sanita = vaso sanitário

Ecrã = tela de tv, computador ou celular

Rés-do-chão = andar térreo dos condomínios

Passadeira = faixa de pedestre

Portagem = pedágio

Agrafador = grampeador

Crónica também publicada na Revista Virtual Turma da Barra

https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1779040742261307