terça-feira, 30 de março de 2021

Não leia esta crónica

Quando eu era apenas um rapazote a zanzar pelas ruas de Barra do Corda; quando era apenas um menor a trabalhar de Carteira assinada, nos Armazéns Parnaíba, de propriedade do Celso e do Vicente Noleto, lembrome das tão desejadas calças masculinas Wollens. O que me chamava mais a atenção não era nem a marca em si que, suponho eu, pudesse ser o nome ou o sobrenome de alguém, mas o slogan*: "O mundo trata melhor quem se veste bem". Frise-se que, até hoje, concordo com a frase. Não vou aqui discutir nenhum mérito nem pretendo polemizar detalhes, cônscio que sou acerca do fato de os maiores golpistas serem os que mais investem em seus visuais. 

Para provar que imagem é tudo, permitam-me citar sua indelével influência nas igrejinhas de beira de estrada ou de fim de rua, lá pelas periferias, ou nos mega templos, inclusive o de Salomão, em São Paulo. Pode até ser um terno barato, em cuja gravata nem o nó esteja feito corretamente, mas o pastor precisa bem se apresentar para poder levar as almas ao Reino, bem como conduzi-las ao pagamento dos dízimos. No marketing "imagem é tudo". 

Acredito no poder da sonoridade, seja do nome de uma marca ou até de um indivíduo. Um slogan, quando bem criado, fixa-se na cabeça do consumidor, talvez por toda a vida. 

- "Bombril: mil e uma utilidades" - e se você nunca fez de uma bucha de Bombril uma antena de tv ou de rádio, não deve ter mais do que 25 anos de idade; 

- "Skol: a cerveja que desce redondo" - e não penso só no gole a escorrer redondo e aveludado garganta abaixo, mas nos bêbados a descerem, que nem bolas em declive, as ladeiras da Altamira, com os cocos cheios de cana; 

- "Doril: tomou Doril, a dor sumiu" - e quem nunca perguntou a um amigo que havia muito tempo não o víamos: __ “tomou doril, foi?”.

Penso, então, nos muitos livros que já comprei, só por causa dos títulos. E há escritores que são craques em escolher bons títulos. "A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro, por exemplo. Só pelo título eu já o compraria, mas não só, visto que eu também já conheço o estilo do autor. "Memorial do Convento", de José Saramago. Aliás, Saramago era mesmo um mago nas escolhas dos títulos de seus livros. "A Viagem do Elefante", do mesmo autor. Que título!

Assim como uma boa marca ou um bom mote**, "imagem é tudo"! Aquela casinha de sapê à beira do caminho fica um charme se a sua dona plantar umas florezinhas, onze-horas, ao seu redor; e a mulher, mesmo que feia, se cuidadosa for, acenderá um brilho vaidoso a refletir-se na persona, de tal maneira que nunca lhe faltará pretendentes. A mesma regra serve ao sexo oposto, claro. A propaganda do desodorante AXE já nos ensinava: "A primeira impressão é a que fica". 

Quando se faz com esmero, seja lá o que for, fica bonito e desejado. Não importam os recursos financeiros, mas a criatividade para se fazer bonito e bem feito com os recursos que se tenha à disposição. E como dizia a propaganda da Semp Toshiba: "Nossos japoneses são mais criativos que os outros".

Rodam o mundo os vídeos do prefeito de Colatina – ES, que põe a mão na massa e planta, ele mesmo, as flores dos jardins públicos da sua cidade, ou pinta muros e meios-fios, enquanto arregimenta os demais cidadãos e multiplica as ações do bem. Faz bem feito e com capricho quem faz com amor, e não quem tem recursos financeiros a esbanjar. Aliás, amiúde, quem esbanja recursos financeiros, na verdade, torna-se mesmo é muito brega. 

Quem usa de uma pitada de malícia, naquilo que cria, põe em prática o slogan da Caninha 51: "Uma boa ideia". Daí fico a pensar no título de um livro que pretendo lançar um dia. Qual o título que, dentre centenas, despertaria a aguçada curiosidade dos leitores, ao menos para pegá-lo nas mãos, folheá-lo e, quem sabe, comprá-lo? Ainda não o sei, confesso. 

