domingo, 29 de maio de 2011

ENTORPECIDO PELO PECADO

ENTORPECIDO PELO PECADO

Eu achei o nome do blog de um amigo bastante significativo. Chama-se: ENTORPECIDO PELO PECADO. O título é impactante. Meu amigo é pessoa maravilhosa e não está aquém, em valores, de qualquer jovem de sua época. Entretanto, fiquei a pensar naquele título e na pessoa do meu amigo. A expressão, por si só, já nos leva aos conceitos bíblicos de céu e inferno.

O conceito de inferno em si já um pecado. Tal conceito é injusto para com o ser humano e para com a humanidade como um todo. Muitas doenças psicológicas estão atribuídas à opressão de falsos conceitos que foram incutidos nos juízos dos viventes. O pecado é um deles. Indivíduos atormentados a se auto-flagelar com os chicotes da culpa e da incapacidade de agradar a deus ao se perceberem incapazes de se absterem da condição humana que lhes é inerente.

Quem acredita no pecado, acredita em Deus e em Diabo, concluo. Que o puro é branco e que o sujo é negro. Que Deus mora acima das nuvens e o o Diabo nas trevas profundas e escuras.  O pecado atormenta a mente humana desde que foi inventado.

Deus seria magnânimo e perdoaria todo e qualquer pecado. Segundo consta: de graça. Mas não é tão simples assim. Você não pode desagradar a esse deus em nada. E aqui ele vai com "d" minúsculo mesmo. Deus, assim como o pecado, estou convencido, são criação humana. E não sou eu quem diz isso. Vários já o disseram.

Ele é exigente, ciumento. Você devo segui-lo cegamente, não devendo olhar nem para a direita nem para a esquerda. Ele morre de medo de você achar um deus mais interessante. Se você pecar, o inferno lhe está reservado. O pecado, em minha concepção, é a maior invenção do homem para controlar o outro.

É lógico que existem dois lados na vida. Você deve saber que há o certo e o errado, o bom e o mal. O errado não é pecado, assim como, o mal não tem cara. O diabo vermelho e com chifres é tão criatura quanto o deus de barba e túnica brancas que paira sobre as nuvens.  Escolhas você deve tomar o tempo todo, não resta dúvidas. É certo que quanto menos você errar nessas escolhas, melhor será o seu futuro. Mas é com erros que se aprende e se amadurece. Entretanto, não só com erros se aprende. Pessoas inteligentes ouvem muito, observam demais. Só por isso, já estão na frente dos demais.

E não pense que sou ateu. Não sou. Mas não posso descrever Deus. Não o Deus que está acima de tudo. O deus da bíblia... aqui ele vai com minúscula mesmo. É que eu o acho pequeno mesmo. Ele é tão pequeno que pode ser decifrado e conceituado. Não só isso. Acho-o mesquinho, ciumento, medroso, etc.. E a sua vingança? Tão vingativo quanto o pior dos homens. Um deus que muito se assemelha a qualquer um de nós. Ele tem os mesmos sentimentos dos humanos.

E sabe? Aqui eu vou colocar o Amor com letra maiúscula também. Acho mesmo que Amor é a chave. Quer agradar a Deus? Tenha amor para tudo e todos. Se tiver amor, já vale. E Deus, em sua perfeição, não nos condenará ao fogo eterno. Ele nos dirá mansamente: vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei.

Deus e pecado são ícones usados para o controle social. Conceitos falidos e egoístas, trazem infelicidade e medo a quem deles se torna prisioneiro. Para se libertar deles, segundo Richard Dawkins, duas hipóteses: uma inteligência acima da média ou se o discurso escravizante não foi muito bem elaborado e não se lhe incutiu como deveria. Não sei em qual das duas hipóteses me encontro. Ma estou em uma delas, GRAÇAS A DEUS!

Um abraço desse amigo com quem você pode contar quase e sempre.

