quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A Cumplicidade de Dedé

 

Ele sempre fora aluno mediano. Sentava-se aos fundos da sala e gostava mesmo era de divagar em fantasias com as garotas da sala. Naldinho era cheio de amigos e exercia sobre eles certa liderança. Era ainda quase impúbere, quando botou a perder aquela menina da igreja, a qual sequer se sabia que já namorava . Ele negou de pés juntos que o filho era dele. O seus pais assumiram todas as despesas de ajuda à grávida, e à criança depois de nascida. Depois vieram outras vergonhas e várias outras garotas caíram em desgraça por causa do seu exacerbado descontrole dos ímpetos sexuais.

Os pais perceberam que a situação começava a ficar perigosa e que o filho corria já risco de morte, pois desencaminhara Salete, uma adolescente, filha do Prefeito.

 A solução era mandar-lhe para longe, para outra cidade. Imperatriz foi a cidade escolhida e ele entrou num Transbrasiliana, deixando embuchada, também,  a filha da lavadeira de roupas da família.

Os planos eram que ele se hospedasse numa pensão qualquer, que não fosse muito cara, que arrumasse um empreguinho e  terminasse os estudos. 

- Não estamos a lhe pedir muito, meu filho. Apenas queremos que você passe a andar com as próprias pernas, que assuma responsabilidades e que se transforme num homem decente. 

 Recomendaram os pais amorosos na véspera da partida, enquanto os sinos da igreja matriz bradavam e, na Praça Melo Uchoa, as mocinhas suspiravam por seu Don Juan que, naquela noite, delas se despediria.

De Barra do Corda os pais recebiam notícias esporádicas. Numa cartinha curta e desleixada, ele informara que ia bem e que estava a trabalhar numa mercearia e morava em um quartinho de família. Felizes ficaram os pais, que pensaram que seu filho terminaria por ser doutor.

As notícias minguaram e o pai, Dedé, decidiu fazer uma visita ao filho e averiguar a situação. Realmente ele estava a trabalhar, só que em um bar noturno, num inferninho sujo, que fez arrepiar os cabelos do velho pai. 

- Mas isto é um prostibulo, meu filho! - Disse o velho enquanto as meninas lhe rodeavam a cintura com mãos faceiras, em bulinacões de messalinas.

A verdade era que o rapazote saíra de Barra do Corda aliviado e certo de que, em Imperatriz, poderia viver a sua vida de luxúrias, tão sonhada, sem que lhe fossem feitas as cobranças morais. Ia viver a doidejante boemia longe dos olhares fiscalizadores dos pais. Botou os pés na rodoviária, ao pé da noite, e encontrou por ali mesmo uma moça que se vendia na esquina e com ela fez amizade. Naquela mesma noite conheceu aquele que seria o seu lar. Nos fundos do corredor vermelho, no último quartinho, foi carinhosamente acomodado pelas meninas que trabalhavam no local. As meninas o amavam e o protegiam. Ali ele era paxá. Traziam-lhe desde o café até o jantar, com umas merendinhas para arrematar. O mutualismo era pleno. Elas o serviam. Ele as servia.

Estou sabendo que você foi reprovado por faltas na escola. Quanto desgosto, meu filho! Pior é lhe encontrar nesse antro.

Disse o velho pai com muito desgosto.

- Acalme-se, meu pai. Relaxe um pouco e não tire conclusões precipitadas. O senhor fez viagem cansativa por demais. Descanse um pouco, durma em paz esta noite, que amanhã conversaremos.

Não restava muito a fazer e o velho se recolheu ao quartinho do filho. 

As meninas sabiam exatamente o que fazer... e o fizeram com tanto gosto quanto faziam com Naldinho. Tudo fora planejado com esmero e a noite foi passada em claro.

No outro dia, todo animado e amigo de todas as meninas, o velho não fez cobranças nem desaprovou o estilo de vida do filho. A viagem, que seria rápida, durou mais de quinze dias. 

Voltou para Barra do Corda e informou à esposa que o filho estava muito bem acompanhado e encaminhado para a vida. Informou-lhe também que teria de acompanhar mais de perto a evolução do rapaz e que, já no próximo mês, teria de voltar a Imperatriz para reconferir tudo e zelar pela educação do filho.