Aposto que a maioria dos leitores chegou até a este parágrafo por pura curiosidade em relação ao título da presente crónica. 

"Amo muito tudo isso" é o slogan do Mc Donald´s, com o qual encerro esta despretensiosa crónica que - eu sabia - você leria. 

• Slogan*: expressão concisa e fácil de se lembrar, usada em campanhas de publicidade, propaganda política e, principalmente, no lançamento de marcas e produtos comerciais; 

• Mote**: termo sinônimo de lema, bordão, legenda etc. 


Wan Lucena

quinta-feira, 25 de março de 2021

Cabe todo o Brasil em Portugal

O número de brasileiros em Portugal, por conta da pandemia, diminuiu drasticamente. Mas não só por conta da pandemia, mas também por conta da deterioração da economia brasileira que desvaloriza o Real ante o Euro e muitos eram os aposentados que, como eu, viviam por aqui. 

A economia portuguesa e a europeia como um todo, sentiu o baque da pandemia e muitos são os empresários, pequenos ou grandes, brasileiros ou não, que estão em situação de desespero. Nem todos conseguem acesso às ajudas do Estado português e as contas se acumulam a cada dia. Muitas lojas foram encerradas e os imóveis para aluguel estão vazios muitos deles.

Apesar de tudo, muitos são os que resistem bravamente. Aqui pertinho de casa tem um pedainho de Brasil onde a pastelaria se chama Skina Brasil e dono é um mineirinho gente boa e cuja esposa é dona do salão de beleza para senhoras logo ao lado. Já o Ricardo é um quase um garoto, mas jovem de coragem e visão. É o dono do Ricardu´s Barber Shop, a barbearia onde corto o cabelo com o Rodrigo, barbeiro dos bons, brasileiro também de Minas, uai!

O Ricardo agora passa 15 dias dentro da boleia de um caminhão a viajar pela Europa. Da última vez que cortei o cabelo com ele já não foi na barbearia porque ele já não consegue mais dar expediente por lá e agora, só quando está por aqui, atende na própria casa. E foi na casa dele que tomei um cafezinho passado no saco que só o brasileiro sabe tirar.

Mas, naquele pedacinho de Brasil em Portugal se ouve o bom mineirês, principalmente. E no Skina Brasil como uma deliciosa coxinha só pra matar a saudade do meu país. 

- Hoje tem vaca atolada! - anuncia o proprietário para quem quiser ouvir nas redondezas.

Mas, a verdade é que Lisboa já não está tão babilônica. Diminuiu a quantidade estrangeiros a viver em terras lusas e a comunidade brasileira foi das mais prejudicadas. 

A comunidade estudantil universitária é outra que sentiu o baque. Alem dos estabelecimentos de ensino fechados, os alunos não conseguiram se manter por aqui e tiveram que voltar para o Brasil. 

Mas, naquele pedacinho de Brasil localizado da Boa Hora, na Freguesia da Ajuda, aqui pertinho de casa, fica sempre um punhado de gente a bebericar o café ou a beber uns copos. O cigarro está entre todos os dedos e não só dos frequentadores do Skina Brasil mas dessa Europa inteira. E aqui quase não se faz campanha contra o cancer de pulmão. Não sei se porque o cigarro daqui não causa cancer ou se porque a industria do tabaco se impõe. Certo é que aqui é dificil achar quem não fume. E o mais interessante é que a carteira de cigarros é caríssima  e o mais vagabundo deles não sai por menos de 5 Euros, ou seja, mais ou menos 35 Reais.

- Olha que a fornada de pão de queijo tá saindo já já - grita de novo o dono do Skina Brasil. E todo mundo quase entra em polvorosa enquanto se anseia pelo bom pão de queijo do mineiro.

E jã a voltar para minha casa, na descida do Jardim do Rio Seco, me para ao lado um carro e uma rapariga linda me pergunta em bom português de Portugal:

- Olhe! Com licença se faz favor! Como faço para chegar naquele local aqui perto que foi todo revitalizado por agora?

- A senhora está a procurar o Largo da Boa Hora. A senhora segue por essa rua, dobra ali para direita e depois para a esquerda. Não passe por baixo do arco. Pegue o trilho do Elétrico e a senhora já vai chegar lá. É bem aqui pertinho - informei-lhe eu com minha simpatia brasileira de momento.

