quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Jurubebas Empoeiradas

Seis quilómetros separavam o Centro Velho dos Oliveira do Povoado do Clemente. Quatro ladeiras, duas que subiam e duas que desciam. O trajeto era fácil já que contava com a sombra das árvores que ladeavam o velho caminho.

O Clemente, às margens da BR entre Tuntum e Barra do Corda. A BR era apenas uma rodagem esburacada, de piçarra solta. Pela nuvem de poeira no horizonte se percebiam os poucos carros que a transitavam. Por duas vezes na minha vida, montado numa cangalha sobre um dócil jumentinho, nos dirigimos à cidade, minha aldeia, Barra do Corda. 30 quilómetros que deveriam ser percorridos no mesmo dia. A viagem era enfadonha mas era uma novidade que quebrava a rotina modorrenta daqueles dias naquele lugarejo.

Quatro ladeiras intermináveis que eu contava desde o Clemente até Barra do Corda. Ao subirmos à última delas, nas margens da rodagem, uma vegetação esquisita de folhas grandes e deformadas, completamente cobertas pela poeira e que lhe davam uma coloração marrom. Pareciam anunciar maus agouros. Se Hitchcock as tivesse, talvez as teria usado para ajudar dar ar ainda mais sombrio aos corvos fantasmagóricos  de seus filmes.

Informaram-me que eram jurubebas e que para nada serviam. Eram espinhentas e de difícil acesso. Produziam um fruto igualmente esquisito que amadurecia sem mudar de cor. Nem para sombra serviam.

Hoje, se eu voltasse àquele mesmo lugar, com muita sorte ainda as encontraria e lhes reverenciaria como seres tão importantes do ponto de vista natural e cósmico quanto qualquer outro. E sei que, tirada a poeira que o progresso lhes impõe, muito bem enfeitariam o meu arranjo de flores num rico vaso da minha sala.

As jurubebas empoeiradas daquela BR ficaram para trás, nascidas qual erva daninha. Na minha memória já opaca pelo tempo, elas permanecem tão vivas quanto as lembranças da minha infância e das poucas vezes que saí daquele bioma de sonhos que se chamava Centro Velho dos Protestantes. 


Wan Lucena


Esta crónica foi originalmente publicada na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Para Lionete, com carinho

Gosto de gente inteligente. Não estou a falar daqueles que ficaram anos sentados em cadeiras de universidades, a se tornarem mestres ou doutores. Eu falo da gente perspicaz. Falo desta gente capaz de se comunicar com um único gesto ou atitude e dizer o que queira sem abrir sequer a boca para dizer uma única palavra.


Esta semana, postei num grupo de rede social uma foto da minha sala. Teve uma senhora, com quem não tive o prazer de encontrar pessoalmente, e que bem pode ser uma doutora, sim senhor, que analisou pormenorizadamente toda a cena da minha sala, naquela fotografia. Em seguida, fez um print de um detalhe da foto e o postou. Não importa o que era. Apenas importa que ela percebeu. Percebeu que o que pode ser imoral para uns pode ser arte para outros.


Recentemente, numa visita ao Museu Guggenheim, de Nova York, em companhia da minha irmã mais nova, Jeanne, decidimos ver uma exposição. Subimos num elevador para um andar acima e quando ele se abriu, numa imensa sala, quadros estavam dispostos por todas as paredes, em todos os tamanhos, cores e texturas... falos, falos e mais falos. Apenas falos e nada mais. 


Não era uma exposição indicada às senhoras mais pudicas da sociedade, com certeza. Talvez nem pudesse estar indicada aos filhos da tradicional família cristã brasileira. Ali, todavia, estavam várias crianças sem sequer se importarem com os falos, mas, tão somente, a brincar umas com as outras no meio do saguão.

A senhora mais pudica, mãe e esposa, acostumada a ver e até a cuidar do falo que lhe pertence, por meio da certidão de casamento civil, poderia até se fazer de envergonhada e pôr as mãos nos olhos escandalizada, como se jamais tivesse visto aquele pedaço de carne-nervo que ajudou a expulsar a Eva do paraíso, graças a deus.