Naldinho, conspirou o destino, transformou-se num empresário de sucesso no ramo do entretenimento adulto, na região de Imperatriz. Em Barra do Corda deixou saudades e filhos bastardos. 



Wan Lucena

*Esta é uma história real, na qual até a localização geográfica e os nomes das personagens são fidedignos, mas que não deve ser levada a sério.







quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A monja do desapego

Tempos atrás, em Brasília, fui a um jantar desses bem chique, numa daquelas mansões do Lago Sul. O jantar foi oferecido por uma monja budista. Tudo começou com uma belíssima cerimônia num pedaço de cerrado aos fundos da casa, debaixo de uma árvore de galhos tortuosos, toda enfeitada com bandeirolas  e fitas coloridas. Uma sineta que tocava vez por outra e um pau a rodar nas bordas de uma cuia de bronze que parecia levar os ouvintes a uma pré-hipnose esotérica. O jantar foi lindo e a comida deliciosa, toda vegetariana, era comida com as mãos mesmo. Havia uma aura zen, e o incenso inundava o ar em complemento à musica instrumental de flautas de bambu.

 

A Monja não era a dona da casa, mas morava de favores numa outra casa, no mesmo lote, ao lado da mansão. Diga-se que a casinha era muito mais confortável que quase todas as casinhas que já morei.


Tempos depois, num dos shoppings da capital federal, encontrei o dono da mansão e perguntei-lhe da Monja. 


- Um dia me levantei e percebi que ela não estava mais lá. - Respondeu-me ele.


- Como assim? Onde ela está agora? - Indaguei-lhe.


- Não sei. Ela é budista e prega o desapego, inclusive dos entes queridos. Se não se apega, não há sofrimento nem com a perda natural da morte, compreende?

 

A monja morou durante alguns longos anos, de favor, na casa daquele que era seu amigo e se fora, sem dizer adeus, na calada da noite? Como Assim? Certo é que, até agora, o meu amigo não sabe o paradeiro da monja. De igual forma, o meu amigo não se interessou em saber dela, ou seja, desapegou-se.

 

- Quanta falta de consideração! Que grosseria! - Diria o leitor mais impetuoso e precipitado.

 

Eu confesso que também foi o que pensei de início. Depois, entretanto,  a pensar melhor e a considerar a sabedoria milenar oriental, decidi foi adotar o meio-termo. Hoje, considero-me meio desapegado. Fico onde eu quiser, até a hora que eu quiser, com quem quiser a minha presença. Ao mínimo sinal de desconfiança ou desconforto, "vazo"!

 

Faz tempo que aprendi que visita boa é aquela que deixa saudades e não aquela que vai embora quando o dono da casa já está a abrir a boca de enfado com a sua companhia. Mesmo que seja na casa do parente mais querido, fico atento para não abusar. Ainda assim, abuso muitas vezes.

 

Assim como as lembranças de viagens podem se quebrar ou se perder, causando-nos sofrimento, igualmente ocorre com as pessoas, e por que não? Desapegue-se, portanto, e sofra menos!

 

Até aquelas lembranças ruins, as quais nos infernizam de forma repetitiva, diárias e dolorosas, podem-ser bloqueadas com um pouco de exercício mental. Já as boas lembranças, estas façamos de tudo para não perdê-las. Se para não as perder, tivermos que guardá-las em souvenirs, pois então que sejam em material inquebrantável, ou muito resistente ao tempo, para que um dia, quando já velhinhos e encurvados, olhemos para elas e nos lembremos de que estivemos em tais lugares, em tais épocas, com tais pessoas, a fazer isso e aquilo. Concluiremos que valeu muito à pena tudo o que vivemos... e que lindo! 

 

A gente só não se desapega do que mora dentro. Que saudade de Barra do Corda!


Wan Lucena


Esta crónica foi publicada originalmente na revista eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos:

https://www.facebook.com/144971715668226/posts/2008771359288243/


 






sábado, 7 de agosto de 2021

Os Souverirs das minhas Andanças

 

Estou a mudar-me todos os dias. Neste momento a mudança é apenas de endereço mesmo. Eu sei que com ela vêm diversas outras mudanças e espero que todas para melhor. O novo apartamento, muito maior e mais confortável, conta inclusive com um quintal - e isso é um luxo por aqui. Já imagino o jardim, a sombra da árvore que plantarei, os pássaros que atrairei com rações, as flores em vasos pendurados, uma horta pequenina, uma grelha com a carne a assar,  numa reunião discreta com bons amigos e a cerveja gelada, enquanto ouvimos Marisa Monte. O Karl, meu cão mudo, já se acha o dono do pedaço e até demarcou o terreno, depois de correr para lá e para cá.