- Brasileiro! - falou com um sorriso farto e gentil - Há! Esse Portugal precisa é se encher de brasileiros pra ver isso melhora um bocadinho  - concluiu enquanto engatava a primeira - Muito obrigadinha e boa tarde! - e seguiu.

Eu desconfio que ela não sabia bem o que dizia. Espero que a pandemia acabe logo e que as coisas voltem aos seus lugares e que esse Portugal volte a se encher de todo mundo, inclusive de brasileiros.

Deixemos o Brasil daqui restrito ao pedaço do Skina Brasil e já está bom demais. E viva o Brasil! E viva Portugal!


Wan Lucena

 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Uma Santa brasileira em Lisboa

A paisagem que se vê desde o Miradouro* de Santa Luzia é de fazer babar aos mais insensíveis. Os telhados vermelhos e as fachadas azulejadas dos edifícios de Lisboa colorem a sua paisagem abaixo e, mais adiante, um imenso espelho - Rio Tejo - no horizonte, riscado pelos navios cruzeiros que chegam e partem lotados de turistas. Dali ainda se veem as abóbadas – peculiares domos sagrados - das igrejas, e as ruas típicas, sempre apinhadas das gentes da cidade. Do outro lado, as cidades de Almada, Alcochete, Montijo e várias outras. 

O miradouro, por si só, já é desbunde aos olhos. Há um imenso pergolado que sustenta os bougainvilles, de floradas exuberantemente rosadas, os quais sobem pelas paredes da Igreja de Santa Luzia, situada no mesmo local, e que se espalham a sombrear os casais enamorados e os artistas que por ali ganham seus trocados. Ademais, todas as paredes da referida igreja, assim como as muretas do miradouro, estão cobertas por centenários azulejos portugueses, em cujos quadros pode-se contemplar cenas históricas das aventuras e das glórias portuguesas.

Aos fundos da linda igreja, o visitante, mais curioso e atento, perceberá uma escada discreta e, se por ela subir os degraus, achará um platô** onde funciona um Café; ali poderá sentar-se a observar toda a cena, confortavelmente, enquanto se refresca com uma boa cerveja ou saboreia um delicioso “drink”. 

A Igreja de Santa Luzia, também de telhados vermelhos, não é tão grande, mas é superbém cuidada e se mantém altiva tanto quanto a coluna do seu guardião: um senhor de uns 90 anos, magro e narigudo; vestido em um uniforme jaquetão garboso, azul petróleo, com uma medalha da Cruz de Malta no peito e um bigodinho indefectível, como não poderia deixar de ser.  Respeitoso e rígido como um militar de plantão numa guarita, mãos para trás em completa subordinação, devidamente enquadrado por trás do balcão, logo à entrada, recebe os visitantes ou pagadores de promessas. Ali, sobre o balcão, numa cesta-gazofilácio*** são depositadas as oferendas e as esmolas. 

- Muito bom dia e seja muito bem-vindo à Igreja de Santa Luzia! - assim me recebeu, com distinta simpatia, o fiel soldado-guardião de Santa Luzia.

Ao perceber que eu era brasileiro, esclareceu:

- A nossa Santa Luzia é brasileira, o senhor sabia? - Claro é que eu não sabia. O que eu sabia, até então, era que o Brasil não tinha santos reconhecidos pelo Vaticano.

- Brasileira? Como assim? - Indaguei com enorme curiosidade e ele acompanhou-me até ao oratório e, à minha direita, discreta e sem enfeites, sem brilho ou velas, encontrava-se uma estátua em madeira, de cor marrom como um hábito franciscano, de pescoço longo que, com todo o respeito, me lembrou a Olívia Palito. As suas formas mostravam com exuberância uma mulher de saias esvoaçantes e cabelos tão volumosos e ondulados que faziam o seu rosto ficar minúsculo. 

- O senhor sabe quem esculpiu a nossa Santa Luzia? - Perguntou-me o velho guardião.

Como eu poderia saber? Eu acabara de chegar a Lisboa e não sou grande conhecedor de artes, muito menos de santas. 

 Eu, em minhas conjecturas mentais, tentava adivinhar quem seria o autor. Pensei nos artistas pernambucanos e baianos que tão bem sabem fazer santos, seja em barro, madeira ou quaisquer outros materiais.