Lucena

quinta-feira, 26 de maio de 2011

VAMOS VOAR



Vamos voar 
Leves como bolhas de sabão
Sem asas
Num só coração
Em um dia de verão
Ou de primavera
Ou de qualquer estação
Dá-me tua mão
Confia em mim
Eu confio em ti
Abre sorriso largo
Sem culpas ou receios
Ouve minhas palavras doces, elas só te bendizem
Minh'alma canta junto com a tua
Posso ouvir-te como se tu eu fosse
Como se eu tu fosses
Não te percas com inseguranças
Apenas confia
Prende-te a mim e solta-te!
Sente a minha mão à tua
Envolve-te comigo e seremos um
Por toda estação
Por todas as estações
Vamos voar juntos.
(Wanderley Lucena)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

SAUDADE

Adicionar legenda



"Saudade é um pouco como fome.
Só passa quando se come a presença.
Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco:
quer-se absorver a outra pessoa toda.
Essa vontade de um ser o outro
para uma unificação inteira
é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida".
Clarice Lispector

domingo, 22 de maio de 2011

PARA ALÉM DOS CAFUNDÓS

PARA ALÉM DOS CAFUNDÓS


Ela teve de voltar ao seu torrão na companhia da mãe, do pai e do irmão mais velho. Enfim, sua família. Durante a jornada se perguntava quem eram aquelas pessoas que compunham a sua família. Se pegou perguntando a si própria, em silêncio profundo, alheia à paisagem que lhe cercava naquele momento. Não percebeu a abelha preta e fedida que se lhe enroscar no cabelo. Zangada, a abelha zumbia ao tentar matar o que lhe seria o inimigo. A abelha podia zumbir á vontade pois Perpétua estava em outra dimensão.

De onde vieram aquelas pessoas que lhe acompanhavam?  Como vieram parar naquela terra? Quem eram seus avós? Onde haviam nascido? As respostas talvez jamais as teria. Era tímida por demais para perguntar o que fosse a seus pais sobre este assunto. Seu pai, apesar de mais sensível, nem sempre estava disposto a responder. Certa feita, depois de uma pergunta qualquer, respondeu-lhe:

- Vá procurar o que fazer, menina!

Ela sentiu o sangue vibrando em sua face e fazendo-a corar de vergonha.  A mãe não a respondia por falta de paciência mesmo ou porque a odiava a ponto de quase não suportar-lhe a presença. Enquanto ela voltava-se para dentro de si mesma, também, podia perceber crescer o rancor e o ódio por tudo e por todos.

Percebeu-se ficando adulta antes da hora e agradeceu por isso. O tempo passava e lhe crescia a certeza a certeza de que sua sina seria tão seca quanto aquela terra maldita para além dos cafundós. No entanto, Perpétua jamais satisfaria a sua curiosidade. Seus pensamentos, dúvidas e angustias jamais se externavam.

A jornada de volta foi longa para si. Ela o fizera a pé por todo o tempo. A carga estava por demais pesada para o coitado do jumento que trupicava das pernas. Todos se deslocavam calados. Não havia mesmo o que ser dito. Mas tinha uma bomba quase a explodir dentro dela. Uma ansiedade do tamanho do mundo. A revolta que queria gritar à mãe e perguntar o porque de tanto desprezo para consigo. Se ela a odiava mesmo ou queria apenas se entrosar com as mulheres do Oliveira. Não tinha noção de todo o mal que lhe causara.  Perpétua sabia que aquela lembrança horrorosa jamais se apagaria e que o peso em seu coração jamais diminuiria.

 Suas vistas turvavam e sentia sensações de desmaios. Entretanto, não deu alarme algum. Permaneceu segurando-se no jacá  da  mesma forma que segurava o choro. Ela não podia parar para se recuperar. Tinha de achar forças para continuar a caminhada. Se odiaria se seu irmão que seguia logo a frente, puxando o jumento pelo cabresto, percebesse seu fungar de choro. Não queria receber qualquer afeto. Não saberia recebê-lo.  Sentiu gosto de sangue na boca e o ar lhe faltando ao pulmão. Deu-se um baita tapa no próprio rosto. Todos pensaram que ela espantava as mutucas que empestavam as canelas do jumento e o faziam surrar-se a todo o tempo com a própria calda.