 

A organizar a mudança, a juntar toda a tralha, dentre ela, meus souvenirs de viagens que fiz ao longo da minha vida andante

 

As Aventuras de Tintin comprei em Bruxelas. Já perdi a conta das vezes que reli as histórias em quadrinhos do repórter  de espírito aventureiro, a desvendar conspirações criminosas de tirar o fôlego. Todas as vezes me lembro da capital europeia com saudades.

 

Já o Asterix, o gaulês amigo de Obelix com suas loucas e divertidas aventuras contra o exército romano, comprei-o na mais antiga livraria de Paris, a Shakespeare. Quem for a Paris não deve deixar de conhecer esta livraria. Alem de vender livros, também serve de dormitório aos jovens turistas que podem passar ali as noites, em colchonetes espalhados pelos corredores da livraria, em troca de algumas horas de trabalho. O trabalho oferecido nessa troca de hospedagem pode ser tocar o piano para os clientes, pintar uma aquarela, desde a janela ,enquanto observa a Notre Dame, agora em ruínas depois do incêndio; mas pode ser também o serviço de faxina ou de bibliotecário. A verdade é que se oferece o trabalho que se sabe fazer. 

 

O relógio de bolso que podia estar na casaca de um fidalgo do século XIX e que funciona à corda, comprei-o em Praga, quiçá a mais linda e mágica capital da Europa. São esporádicas as vezes que o uso, mas quando o faço, sinto que me falta o bigodinho fino e de pontas viradas para cima, que sempre achei um charme nos outros e que sei, em mim, ficaria mesmo era muito ridículo.

 

O meu Dom Quixote com sua lança e seu elmo, que comprei no Museu Casa de Cervantes, em Toledo, na Espanha. Sim, estive na casa onde morou Miguel de Cervantes. A pequenina estatueta está sobre um móvel na minha sala faz anos. Sei que ele vai durar uma eternidade por ser de bronze. Assim como sei de todas as boas lembranças que ele me traz sempre que o olho com tamanha delicadeza. Dom Quixote, eu também o sou. Obrigado, Cervantes!

 

Emocionante também é abrir a minha gaveta da cômoda e tocar a seda, decorada com as amendoeiras de Van Gogh, numa echarpe de seda. Visitar o Museu Van Gogh, em Amsterdã, Holanda, foi das maiores e melhores emoções. O artista que transformou o próprio sofrimento em arte. Estava ele internado num hospício e soube que seu amado irmão Theo tivera um filho. As flores eram campo desconhecido para Van Gogh, mas se aventurou e produziu o belíssimo quadro que foi compor a decoração do quarto de seu sobrinho, Vincent Willen, e que agora integra o acervo do referido museu, a encerrar a visita como o grand finale. É quando se descobre que aquele belíssimo museu foi idealizado e inaugurado justamente por esse sobrinho do gênio, à quem lhe fora dedicada a referida pintura.

 

A concha-símbolo do Caminho de Santiago de Compostela, o qual percorri desde a cidade do Porto até a referenciada cidade espanhola, onde está o corpo do homenageado santo católico, o qual foi apóstolo do Cristo. Talvez esta a experiência mais transcendental que já vivi. Ela me remete para a espiritualidade que tanto almejo.


Na minha coleção de  souvenirs falta, entretanto, a mais importante. Nada tenho da minha cidade natal, Barra do Corda, senão as minhas lembranças! Se um dia, porém,  eu à minha terra voltar, trarei apenas um seixo moldado, por séculos, pelas aguas límpidas e correntes do Corda. Eu o guardarei como tesouro, o qual gostaria de levar comigo no bolso dos meus trajes funerários. Se houver mesmo o outro lado e lá me perguntarem que pedra é aquela, contarei-lhes histórias de um menino, Tintin , que saiu daquele rio Corda e se foi para o mundo, viveu mil e uma aventuras - e desventuras - tantas e tais, que pensarão ser mentiras... e dormiremos o sonho eterno, a sonhar com as histórias fantásticas da minha terra natal.


Wan Lucena


Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos:  https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/2003386613160051