sexta-feira, 30 de julho de 2021

Decadence Avec Elegance

 

Fico a me perguntar se não estaria a tal discrição para a covardia, assim como a exibição para a ousadia. E aqui não estou a falar daquela discrição da elegância que, dentre outras coisas, passa por não se importar com a vida alheia. O que seria de nós enquanto humanidade sem a exibição dos artistas e suas artes, por exemplo. Na arte, o que o artista quer é aparecer ou fazer aparecer a sua obra. Muitos são os que querem aparecer a qualquer custo, mesmo que em cenas grotescas e ridículas, como se bastasse uma melancia na cabeça para tornar-se artista. Arte não é mero aparecimento de gente vaidosa e sem conteúdo. 

 

Aquele que vê uma mulher a ser espancada pelo marido; o vizinho que houve o choro desesperado da criança na casa vizinha, etc., e, em nome da discrição,  nada faz, renega a sua própria humanidade. São maioria os que pensam que intervir seria uma intromissão indevida , ainda que em favor da integridade física e psicológica de outrem. Aliás, o que mais se ouve é que "em briga de marido e mulher, não se mete a colher". A criança que chora não é a sua, portanto não lhe diz respeito.


Aqui em terras lusas esse tipo de coisa ocorre de forma um pouco diferente. Os animais, por exemplo, estão devidamente protegidos por lei e até um partido político, denominado PAN - Partido-Animais- Natureza,  com deputados de forte expressão em  âmbito nacional, há. As Juntas de Freguesias, prefeituras no Brasil, têm departamentos específicos que atuam na proteção dos animais. Além de oferecerem tutela legal, comida, água e veterinários aos animais de rua, dão a mesma assistência a quem tenha animais em casa, mas não possua condições financeiras para bem cuidar-lhes.

 

A sociedade portuguesa, quase sempre muito discreta, tem à sua disposição, linhas telefônicas 24 horas, de serviços de denúncias anónimas de todos os tipos. Basta uma ligação telefónica a informar que alguém ou alguma coisa está em perigo e, prontamente, o Estado entra em ação, seja por meio de suas forças policiais ou de socorro, e também por todos os demais tipos de assistência que podem ser jurídica ou apenas alimentar. O cidadão português tem plena consciência de que é seu dever denunciar as injustiças que perceba ou de que desconfie.

 

Uma situação complicada e que se agravou com a pandemia é a dos imigrantes ilegais. Eles são muitos. Solitários, aos casais ou famílias inteiras, a morar em carros, estacionados aleatoriamente e procurando não chamar a atenção das autoridades ou dos transeuntes. Fazem a higiene pessoal  com lenços umedecidos em banheiros de supermercados. Quando são flagrados pelo Estado, a deportação é a "medida humanitária" mais utilizada.


Quanto à tal discrição que diz: "isso não é problema meu, portanto não me meto", pergunto-me: onde foi parar a empatia de gente que se diz cristã e que não sente a dor alheia nem a de um animal a ser maltratado?

 

Julgo que a discrição, muitas vezes, estaria para aquelas pessoas que querem se esconder, por algum motivo. Nesses casos é pura covardia e conformismo. Talvez queiram esconder as suas vergonhas, as suas feiuras, as suas nojeiras. 

 

Há essa outra gente que quer mesmo é ser estrela. Eles são ousados. Assim sendo, acho que é mais louvável quem gosta de aparecer por meio do talento que tem, do que aquele que mantém a tal da discrição. Se todos fôssemos "discretos", a vida seria uma chatice sem cor e beleza.


Cuidado, entretanto, para não ser aquele maluquinho esquisito que pensa que basta a melancia na cabeça e com isso pode ser artista e muito bem aparecer. Nesse caso, fica mesmo difícil de ver porque a coisa é muito brega, de mal gosto. Ressalte-se que há muito mau gosto e feiura se impondo como arte. 


Eu prefiro quem tenta aparecer, mesmo que seja com mau gosto, a quem escolhe se esconder da cena da vida, em nome da tal discrição. 


Discrição nada tem a ver com elegância. Elegância é outra coisa. Quem pratica a elegância, o faz até por dever, já que é ela que ajuda a agradar a quem nos vê ou nos recebe. Nesse caso, a elegância também é só mais uma forma de bem aparecer.