As tais mutucas não respeitavam a pernas de ninguém, na verdade. Todos tinham de se proteger abanando as pernas, o tempo todo, com galhos verdes. Mesmo assim, vez em quando, sentia-se a ferroada da maldita, desesperada por sangue. Quem sofria era o coitado do jumento. Sua calda não era suficiente para espantar o enxame de mutucas e elas lhe atacavam nas pernas da frente e pelo pescoço onde o seu rabo jamais alcançaria. Mas sentiu-se grata à existência delas por lhe disfarçarem o estalo da palma da mão em seu próprio rosto.

A família levava peixe para uma semana. Levava também, farinha, azeite de coco babaçu,  abóbora, macaxeira, um cacho de banana murici, macaúba, cachos de pitomba, carambas etc..  e as trouxas de roupas lavadas, parte delas ainda úmidas.  Ela trazia sobre si uma carga bem mais pesada que a daquele coitado jumento, voltava com o peso do desprezo de todos.

Uma alma bondosa poderia dela se compadecer, alguém poderia ver-lhe o âmago sofrido e negro, a alma que chorava e coração dilacerado. Uma criatura bondosa a levaria daquele  lugar e lhe daria afeto, carinho, educação, comida e roupa decente. Perpétua sabia que esse seu desejo jamais se tornaria realidade. Ela não podia se enganar. Sonhar era ter de conviver com a frustração. Encarar a vida, nua e crua, era a sua única opção.

Chegaram em casa e a encontraram como a haviam deixado. Por ali ninguém passava mesmo. Não haviam ladrões ou malfeitores. A casa esta fora da rota de todo mundo. Os tropeiros eram os andantes mais prováveis, mesmo assim, nunca nenhum grupo por ali passou a pedir uma caneca d'água.  E mesmo que um deles por ali chegasse, ao ver a penúria daquela casa, logo seguiria caminho sem nada pedir ou levar. Nada de valor havia naquela choupana velha que mais parecia uma tapera abandonada.

O fogão de lenha foi acesso e a fumaça subiu céu acima. Já era noite e Perpétua sabia que o sono não lhe chegaria. Sua mente inquieta a impediria de dormir. Relembraria mil vezes as cenas vividas no Centro Velho.

Decidiu ir para o terreiro em frente a sua casa e observar o céu. Ante o céu estrelado permanecia a sua agonia e os seus presságios lhe atravessavam a alma como facas em fogo. Tinha medo do futuro. Sabia que as coisas piorariam para  si. Era questão de tempo. Estava condenada sem saber qual crime cometera ante os homens e qual pecado ante a Deus.  As lágrimas rolavam pesadas no rosto ainda infantil.

No, seria se não houvera sido concebida. Jamais viria à luz por vontade própria. Deus, tão misericordioso, nem precisaria se dar ao trabalho lhe tirar toda a tristeza  ou de lhe preencher todas as lacunas e, pacientemente, lhe daria resposta a todas as perguntas. Todos dormiam em suas redes quando ela voltou para a casa sentindo o mesmo peso.

Como já previra, mais uma noite sem dormir. Ouviu o galo cantar e finalmente adormeceu para acordar em seguida com o barulho do milho seco que estava sendo despejado no balde velho de alumínio. A ração dos porcos. Seu irmão obedecia a mesma rotina toda madrugada. Levantava o saco e o despejava no balde lentamente. O barulho sempre vinha logo depois do cantar do galo. Ele não tinha a menor intenção de fazer algum silencio. A intenção era mesmo infernizá-la. Fazer-lhe acordar mal humorada.

