quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Sob Cobertas


Sob as cobertas:


Eram quase sete horas quando voltei para debaixo dos meus lençóis, depois de ter saído com meu cão para o seu passeio matinal. Tomei um café, ansioso por voltar para debaixo das minhas cobertas. E sei que voltarei a dormir o melhor sono até ao meio-dia. Mas, um sonho doce me vem chegando e relaxo comovido.


A yoguini:


Todos os dias de pandemia a atriz, em posição de flor de lótus, busca o equilíbrio enquanto faz a sua yoga. Magra e esbelta, linda. Tenta e intenta o nirvana, enquanto procura esvaziar a mente e pensar em nada.


E começa a ouvir os pombos, a arrulharem todos ao mesmo tempo, a emitirem o som derivado do rufar de seus papos. Ela que nunca gostara do som dos pombos, embora acordasse todas as manhãs a ouvir-lhes. Eles pareciam trazer maus agouros, mas naquele instante passou a percebê-los como mensageiros de notas ou letras, que lhe diziam uma mensagem cifrada.


E, ainda mais, aquela festa, na verdade, informava que a ninhada está esfomeada e a luta pela sobrevivência de mais um dia tem de ser iniciada. Que o alimento deve ser achado depois de muito procurar em vôos que exigirão não apenas a visão apurada, mas o milagre do acaso que levou alguém a jogar migalhas, santas migalhas, à calçada. E o gavião, perigo constante e previsível, está à espreita para cravar-lhes as garras, porque também está na mesma luta pela sobrevivência para alimentar os filhotes.


Entretanto, os pombos não pensam e não sentem como a nossa yoguini. Apenas por instinto arrulham quando acordam. E acordar é uma benção, pois a existência só é boa se valorada como quem sorve cada gota de água enquanto atravessa um deserto. E que saber dos riscos de perdê-la a qualquer momento, por acidente ou naturalmente, é a melhor maneira de valorizá-la e agradecer por esse milagre/fagulha cósmica que é a vida. E os pombos são felizes exatamente nessa intranquilidade da rotina que lhes obriga a luta diária pela sobrevivência.


Puta da vida - perdoem a expressão que já foi chula - ela desiste da yoga evai fazer um café.


- Malditos pombos! - conclui ela.


Pelo menos não foram as gaivotas. Essas fazem muito mais barulho enquanto clamam para que das janelas se lhes joguem os nacos de carne que lhes alimentarão.


Sob as cobertas:


- Quando eu sair de debaixo destas cobertas, lá para o meio-dia, tomara eu me lembre desse sonho/devaneio e o escreva numa crônica só pra encantar o povo lá da minha Barra do Corda. E penso no Rio Corda e me arrepio de tanta saudade. Era um tempo ruim...  mas era tão bom!

A yonguini continuará a busca pelo nirvana até que a pandemia seja controlada. Na segurança de sua casa, concluiria o mais otimista dos leitores. Já o leitor mais realista se lembraria do arrulhar dos pombos a irritar a moça. 

Eu yoga não faço, mas ouço boa musica, leio bom livro, canto, danço, cozinho, olho a cena pela janela e espero que o tempo logo à frente seja de festa pelas ruas a comemorarmos o fim dessa peste pandemia. 


Wan Lucena

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Varal Escatológico

 

Duas típicas portuguesas, dentro de um autobus - ou seja, de um ónibus - conversavam como se estivessem numa sala de suas casas a tomar um chá. Tagarelavam Sem se importar se os demais estavam a gostar ou não. E eu, pra falar a verdade, estava eu a gostar e era muito. E aposto que todos os demais igualmente.

Uma delas usava sapatos em pele - falsa com certeza - a imitar a das onças e, no pescoço, um cachecol em tecido, igualmente falso, também de onça - porque não pode deixar de combinar senão fica brega, não é mesmo minha senhora? - e na sacola, um outro tecido que parecia ser uma blusa de frio, na mesma estampa. Um show de visual digno de se ver num metrô... só que na Tanzânia. 

- Mas opá! Essas chuvas de dezembro que muito cedo chegaram e que não se querem ir. Mas, parece que amanhã o tempo já se vai fazer melhor - disse a velhota vestida de onça

- Ai, Jisuis! Que tenho tanta roupa para secaire...  é que não gosto de secar roupa em máquina porque não fica igual à que seca ao sol e fica sempre com aquele cheiro de roupa que não secou direito, compreendes? Mas, vi que amanhã já vem sol e que a temperatura também vai subir um pouquinho... - respondeu a outra velhota mais discreta, vestida toda de marrom dos pés à cabeça, mas ao menos não imitava onça, leão, zebra ou girafa.