 

Decadence Avec Elegance (Decadência com Elegância), canta o artista, Lobão, em sua música, em muito bem aparece.

 

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos:  https://www.facebook.com/144971715668226/posts/1997890860376293/



quinta-feira, 22 de julho de 2021

Sopros de Milagres

SOPRO 1

 

Cortinas de veludo vermelho escarlate

Pesadas, rasgadas, manchadas e velhas

Tentam esconder a luz que revelaria todas as tuas vergonhas

As tuas cicatrizes, o teu rosto roto, marcado pela velhice

Cavidades  profundas, a tua boca sem dentes

O teu corpo corcunda pelo peso da mente 

que mente a própria idade

O teu olhar triste em tua cara carente

Nada disso te redime

Tu precisas te esconder da tua humana falência

Não suportas a luz da verdade 

Bendita perda de memória 

Sopro de milagre que tudo apaga, até os teus tolos pecados

 

SOPRO 2

 

Você se joga de um imenso precipício com asas mecânicas,  conduzidas por algum tipo de combustível. Você sabe que o combustível não é suficiente para o seu pouso em segurança. É muito provável que ele se esgote antes do fim do percurso. Mesmo assim, você se lança no voo da esperança de que, até a queda fatal, você verá tudo o que é de bom, todas as primícias da terra e todas as paisagens que você sequer imaginou. E você espera por um sopro de milagre no qual possa pousar suavemente e em completa segurança. Assim é a vida. Assim é o amor. A gente se apaixona muitas vezes por uma pessoa errada. A gente sabe que a pessoa não nos serve.  Que ela não estará conosco. Ainda assim, a gente ama, a gente se dedica,  a gente acredita que está a acontecer alguma coisa, algum sentimento que, na realidade, só está em nossas cabeças. Mesmo assim, insistimos na esperança de que, em algum momento, num sopro de milagre, a vida nos dê aquilo que tanto queremos: amar e ser amado!

 

Wan Lucena

 

 Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1992447280920651



segunda-feira, 19 de julho de 2021

Uma Crónica Nelson Rodriguiana

Como quase todo mundo que queria sair da pobreza extrema, naqueles anos, ele entrou num velho ônibus da Transbrasiliana e se foi para a cidade grande, levando duas mudas de roupas, uma no corpo e outra na mala. Ele tinha ganas de vencer, não era preguiçoso e havia estudado direitinho, mesmo que em colégios públicos.

 

Já na cidade grande, continuou na igreja a praticar a sua fé, já que vinha de família tradicionalmente evangélica. O rapaz não era muito dotado de beleza, mas arrumou uma namorada e andavam, para cima e para baixo, de mãos dadas.

 

Logo, passou em dois concursos e assumiu ambas as funções públicas. A vida se estabelecia e a pobreza ia ficando no passado.

 

A surpresa ficou por conta do anúncio do casamento. Surpresa dupla aliás, porque a moça já estava grávida.  Ele, desde menino, sempre foi efeminado. Todos sabiam que "aquilo não ia dar em nada", mas casaram-se com as bênçãos hipócritas do pastor... e veio um filho atrás do outro. O rapaz se mostrava um reprodutor inveterado e, ao contrário do que todos imaginavam, parecia mesmo era gostar muito da "fruta".


A dupla jornada de trabalho o poupava da companhia da esposa e da rotina do lar. Muitos anos se passaram e decidiu que, aos sábados, dia de folga, faria umas oficinas de pintura, teatro, artesanatos etc.... Uma maneira arranjada para ficar ainda mais ausente da companhia da esposa.

 

Certo dia, chegou em casa acompanhado de um rapazola moreno, lábios carnudos, cabelos encaracolados e músculos muito bem definidos. Apresentou-o à esposa como um amigo, colega de turma nas oficinas de arte, carente, muito necessitado mesmo, que se encontrava em situação vulnerável e a precisar de um teto e de um prato de comida, coitado! Faria um arranjo nos quartos e liberaria um deles ao rapaz. Com o consentimento da fiel esposa, os arrumos e improvisos se deram, e o rapaz ali se instalou.

 

Num dado domingo, depois da escola dominical, a esposa precisou se ausentar para uma obrigação. Os filhos estavam nas atividades vespertinas de domingo na igreja. Aquelas visitas dela, sempre aos domingos de tarde, a parentes de uma cidade vizinha, era quase uma rotina. Ela sempre voltava ao fim do dia.  Ocorre que, depois de já se encontrar a meio caminho da viagem, se lembrou que havia esquecido uma encomenda que deveria entregar a um parente e retornou à sua casa.