A dor no estômago a estava matando quando se dirigiu ao velho fogão feito de barro. A lenha queimava e a fumaça empretejava os caibros e as palhas que cobriam a casa. O velho bule de esmalte sobre a grelha mantinha morno o café ralo. Ela tomou dois goles que lhe desceram como pedras garganta abaixo. Nada mais para acompanhar o café da manhã a não ser a farinha de puba que ela dispensou por não estar com a minha vontade de forrar o estômago. Os olhos remelentos foram lavados com uma caneca d’água. Os dentes foram limpos com jalapa na velha escova de dentes toda esfarrapada.  A jalapa era o pó extraído da casca de uma árvore e que fazia as vezes de creme dental. A casca da árvore era triturada até virar um pó que fazia uma espuma ao ser esfregada contra os dentes e dava a sensação de alguma higiene.

Ela estava toda entrevada. Tinha dificuldade nos movimentos, pegou a coité cheia de milho seco que ela mesmo debulhara da espiga e, ainda, grãos crus de arroz. Foi para os fundos da casa, para o quintal poeirento levando a arapuca feita de galhos secos.  A armou com cuidado e voltou para casa.  Quando o sol estava no meio do céu, voltou ao local e pegou a rolinha magra que se debatia, presa na arapuca. Era só mais uma rolinha. Bem que podia ser uma pomba avuaçã, uma nambu ou uma juriti. Mas a sorte lhe trouxera para o almoço apenas aquela rolinha.

A natureza insistia em não ser-lhe pródiga. Depois de quebrar o pescoço da avezinha, depenou-a, a abriu-lhe as costas, sacando-lhe as tripas e os demais miúdos. Salgou-a e a estendeu sobre a grelha. O cheiro era bom e abriu-lhe o apetite por fim. Dividiu o pequeno passarinho com seu irmão.Comeram acompanhada com farinha de puba. Mas tarde, quando a fome apertou novamente, quebrou tucuns e os comeu com dificuldade, haja vista, a castanha ser dura por demais.

Seus pais haviam saído logo depois do café e não voltariam com o por do sol. Tinham ido para a roça. Seu irmão ficara com ela, como de costume. Nada haviam deixado para o almoço. Sabiam que os filhos seriam capazes de se virarem sozinhos. Que comeriam barro, se preciso fosse.

terça-feira, 10 de maio de 2011

A ORIGEM

Ela sentia necessidade de banhar-se em água corrente e abundante. Estava farta de banhos de cuia e de lavar-se com apenas uma lata d'água. Pensava em voltar ao Flores. Desejava reencontrar a negra Maria. Talvez, ensaboar-se com seu sabonete cheiroso. Conversar com ela. Ouvir-lhe a voz a cantar alguma cantiga de roda. Sentir o abraço caloroso dos braços gordos daquela negra de coração tão bom.

Ainda era dia, quando ela, acabrunhada, com medo da reação negativa de Zé Bento, falou a ele, escolhendo as palavras, para perguntar se podia ir ao Flores. Nervosa e com as mãos geladas fez força para que a voz saísse na entonação certa.

- Amanhã vou ao Flores, lavar a roupa suja.

Surpreendeu-se ao ouvir a própria voz. Soou como um comunicado. O tom era imperativo. Imaginou que as suas sobrancelhas estivessem franzidas e que isso pioraria a sua imagem de autoritária. Torceu para que Zé Bento não lhe maltratasse com uma resposta ríspida e que não a impedisse daquele intento.

Ele comia um pedaço de cana. Cuspiu o bagaço e, sem olhar para ela, perguntou-lhe com a voz mansa e suave:

- Você tem certeza?

- Tenho sim. Não tem perigo nenhum. Sei o caminho. Vou de manhãzinha e volto no final do dia. Lavo a roupa e trago as cabaças cheias. 
 
Respondeu ela, torcendo para que ele não obstasse.

- Pois então vá. Eu tenho que trabalhar na roça. Não posso estar contigo, mas saímos juntos e lhe deixo no porto.
 
Informou-a Zé Bento, já que ia passar a semana trabalhando para os Oliveira.