 

Ressalte-se, na minha foto, sobre a mesa de centro, junto com diversos outros objetos, apenas o livro "OBSCÉNICA" de Hilda Hilst.  De erotismo em pulsão visceral, sua obra indica um trilho sagrado a que a senhora do grupo de WhatsApp, muito espertamente, captou logo de cara e ainda se manifestou sem nada escrever, apenas com um gesto.

 

Adoro gente inteligente. Adoro gente doida, mas que seja do bem!



terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Espelho da Verdade


Na minha casa, ao menos na decoração, se reflete o que eu gostaria de ser. O equilíbrio que se apresenta é reflexo de mim, porém o espelho é de efeitos tortuosos que, apenas assim, mostra quem eu gostaria de ser ante o Cosmos. 

Sem o espelho de efeitos, na realidade sou verdadeiro monstro. O espelho sempre mente. A bela imagem se olhada de perto está toda rebocada. À luz do dia a maquiagem se decompõe em triste figura. 

E te assustas? Pensas que falo de mim mesmo quando falo é de ti. 

Agora que sabes que falo de ti, saibas,  falo é de mim.

Pensas que falo de ti? De mim? Falo é de nós.

A tristeza maior está é em ter que desenhar  a nossa triste figura para que tu possas entender que falo de ti, de mim, de nós.

Na minha casa a decoração expressa o equilíbrio que não tenho. E na tua casa? Que mostras?

domingo, 5 de dezembro de 2021

Cabelos Flamboyant


O nosso historiador, Álvaro Braga, carinhosamente, chama-lhe de “a bruxinha dos cabelos de flamboyant”. Lu Mota não é só a escritora barra-cordense mais encantadora, é também uma retirante, com uma história de vida rica de dramas densos que, apesar de tudo, não perdeu seu maior tesouro: o sorriso. Sorriso, caros leitores, que é portal escancarado para o reino da felicidade. Sim, ela é feliz! Talvez a mais feliz das mulheres. Radicada em Birigui, São Paulo, é querida por todos e não tem inimigos, nem um sequer.

Multiartista, ela pode ser atriz; pintora; poetisa; cronista; militante ecológica; defensora das minorias; bonequeira; curadora de artes... não importa. Na escrita, eu a reconheço como a nossa “Cora Coralina” e não lhes provo apenas por sua sensibilidade na tecitura dos seus textos, mas também pelos doces de mil sabores ou ainda pelo simples arroz com ovo, que ela prepara e encanta como se bruxa fosse.

Ela escreveu a belíssima crônica “Pode parecer lindo, mas é o planeta pedindo socorro”, publicada nesta mesma Revista TB, tempos atrás. A crônica é fatalista e anuncia o fim do mundo por meio da “nossa” irresponsabilidade criminosa, ante a natureza e o Cosmos... , e eu concordo com ela.

- O fim está próximo!

- Arrependei-vos!

Diziam os beatos de antigamente. Hoje, o beato já quase não fala. Ele virou apenas um patriota robótico e vazio, que serve a uma seita extremista; um rico político, eleito com seu discurso profético e que se viciou em mamar nas tetas públicas; um pastor a recolher dízimos dos pobres coitados, fanatizados com o poder do seu discurso.

Em compensação, ele foi substituído por bruxos, veganos, punks, artistas, índios, negros, mulheres, lgtbtqia+, “etcéteras” mil.

Pode ser que seja tarde demais, cara Lu Mota, mas, ao menos nós - eu e você e tantos outros mais - morreremos com nossas consciências tranquilas, enquanto assistimos à natureza a dar-nos o seu show, completamente esgotada, em sessões extras de exuberância, ao mesmo tempo em que nos diz: percebam o vocês perderam!!!

*Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletronica Turma da Barra a quem muito agradecemos