- Há sim! Mas opá! Aproveita para secar a roupa amanhã porque depois já lá vem chuva de novo - respondeu a outra velhota onça.

E eu só pensava no meu próprio varal, na minha roupa que havia quase uma semana levava chuva no aqui na janela do apartamento. Não tenho máquina de secar e não tenho a intenção de comprar tal trambolho. Quando estou muito precisado, desço até a lavanderia ali embaixo e ponho tudo na máquina de secar deles e 15 minutos depois tenho a roupa pronta.

Mas, decidi que, se fizesse mesmo sol, iria até as margens do Tejo, o rio Tejo, aquele que nasce lá na Espanha e depois banhar as terras de Dom Quixote de La Mancha, vem desaguar aqui abaixo da minha casa, pouco mais que 400 metros. E porque essa informação? Porque sou mesmo um deslumbrado com o fato de poder viver tudo isso e até o Tejo passar logo ali. E me lembro do Rio Corda ao qual me banhava ao menos três vezes por dia já que minha casa fazia fundos pra ele. E no Tejo não se toma banho. As aguas geladas não permitem. 

E sim, amanheceu com um sol lindo. E antes de sair, já lá pelas 11 horas, decidi tirar a roupa do varal. E que merda! Metade dela estava "cagada" pelos pombos e voltaram à máquina de lavar - e a palavra escatológica que acabo de citar vai entre aspas a partir de agora porque só pretendo usá-la esta única vez  para não causar sensações de repulsa à leitura. Usarei o termo "caca" em sua substituição. 

Eu não sei, mas desconfio que a população de pombos nessa Lisboa é muito maior que a de gente. "Portugas" adoram pombos, gatos, cachorros e até as gaivotas. Não gostam muito é de gente. E aí já quase concordo com eles. 

A minha vizinha aqui de janela joga nacos de carne, diária e religiosamente, às gaivotas que descem aos bandos e a gritar feito doidas - coitadinhas das bichinhas! Estão a "morreire" de fome! - 

Os gatos estão em todas as casas, a se lamber nas janelas, e são garantia de uma boa fotografia. Lá pelas tantas da noite, sempre que saio com meu cachorro, vejo os portugas a encher as vasilhas de comidas para os gatunos de rua. São muitas as pessoas que se dedicam a eles. São os gatunos controlados pela zoonose do país e coisa e tal. Mas, o pior mesmo é que todo mundo tem um cão e todos fazem suas "cacas" duas vezes por dia - ao menos o meu - e nem todo mundo se ver obrigado ou tem a educação de recolhê-las. 

Pra todo lado se acham os depósitos com saquinhos de recolha de "cacas" que o poder publico disponibiliza. Ocorre que muitos são os donos de cães que não querem por a mão à "caca". Aqui, frente ao restaurante, a cadelinha da madame batizou a calçada enquanto eu passava. A madame se fez de cega, embora com o saquinho de recolher a "caca" na mão, e se ia displicente, a disfarçar ter visto a obra. 

- Olha, a sua cadelinha acabou de sujar a calçada - não resisti 

- Não foi a minha cadela que fez tal coisa - Respondeu

- Como assim? Eu vi!

- E por acaso o senhor é fiscal de "caca" agora? - e vi que a temperatura podia subir e decidi me calar e me fui 

Assim sendo, recomendo ao amigo que, por acaso ou não, tenha o privilégio de vir passar uma temporada por aqui, olhar muito bem aonde põe o pé se não quiser pisar no monte de "caca". Quase todos os dias volto para casa com meus sapatos batizados com uma "caca" canina.

Quanto às velhotas a fazer do ónibus sala de chá, torço por encontrá-las mais vezes. Em nada me aflige ou me incomoda. Afinal, é um ônibus e não uma igreja sacro-santa ou um velório - velórios, aliás, são sempre ótima temática para cronicas. E a escatologia que também adjetiva o fim do mundo, também adjetiva até aos que nasceram com muita sorte - e peço licença para usar mais uma vez a palavra - "fulano nasceu cagado!". 

O meu varal escatológico não é o fim. As "cacas" do meu cão recolho-as todas. Quase todas, confesso! Mas nunca as deixo de recolher se ele as faz num local donde passam transeuntes distraídos a olhar pombos, gaivotas ou gatos. É questão de empatia e de educação!