 

Entrou sem fazer alarde e foi direto para o seu quarto para pegar a encomenda que, sabia, estava numa gaveta do armário. O mundo ruiu ao ver a cena na própria cama. Na impactante e inesperada performance, seu marido estava por baixo, para piorar a cena. Escandalosa ela sempre fora, ademais sempre desconfiara da macheza do próprio marido. Sabia que ou casava-se com ele ou ficaria no caritó.

 

Ela nunca foi das mais discretas, muito pelo contrário, era tida por fofoqueira. Era com muita mangofa e desprezo que jogava no ventilador toda aquela "merda". Falava a todos daquela cena à qual seu marido a havia submetido sob o próprio teto, na sua consagrada e ungida cama. Queria uma vingança rápida. O escárnio e o constrangimento do próprio marido foi a maneira arrumada. Ao contar a cena, era perceptível que estava muito próximo de sofrer uma síncope nervosa. Foi horrível!

 

O rapazola desapareceu das vistas da família. Não sei se também das vistas dele. Ele, porém, parecia impávido colosso e transparecia até um certo prazer ao perceber que a "merda" respingava também na cara da sociedade hipócrita, que o obrigara, bem como a muitos outros, a se submeter à prática de comer jaca ou jiló, quando todos sabiam que preferia uvas e tâmaras. Já que o caldo entornara, e agora somente lhe restava sair de casa, ele assim o fez.

 

- Uma ato vil e  infame - diziam quase todos que a ouviam.


- Maldita sociedade hipócrita! Maldito machismo! - Pensei eu, enquanto ouvia consternado e constrangido o seu relato.


Não fosse o machismo, todos poderiam ser livres para viver o que realmente são, sem se sujeitarem a nada que não lhes respeitasse a essência. O machismo já causou muitos danos e desestruturou famílias inteiras. Sem falar nos traumas que nunca cicatrizam e que, na maioria das vezes, ocorrem quando os seres ainda são crianças impúberes.


É bem verdade que as coisas mudaram e acho que para melhor. Mesmo que com muita vergonha, não são poucos os que agora podem viver suas vidas em toda a sua expressão e que não se rendem às regras sociais, e idiotas, ditadas pelo machismo. Dizer que nos livramos por completo de tal imposição seria tapar o sol com a peneira. Muitos são os que ainda vivem vida dupla, escondidos atrás de casamentos de fachada, a fazer infelizes muito mais que a si próprios.


A simples edição desta crónica já é um ato de coragem, em face do qual os ditos hipócritas bufarão de raiva e as senhoras pudicas da igreja corarão. Sugiro-lhes, todavia, encarar o espelho e, com muita honestidade, olhar sem covardia se na sua casa não estariam todos envolvidos numa trama rodriguiana, como esta que lhes acabo de contar.


Não pense, minha senhora, que por seu marido não manifestar qualquer gesto efeminado, ou por muito bem lhe servir à cama, estaria livre de ser a próxima personagem de uma das minhas crônicas Nelson Rodriguianas, mais à frente. 


Wan Lucena


Nota: Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real, terá sido mera coincidência.”  

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

 


quarta-feira, 14 de julho de 2021

O Guardião das Fotos Amarelo-envelhecidas

 

Estava escrito nas estrelas do seu universo interior. A primeira vez que ele viu aquela cidade de nome exótico foi quando olhava um mapa 4 Rodas do Brasil. Isolado, num imenso verde floresta,  um nome muito sui generis: "Barra do Corda". 


- Que nome exótico e excêntrico para uma cidade. - Pensava ele aos 7 anos de idade. 


Mais tarde, em Fortaleza, sua cidade natal, quando o pai, camioneiro,  procurava fretes para tirar o sustento da família, ouviu alguém a informar:


- Só tem frete para Barra do Corda


De novo o nome daquela cidade lhe batia no ouvido como o sino da Igreja Matriz. No resumo do seu universo interior, seu cosmos , mais uma vez, ouviu o click da engrenagem do destino a lhe informar que um dia... um dia...