Ela nunca fora de rezar, mas naquela noite ela se pegou pedindo a Deus, que a ajudasse naquela empreitada. Que Ele fizesse com que a negra também fosse lavar a roupa e que a pudesse encontrar.

Ela preparou o frito ainda naquela mesma noite. Quebrou os ovos e os fritou em azeite de coco babaçu. Misturou com a farinha de puba e botou em uma velha panela, a qual envolveu com um pano que lhe segurava a tampa e impedia que o frito derramasse. Pôs tudo nos jacás, a roupa suja, uma faca peixeira, o caniço para pescar, a cabaça d’água e tudo o mais.

O sol ainda não tinha raiado quando ela pegou a estrada, sentada na cangalha. O jumento ia rápido como se nada levasse em suas costas. Os dois jacás não levavam quase nada mesmo e Perpétua era coro e ossos. As mutucas, uma peste, às centenas, insistiam em sugar o sangue nas pernas do animal, fazendo-o surrar-se com o próprio rabo em chicotadas frenéticas.

Durante todo o trajeto ela desejou, ardentemente, por benção de Deus, ver a negra Maria. Sabia, no entanto, que a possibilidade de tal encontro era por demais remota e, se a visse, era mesmo por puro milagre.

O porto ao qual se dirigia, ainda bem, não era o das Oliveira. Não queria reencontrá-las jamais. Além disso, não era sábado aquele dia. Ao menos que ela ainda se lembrasse vagamente, aquele dia devia ser segunda-feira. Não encontraria as Oliveira. Não era o dia que elas lavavam as roupas e, mesmo que fosse, não se aproximaria do porto delas. Iria agir com a maior discrição. Bateria a roupa devagar, sem tanto barulho.

Depois de umas duas horas de caminhada, a vegetação começou a ficar mais verde e o ar foi se tornando mais úmido. Apenas mais alguns minutos e ela estaria no porto, lavando a roupa. Iria tomar um bom banho, iria tentar pegar uns piaus cabeça-gorda para almoçar e, ainda, levaria alguns para casa.

Ao descer a ladeira em direção ao porto, olhava esperançosa, intentando ver Maria, no entanto, nada viu ou ouviu, a não ser os macacos-prego nos galhos das árvores. Se Maria ali estivesse, estaria do outro lado do rio e, certamente, já teria ouvido a sua cantiga. Sua esperança se esvaía. Mas se visse Maria, pensou ela, com certeza atravessaria o Flores de um pulo só. Queria fazer muitas perguntas à negra. Tinha vontade de contar-lhe tudo. Sobre sua vida, sobre sua saga, seus segredos. A negra lhe ofereceria gentilmente o sabonete que cheirava a flores e ela tomaria um banho cheiroso.

Deus não ouvira suas preces. Zé se foi e ela ficou sozinha. O porto estava mesmo sem viv'alma. Desceu a carga do jumento e o amarrou às margens do rio. Ele logo passou a pastar depois de beber muito nas águas correntes. O capim ali era verde e era manjar para ele, com certeza. A carga já havia sido arriada. Tirou a pouca roupa e a ensaboou num tronco que usou como tábua.

Ouviu barulho de pedregulhos rolando ladeira abaixo na outra margem do rio. Ouviu passos de cavalo. Seu coração acelerou-se ao pensar que Maria estava chegando. Ela se surpreendeu, ao ver o cachorro que chegara primeiro do que aquele outro que descia a ladeira por trás dos arbustos. Ela conhecia aquele cachorro. O seu cão Fiel, que a acompanhara, saltou dentro da agua do rio e o atravessou para ir lamber o outro que acabara de chegar. O cão abanava o rabo em frenesi de alegria por ver o seu companheiro.

O coração de Perpétua, no entanto, se empretejou. Uma imensa nuvem negra se lhe abateu. Ela conhecia aquele cachorro que chegara antes que seu dono. Era o Fiel. Um vira-latas misturado com pequinês. Ela virou-se de costas para quem chegava. Não dava mais tempo de correr e esconder-se. Não tinha tempo para arrumar a carga toda e evadir-se dali.

Os cachorros pararam de se lamber e vieram-lhe ao encontro, depois atravessarem as águas rasas do Flores. O cachorro veio lamber-lhes as mãos, feliz por reconhecer-lhe. Perpétua passou-lhe a mão na cabeça, fazendo-lhe um carinho em retribuição.

De costas para a outra margem do rio, não sabia quem tinha chegado. Se sua mãe, se seu pai, ou se ambos. Ficou parada por alguns minutos, torcendo para que aquele parente se fosse para o porto das Oliveira sem sequer lhe falar uma única palavra. Ouviu, no entanto, o barulho da água sendo rasgada com força por pernas que a atravessavam. Perpétua continuou imóvel. Agora, sabia que era sua mãe que vinha em sua direção... e o sabia pelas passadas nervosas na água. Seu pai seria mais discreto, não faria aquele barulho todo só para atravessar aquele rio raso.

- Sai daqui, miséria! 
 
 Ralhou sua mãe com o cachorro.

O cachorro se afastou e se aquietou a alguns metros, a observar como se estivesse com pena dela.

- Quem diria? Aqui estamos. Muito que bem! Sua infeliz! Eu pensei que nunca mais ia te ver nessa vida, mas tu tá aqui... e viva, né mesmo? 
 
Espraguejou, irritada, sua mãe.

Perpétua continuava cabisbaixa, vendo-a apenas da cintura para baixo. Queria morrer naquele momento. Era uma sensação mil vezes pior do que o dia em aquela mulher a humilhara ante as Oliveira. Não achava forças nem coragem para levantar a cabeça e olhar sua mãe nas fuças.

Continuou imóvel, sentada no tronco do qual fizera tábua de lavar roupa. A garganta secara e parecia que havia engolido um punhado de terra seca ou uma mão cheia de farinha-de-puba, sem antes umidecê-la com a saliva. A respiração não lhe obedecia e o coração batia descompassado.

- Tu fugiu com aquele assassino, não foi? Sua desavergonhada! Pensa que eu achei ruim? Achei foi bom!
 
 Disse sua mãe, demonstrando júbilo e alívio, enquanto batia forte no peito.

- Só não pensei que tu tivesse tanta coragem. Sempre te achei uma pomba morta, uma lerda, uma lesada.
 
Continuou sua mãe.

Ela continuava paralisada, sem nada dizer. Seu juízo agora lhe trazia a sensação de desmaio. Sua cabeça parecia rodar.

Perpétua resignou-se e se empertigou. Respirou fundo e buscou forças onde não tinha. Levantou a cabeça com dificuldade. Viu ódio e satisfação na cara de sua mãe.

Tentou a todo custo não demonstrar o seu pavor e nervosismo.

- Continue. Fale tudo o que tem a dizer!
 
Conseguiu falar a trêmula Perpétua.

- Você sempre me foi um fardo, sua lazarenta! Eu nunca te quis. Sempre te reneguei desde o momento em percebi que tava buchuda de ti. Tomei todo tipo de beberagem venenosa para te expulsar de minha barriga. Queria, com todas as minhas forças, que tu tivesse nascido morta. Quando tu nasceu, nem parteira eu procurei. Eu mesma quebrei o cordão com as mãos. Nunca te amamentei. Tua papa era de água com pó de banana seca com água e açúcar. Nem araruta eu quis te dar. Era muito trabalho ter de plantar para te fazer um gomoso diferente. Eu te tive de pé, se quer saber. Nem me deitar me deitei pra te ter. Tua cabeça bateu no chão quando te expeli. Desejei que tu morresse. Mesmo assim tu não morreu.
 
Bradava-lhe sua mãe, aos berros e com os punhos fechados.

- E por que mesmo, Dona Nilde? 
 
Perguntou Perpétua, estarrecida com o que ouvia.

- Pensa que é filha de teu pai? Não é não! O Nonato é que era teu pai - continuou sua mãe.

- Nonato? 
 
Perguntou-se Perpétua, intimamente. 
 
- Nonato? Será? 
 
A única pessoa que sabia chamar-se Nonato era o finado marido da viúva Carosina. Perguntou-se ela, sem deixar que sua mãe percebesse as perguntas que se fazia.

- Isso mesmo! Aquele cão sarnento do finado marido da Carosina me enganou. Me ludibriou, me iludiu e me desvirginou, dizendo que me daria mundos e fundos, mas quando ficou sabendo que eu tava buchuda de ti, me procurou e me disse que ia me matar se tu nascesse. Bem que eu tentei, mas tu insistia em crescer na minha barriga.
 
Gritava sua mãe, agora curvada e a dois palmos do seu ouvido.

Perpétua desejou ter forças e coragem para partir para cima de sua mãe e matá-la, ali mesmo. Foi contida, porém, por um lampejo de razão. Se assim procedesse, jamais saberia o resto da sua história. Ademais, não mataria mesmo, por mais que a estivesse odiando, naquele momento infeliz.

- Quem matou o Nonato foi teu pai. Quer dizer, aquele que tu pensava que era teu pai. O Nonato se aproveitou que estávamos trabalhando na roça dele e quis me matar. Foi quando fui salva pelo teu pai, que matou o miserável a facãozadas. Fugi com teu pai no mesmo instante e fomos parar naquele torrão de terra seco dos infernos. Nunca mais passei nem perto da fazendo da viúva.
 
Esclareceu sua mãe.

A cabeça de Perpétua estava com um torvelinho. Agora, porém, tudo lhe fazia sentido. O desprezo da sua sua mãe por toda a sua vida. Morarem naquele lugar seco e longe de tudo. Tudo parecia fazer sentido.

- Você é a culpada de tudo, sua infeliz! 
 
Decretou sua mãe, agarrando-a pelo cabelo e levantando a sua cabeça.

Os braços de Perpétua continuavam imóveis. Ela se mantinha passiva. Agora, não tinha a menor vontade de defender-se.

- Tomara que você morra de vez!
 
Gritou sua mãe por entre os dentes cerrados e soltando-a com desprezo.

Nada mais foi dito. Ela permaneceu sentada sobre o tronco, enquanto Enilde atravessou o rio para a outra margem. Um imenso grito se acumulava em seu peito. Uma quantidade tão grande de revolta que parecia que ela iria explodir. Ela fez um esforço descomunal para se conter. Não queria que sua mãe lhe ouvisse em prantos. A cabeça se curvou e o queixo chegou a tocar-lhe o colo. Lágrimas jorravam de seus olhos e o peito resfolegava. Fez concha com as mãos, colheu as águas do Flores e as levou ao rosto para lavar as lágrimas que lhe corriam.

Ela não conseguia mais bater a roupa. Apenas as enxaguou rapidamente e foi botar a cangalha no jumento. Nunca teve tanta dificuldade de colocá-la nas costas do jumento. Olhou, então, para o outro lado do Flores e percebeu que sua mãe não se encontrava mais ali. Sentiu-se aliviada. O segundo cachorro, Fiel, ali permaneceu abanando o rabo. Ela passou a mão na cabeça do cão e ele se deitou de barriga para cima, mexendo as patas no ar, alheio ao que ali se passara.

O sol já ia alto quando ela subiu a ladeira e deixou o Flores para trás. Nada pescou, sequer pôs algum mingongo como isca no anzol do caniço. Queria ir embora dali. Apenas isso. O coração estava pesado e lhe enchia o peito num incômodo descomunal. Já não mais chorava. Os cachorros a seguiam, latindo de vez em quando.

Ela já se encontrava próxima da sua casa, passando ao lado das terras da viúva Carosina. Podia sentir uma energia ruim. Um bafo de receios e pressentimentos. Estava próxima demais da viúva afamada pela maldade e pela mesquinharia. Jamais a vira. Talvez jamais a veria. Poucos tiveram tal desventura.