- Quem esculpiu a nossa Santa Luzia foi o mineiro Aleijadinho. – Foi então que, muito, me emocionei ante a obra de Antonio Francisco Lisboa, o nosso escultor maior, aclamadíssimo artista da arquitetura colonial, o nosso brasileiro: o Aleijadinho.

Não sei se por ironia, ressalte-se, Lisboa já lhe ia de sobrenome, e eu que sou um quase ateu, de imediato, fiz o sinal da cruz em reverência a Aleijadinho e em seguida à Santa Luzia, de quem eu nem poderia ser devoto. 

Saí da igreja emocionado, depois de, até mesmo, acender umas velas por intercessão de parentes e amigos que ficaram no Brasil; e o gazofilácio do bom velhinho guardião recebeu a minha esmola.

·        * Miradouro: mirante; local elevado de onde se tem uma visão    panorâmica.

·        ** Platô: esplanada; local plano e alto; chapada; “deck”; “terraço”.

·        *** Gazofilácio: caixa onde os fiéis depositam suas ofertas; lugar em que, nos templos, se colocam as ofertas; na Grécia Antiga significava caixa de joias.

 

Wan Lucena


terça-feira, 9 de março de 2021

O poeta Pessoa, a astrologia e seus heterónimos

 

Hoje, atrever-me-ei a falar sobre Fernando António Nogueira Pessoa ou, como todos o conhecemos, Fernando Pessoa. Considerado um dos maiores expoentes da literatura em língua portuguesa e reverenciado em todos os países de cultura lusófona, como tal, despejou talento e competência em todas as vertentes em que engenhou sua arte. 

Assumiu, pelo menos, quatro heterónimos, ou seja, escrevia sob nomes autorais fictícios e dava a cada um deles um estilo próprio, o que lhes criava personalidades distintas. 

Foi prematuro na arte da poesia e já aos seis anos, em 1894, escreveu: 

À Minha Querida Mamã: 

Ó terras de Portugal 
Ó terras onde eu nasci 
Por muito que goste delas 
Gosto ainda mais de ti 

Foi poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, inventor, comentarista político, empresário, correspondente comercial, crítico literário e até, por incrível que pareça, astrólogo. Isso mesmo, astrólogo! Nesta crônica, pois, quero me concentrar nesse Pessoa, o Astrólogo. 

Em Portugal, a Astrologia é profissão reconhecida, seus operadores emitem recibos e notas fiscais, pagam impostos e, como operários dos astros, aposentam-se, sim senhor. 

É do Pessoa, todavia, que quero vos falar e é, assim mesmo, nessa intimidade toda, que o chamamos pelo mundo afora. 

- E que te pareces o Pessoa? - pergunta qualquer um numa prosa informal e logo se conclui que se está a perguntar do grande Fernando Pessoa. 

Talvez, os caríssimos leitores não saibam que era ele astrólogo - e dos bons -, dizem os registros. Diga-se, por oportuno, que eu até acredito na interferência dos astros como, por exemplo, na influência magnética da lua nas marés e na migração de animais marinhos, ou do sol sobre as estações climáticas etc., mas não acredito que se possa ler o futuro, ao menos o futuro das pessoas, por meio deles, muito menos nos quesitos amorosos. 

Consta que realizou mais de 300 horóscopos. Há quem afirme tenha sido mais de 1.500. Há que se considerar que um mapa astral levava em torno de 7 horas para ser produzido. Um mapa astral requer uma centena de cálculos matemáticos que, naquele tempo, eram feitos à mão. É de se indagar: e Pessoa ganhou algum dinheiro como astrólogo? Sim. Ele cobrava pela consulta; não era uma brincadeira ou uma mera curtição. 

Pessoa, aliás, criou um heterônimo para atuar como astrólogo. Raphael Baldaya foi o nome escolhido. Recebia sua clientela com preços pré-fixados em uma tabela e, ressalte-se, chegou a prever a data da própria morte. Diga-se que quase a acertou. 

Pessoa era criatura das mais fascinantes, segundo consta. Chegou a ter quatro heterónimos, para assinar aquilo que o alter ego escrevia. Há quem afirme que seus quatro heterónimos foram inspirados nas quatro estações do ano e por influência da sua astrologia. 