Quando jovem, a trabalhar no INSS, foi deslocado para uma tarefa em Imperatriz. Por lá ficou alguns anos, até que a tarefa acabou e lhe informaram que teria de voltar para Fortaleza ou aceitar transferência, indo cumprir ofícios laborais em Barra do Corda. Quem seria louco de trocar Fortaleza por uma cidadezinha de nome esquisito, apenas um ponto perdido no mapa do Brasil, no meio do nada do Maranhão? Ele não titubeou.


- Vou para Barra do Corda! - Disse, enquanto o coração batia como um bumbo e o arrepiamento dos pelos eriçava seus desígnios. Pressentia que não era o acaso, ele sabia que era coisa da espiritualidade. Talvez um resgate cármico.


No ano de 2007, chegou à cidade. Hospedou-se na pousada do Dorgival, no Sitio dos Ingleses. Viu, pela primeira vez, o Rio Corda, aos fundos da referida pousada, a correr caudalosamente. Tanto se encantou com aquelas águas cristalinas que decidiu dar um mergulho naquela mesma hora. Deixou-se levar pelas águas abençoadas que o envolviam e lhe enchiam de alegria e de esperança o coração


O que seria um mergulho virou uma "descida" pelo rio, que, apesar de não conhecer, lhe parecia estar conduzindo em completa segurança, informando-lhe que ali era o seu lugar, onde, em alguma outra vida, vivera. Ao chegar ao encontro dos rios, no Guajajara, todas as suas dúvidas se dissiparam. Eram então só certezas. Ele era mesmo dali. Apenas voltara para a cidade onde, com certeza, vivera, em alguma vida passada.


Um dia, enquanto andava pela cidade, tropeçou num calhamaço de fotos velhas e amareladas pelo tempo. Colheu-as com cuidado - com um dó imenso - e pensou que quem jogara tais relíquias no lixo o fizera por completa apatia. Precisava, entretanto, matar a curiosidade e foi perguntar aos amigos se conheciam aquelas pessoas das fotos. 


Havia uma foto que mostrava um comício com o então candidato a prefeito, Fernando Falcão. Na mesma foto estava Dona Aurora, sua avó. Bateu-lhe, de ímpeto,  uma imensa curiosidade, aquele espírito de historiador, intuitivo e sensível, a perscrutar minuciosamente o quotidiano pretérito daquela comunidade. Queria saber qual a importância histórica daquelas pessoas, bem como de todas as outras que apareciam nas fotos.


Passou a investigar e, buscando mais fotos, a guardá-las em discos rígidos e em arquivos virtuais. Nas suas redes sociais passou a publicar as fotos antigas e a contar belas e velhas histórias por trás delas. Hoje, sabe que possui um tesouro de relíquias. Um baú que abre todos os dias, dentro do qual mergulha como se fosse no Corda. Assim, viaja na imaginação enquanto vê as fotos velho-amareladas ou em preto em branco. 


- Eu não sei, mas pode ser uma espécie de missão... e eu a estou cumpri-la. Não sei se bem ou mal, porém estou a desenvolver que está escrito no meu coração, enquanto desci boiando nas águas do Corda. Eu acho que minha essência é de historiador. Por causa de minha humilde colaboração com a cultura da cidade, recebi o honroso título de Cidadão Barra-cordense.


 ...mas, continuando...


- Para tudo existe um propósito e não é por acaso que estou aqui.Sempre ando atento e de olhos bem abertos, a buscar, jogada pelo chão, alguma relíquia histórica desta Barra do Corda que tanto amo. 


Ele se preocupa também, e muito, com a destruição dos casarões centenários que, hodiernamente,  são lançados ao chão, num único ato,  impiedoso e brutal,  de quem desconhece o respeito à memória coletiva e que, em nome do progresso, passa por cima de tudo e de todos. Tanto ele se preocupa, que acaba de assinar uma petição pública que visa impedir a demolição do imóvel conhecido por "Bangalô". 


Álvaro Braga é o mais genuíno barra-cordense, nascido alhures. Tem pela sua cidade o respeito e o amor que muitos nativos não lhe têm. Merece todas as honras este cavaleiro, verdadeiro guardião da memória coletiva da minha querida cidade natal, Barra do Corda.


Wan Lucena


Nota do autor: a usar o censo de oportunidade, disponibilizo o "link" pertinente à Petição Publica referenciada, relativa  ao “Bangalô”: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT109233

 

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos