quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O Quarto Buda

 

O apartamento para o qual me mudei recentemente, apesar de ser térreo, tem um balcão-varanda um tanto quanto pitoresco, que fica para dentro do quintal de um vizinho.

- ¡Hola! ¿Qué tal?

Cumprimentou-me a vizinha, uma venezuelana a fumar um cigarro atrás do outro.

- Lindo, o seu Buda!

 

Falei à venezuelana, enquanto lhe apontava o velho e desgastado Buda sobre uma mureta. Aproveitei para mostrar-lhe os três budas que enfeitam a minha sala.


Eu olhava o Buda dela a levar sol e chuva, já descascado pela ação do tempo e pensava: eu te resgatarei!


Pouco tempo depois, ela veio me dizer que estava a se mudar para a Inglaterra e que o velho Buda, caso eu o quisesse, seria meu.


- ¡Un regalo para ti!


O Buda veio até mim dessa maneira. Eu já tinha traçado em minha mente que o pintaria de azul. Azul da cor do mar. Azul da cor do céu. Azul da cor dos teus olhos. Da cor da minha espiritualidade.


Agora o Buda está sobre um aparador e em local que parece que fora projetado para recebê-lo.


Eu, que já fui evangélico por 27 anos, ainda ontem, entrei numa dessas igrejas católicas que aqui há às centenas, cada uma mais linda que a outra. Dobrei os meus joelhos, fiz o sinal da cruz três vezes, rezei três padre-nossos e três ave-marias. Pedi por você, pedi por mim, pedi por Barra do Corda. Pedi pelos famintos do meu Brasil e pela justiça, espada natural e cósmica, àqueles que enfiaram as nossas cabeças nessa sarjeta. Rezei pelas mulheres ensanguentadas, a colocar miolos de pão em suas vaginas por não terem acesso a um absorvente íntimo.

 

Eu não sou ateu. Eu sou o que você quiser. Eu sou amor. Eu sou espada. Eu sou ambiguidade. Eu sou quem sou. Tudo depende da hora e da maneira como o encontro acontece



Eu não sou budista. Eu não sou cristão. Eu sou gente e porto a minha espiritualidade que independe de religião.


Eu não resgatei o Buda. Ele veio até mim.


Wan Lucena

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Dona Davina

 

Aquela Dona a debulhar favas, com seu quibano entre as pernas, enquanto seus filhos brincam felizes no terreiro limpinho e bem varrido, às custas da vassoura de mato relógio. A fumaça que perpassa o telhado de palha de coco babaçu e que espalha o cheiro do azeite misturado com as essências das ervas, que ela planta e colhe em canteiros suspensos, os quais ela mesma construiu no quintal, e que rega à mão todos os dias com a água que buscou na lagoa.

Um jacá de milho está à espera de ser debulhado, logo mais à noite, e vai alimentar as galinhas, porcos e o único cavalo, amarrado pelo cabresto no velho pé de juá que faz sombra à frente da casa. O saco de arroz, ainda em cachos, colhido na roça no dia anterior, espera ser pilado para poder ir à panela juntamente à abóbora suculenta que está na cozinha, ao pé do velho fogão à lenha.

O marido está na roça, chegará apenas na boquinha da noite e trará uma melancia e uma penca de bananas, para ajudar a dar sabor à janta que será servida em pratos de alumínio limpinhos.

Ela sonha em dar estudos para os filhos e sabe que terá de sair daquela segurança bucólica que lhe alimenta, assim como aos filhos e ao marido. Tudo de que precisam, extraem da própria terra. Aquele solo rico não trará a educação aos filhos e nas redondezas não há escola.

Terá de vender tudo, mesmo a contragosto do marido, que pensa que educação é ter bucho cheio e nada dever a ninguém. A cidade trará perigos e carências e ela sabe que muito terá de lutar para poder alimentar os filhos, mas ela também sabe que, com muito suor, dificuldades e lágrimas, conseguirá educar os filhos, mesmo que em escolas públicas.

Ela não tem profissão, mas tem força e coragem. Ela terá de morar perto do Rio Corda para, ao menos, poder lavar roupas para as madames da cidade, por alguns trocados. Depois de muita roupa lavada, conseguiu um emprego de zeladora do Colégio Dom Marcelino, onde acabaria por se aposentar. Voa alto e vai-se para perto da prole na cidade grande. Leva também o marido.  

Agora está a descansar e, em completa segurança, a viver a vida que talvez jamais sonhara. Hoje, ela é a madame que dorme sem quaisquer preocupações com as dívidas, pois não as tem. Dorme sossegada em bom colchão, envolta sob lençóis limpos que nem foi ela quem lavou e que, de tão finos, aceita o toque do tecido na pele como se Deus estivesse a fazer-lhe uma carícia.


Wan Lucena


Esta crónica foi publicada originalmente na revista eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos:

 https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/2052723904892988?comment_id=2052994151532630&notif_id=1633629376279894&notif_t=feed_comment_subscribed&ref=notif



sábado, 2 de outubro de 2021

Um Sonho Apenas

 

Sonhei um sonho surreal no qual eu descia de um pequeno avião que fazia voo comercial duas vezes por semana de São Luís para Barra do Corda. O pouso foi suave e em pista de asfalto que mais parecia tapete. 

 

Eu saia desde o aeroporto e descia numa bicicleta alugada ali mesmo e seguia por uma ciclovia de primeiro mundo e que ia para todos os cantos da cidade. Eu estava de volta a Barra do Corda para conhecer a nova atracão do turística da cidade.


Estava inaugurada fazia pouco tempo, a romântica passarela ao estilo classico francês, em ferro leve verde bordô. Uma das entradas para a passarela se dava pelo Clube Guajajara, outra saia desde a outra margem do Mearim e a terceira entrada desde a outra margem do Rio Corda. 

 

Os turistas e demais cidadãos locais se locomoviam, encantados, pelo tablado de madeira, preso e suspenso na estrutura romantica de ferro, que tinha por base principal uma fina e discreta coluna fincada sobre a pequena ilha. Em nada a ilha fora danificada para receber a esquálida coluna. Ali instalaram alguns pequenos e charmosos quiosques que vendiam beijus, cocadas, cafés, sucos e laranjinhas congeladas em isopôs enfeitados, cuscuz de arroz e todas as demais delicias que somente a mulher barra-cordense é capaz de fazer.


Os turistas estavam às centenas, focavam suas câmeras e clicavam sem parar, na igrejinha linda que ficava lá encima do Morro do Calvário. Outros preferiam selfies ou o aleatório dos meninos a pular das pontes, de ponta ou em malabarismos de exibição gratuita e feliz.

 

Placas indicavam a todos que estavam proibidas as praticas criminosas dos jet-skis e das voadeiras e a presença de guardas ambientais era uma constante. 

 

Acordei do meu sonho e fui ver as fotos das praças Melo Uchoa e Maranhão Sobrinho completamente desfiguradas por uma poda, não sei se feita à foice, por alguém que nenhuma ideia de paisagismo deve ter.

 

Wan Lucena 


Esta crónica foi publicada originalmente na revista eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos:

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