Como Raphael Baldaya, Pessoa escreveu diversos textos sobre astrologia e dizem que sua encarnação em Baldaya era de matar de rir. Descrevia ele o tal astrólogo como um homem de longas barbas brancas e o qualificava também como místico e sebastianista*, - vejam só! 

Alberto Caeiro, Álvaro Campos e Ricardo Reis eram os outros três heterónimos de Fernando Pessoa. A cada uma dessas personalidades fictícias criava uma data de nascimento, uma profissão, formação etc., e eles comunicavam entre si. Um chegava a ser discípulo do outro e tal - mas, veja bem, tudo isso na ficção criada pelo verdadeiro Pessoa. 

Vez por outra, quando ao passar pelo emblemático bairro do Chiado, em Lisboa, eu paro no Café A Brasileira, onde uma estátua do Pessoa lhe faz homenagem. Ali tomo um café, ou cerveja, só para ter o prazer de também pisar aquele que foi um dos lugares prediletos do gênio literário que nos legou um patrimônio comum de cultura, em língua portuguesa. 

Não pensem, caros leitores, que sou especialista em Pessoa ou que já li todos os seus livros. Não é esse o caso. Sei, porém, da dimensão de quem falo e, diante de tamanha magnificência, rendo-me e o aplaudo de pé. 

Para fechar esta minha crónica, segue-se aí um pingo de perfume da antologia poética, não de algum dos seus heterônimos, mas do próprio Fernando Pessoa: 

O poeta é um fingidor 
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor 
A dor que deveras sente.

*Sebastianismo: crença mística, propagada em Portugal logo após o desaparecimento de D. Sebastião, 1554-1578, segundo a qual este rei, como um novo messias, retornaria para levar o país a outros apogeus de glórias e conquistas. ( fonte: História da religião); expressão sinônima de teimosia, caturrice, misticismo, apego anacrônico ao passado político superado que se quer restabelecer.  

Nota 1: Oportunamente, não me furtarei à oportunidade de, humildemente, tentar homenagear outros monstros sagrados da literatura em língua portuguesa, como : Guimarães Rosa; Machado de Assis; Drumond; Saramago... (dentre outros tantos talentosíssimos escritores)  
 
Nota 2: Fernando Pessoa, descobrimos depois desta crónica, usou muitos mais heterónimos. Há quem afirme tenha sido ao menos 64. 
    
Wan Lucena

terça-feira, 2 de março de 2021

A Humanidade tem jeito

 Vi na revista eletrônica, Turma da Barra, da qual tenho grande honra em ser um dos colunistas, uma estória ocorrida na minha cidade natal, Barra do Corda. Trata-se de uma jovem senhora, cujo nome prefiro não citar, pois não lhe pedi autorização, cheia de amor ao próximo e sabedora que, muito além de ficar no discurso hipócrita da caridade de sacristias, podia efetivamente arregaçar as mangas e fazer o bem.


Pelas ruas de Barra do Corda, desde o diabólico plano Collor, havia um senhor que fora à ruína financeira e, consumada a falência, passara a morar nas ruas como um mendigo. Essa moça o convidou para morar em sua própria casa e o tratou com toda dignidade e respeito, como se um parente ou um familiar fosse. A revista registrou que ela elogiava os hábitos de higiene do antigo e maltrapilho mendigo e as fotos de um “antes e depois“, da revista TB, demonstram uma transformação simplesmente incrível.


Quero falar, no entanto, é desse "arregaçar de mangas" que leva os indivíduos a fazer o bem, independentemente de suas religiões, crenças e/ou diferenças que possam existir, àqueles que necessitam de uma boa ação.


É público e notório que o bem que uma mão faz a outra jamais deva saber. O intuito é impedir que o ato se esvazie pelo ralo da vaidade, eu sei. Ocorre que atos de maldade , principalmente os mais bárbaros, frise-se , enchem os jornais televisivos ou escritos, 24 horas do dia. Muitos são os que se deliciam ao ver tais estórias, enquanto abrem suas bocas, estupefatos ante a iniquidade.


Atos de bondade raríssimas vezes são mostrados e, se não são mostrados, não inspiram aos demais, não servem de exemplos a serem copiados. Assim, parece-me que passou da hora de se reconhecer que os atos de generosidade não deveriam ser escondidos. A argumentação em contrário serve muito mais aos que nada desejam fazer e, assim, não venham a ser incomodados ou interpelados com cobranças de fazer o que de fato não desejam.


Quem não se sensibiliza ante a humilhação alheia, seja ela qual for, sociopata é. Quem não se apieda com o sofrimento alheio por não se pôr no lugar de outrem, ou seja, é absolutamente incapaz de sentir empatia, sociopata é.


Eu, a meu modo, também vigio por ajudar a quem possa, sempre que a oportunidade surge. Sei que são muitos a se aproveitar da bondade alheia e outros tantos se passam por necessitados só para arranjar uns trocados, a fim de poderem encher o coco de cachaça, mas, vez por outra, temos umas surpresas.


Assim que cheguei a Lisboa, já se vão quatro anos, ao sair da agência do Banco do Brasil, bem na praça Marquês de Pombal, esbarrei com um gajo* alto, com idade acima de 60 anos, barba longa e branca, com uma mochila a tira-colo e jeitão de pessoa de bem com a vida, mas que, aparentemente, precisava de um teto ou de uma toillete**, para proceder a um alinhamento, apenas para passar um pente nos cabelos, visto que a mim não me parecia precisar também de um banho. Estava até limpinho, o gajo... Ele estagnou-se e curvou-se com simpatia...


- Por favor, pode passar, meu senhor.


- Pode passar o senhor, meu senhor – respondi, a reconhecer-lhe a humildade e nobreza.


- Brasileiro, não é? Adoro-vos! Brasileiro é o povo mais amável e simpático do mundo. Eu conheci o Brasil quando muito jovem, quando marinheiro. Estive por Manaus, Belém do Pará e outras cidades do Brasil. E as brasileiras? Ah... As brasileiras! Mulheres mais lindas no mundo não há! - Disse-me ele com simpatia e começamos a descer a Avenida da Liberdade, enquanto conversávamos animadamente.


Ele me explicou que morava pelas ruas fazia muito tempo e, ao ser indagado se era feliz, respondeu-me de forma convincente que sim. Eu, compadecido, ofereci-lhe uma nota de 10 euros, a qual ele recusou de forma veemente e causou-me não só surpresa, mas espanto.


- Como assim? O senhor pode almoçar bem com esses 10 euros, meu Senhor. E o faço de coração. Por favor, aceite-os! - Insisti eu.


- O senhor se importa, não é? - Perguntou-me ele, emocionado - Eu já almocei e não tenho fome, mas agradeço muito o seu gesto de generosidade, que os céus estão a ver... - e se foi sem nada querer de mim, que não fosse aquela circunstancial troca de palavras.


Ainda ontem, já quase meia-noite, aqui perto de minha casa, numa saída com o Karl, meu cão mudo, fui abordado por um rapaz cheio de saúde, o qual vejo com frequência aqui pelas redondezas. Contou-me aquela velha ladainha cansativa de que o seu carro estava de tanque vazio logo ali, e que ele não tinha dinheiro para gasolina, e que estava a pedir a uns e outros alguns trocados para poder abastecer e ir encontrar-se com sua esposa "coitadinha", do outro lado do rio Tejo e bla-bla-blá...etc. Eu o informei que estava desprovido naquele momento enquanto percebia o seu hálito alcoólico, mesmo estando ele a usar máscara, por conta da pandemia.


O gesto de bondade da minha conterrânea cordense requer muita coragem e amor. Não deixa de ser um risco colocar um estranho a morar dentro de sua casa, mas soube que ela o observava fazia algum tempo e que sabia da sua estória, conhecia sua índole e, quem sabe, seus familiares. É mesmo um ato que requer cuidado, muito cuidado, mas acima de tudo é ato que declara: a humanidade ainda tem jeito.


Wan Lucena


*Termo informal usado em Portugal como sinonimo de fulano, sicrano, cara, rapaz, pessoa do sexo masculino quando não se sabe ou não se deseja mencionar o nome da pessoa.


**Termo francês usado para banheiro, bem como, a ação de se lavar, pentear ou maquiar e cuja pronúncia é “toalete”.