quarta-feira, 30 de junho de 2021

A Menina do Tamanco Babuche

 

É interessante como algumas lembranças se perpetuam em nossa memória. Por vezes elas se eternizam por terem sido boas. Aquelas que mais nos marcam, no entanto, são as memórias ruins. Aquilo que nos feriu nos marca muito mais profundamente do que conseguimos imaginar.

Era costume, naquele tempo, que as mulheres de resguardo tivessem ao seu lado uma menina pobre para fazer as vezes de doméstica e ajudar-lhes no período de recuperação do parto. O pagamento pelo trabalho não existia, pois, na casa da madame, a menina podia matar a própria fome e ter um teto em condições muito melhores do que aquelas que seus miseráveis pais podiam lhe oferecer. A prática, na verdade, era legado escravagista disfarçado de generosidade.

Minha mãe costumava me oferecer a essas mulheres e eu passava com a família da parturiente, meses a fio, sem nada receber, exceto as refeições, nunca compartilhadas na mesma mesa. Os patrões tinham, assim, a faxineira, a babá, a faz-tudo, a pequena escrava.

O pior era que quase todas elas eram agredidas fisicamente, senão abusadas sexualmente pelos homens da casa, os quais podiam ser os filhos ou o próprio marido da sinhazinha. Eu nunca fui abusada, mas quem ousaria abusar de mim? Eu era conhecida por ter fogo nas ventas e não me submeteria a caprichos sexuais de quem quer que fosse; a não ser que me estuprassem. Nunca fui estuprada, deixo claro. Sempre fui muito valente. Diga-se de passagem que hoje sou uma lady muito comportada e fina!

Eu era muito trabalhadeira e as madames da cidade faziam fila para ter-me por escrava quando iam ter seus filhos. Certa vez, fui assistir uma dessas madames. Nem era para lhe tirar o resguardo, era mesmo para lhe servir de mucama. O marido dela era sapateiro. Eu achava lindo os tais tamancos babuche, calçados muito usados naquela época. Depois de alguns meses de trabalho e sem nada ganhar em troca, com muito receio, pedi-lhe que me fizesse um par dos referidos tamancos. Eu disse o modelo que queria, a cor etc. Eu queria um tamanco babuche roxo, e ele o fez.

Algum tempo depois, na rua daquela casa, vi meus dois irmãos a vender uma carga de carvão no lombo de um jumentinho. Daí me bateu uma saudade danada, enorme, de voltar para a minha casa, rever e abraçar meus pais. Falei, então, para o marido da patroa, o sapateiro, que eu queria ir embora com meus irmãos. Ele, indignado, disse não, de forma veemente. Disse, ainda, que eu não poderia ir por que eu estava a dever-lhe o tamanco que me fizera. Eu fiquei apavorada. Estava presa por causa da dívida do tamanco pelo qual eu sequer sabia que teria de pagar.

A cobrança me fez revirar o estômago, então ousei alegar que trabalhava na casa já fazia muito tempo, sem nada receber. Lógico que eu não me expressava com tanta clareza assim como hoje. Eu era apenas uma menina, ainda, cheia de medos e sem instrução escolar. Ele decretou, pois, a minha permanência na casa até que eu quitasse a dívida contraída com a feitura do tamanco.

Já de fora da casa, deixei sobre o peitoril da janela, o meu tamanco babuche roxo. Aos prantos, fugi em desabalada carreira a procurar meus irmãos, vendedores de carvão, pela cidade. Eu os encontrei na Rua do Mororó, subindo para a Altamira. Eu soluçava e estava molhada em lágrimas quando os encontrei e lhes contei o ocorrido. Prontamente, eles me acolheram e disseram - vamos embora! vamos embora! - E fomos.

Já mocinha, fui para longe, para outro Estado da Federação, motivada por conta d´outro drama. Isso, porém, já é assunto para outra crónica. Certo é que constituí família, tenho filhos, netos e estou segura e em paz. Vez por outra, volto a Barra do Corda e gosto mesmo é de andar descalça a sentir as areias das veredas do Sujapé. Com os pés na terra, conecto-me, de novo, com a minha infância. Gosto de abraçar as árvores e de descer pelo Rio Corda. Gosto de ouvir o canto do curripião, das rolinhas fogo-pagô e das pipiras.

Hoje, lembro-me da cena do tamanco Babuche com muita gratidão. Talvez porque seja só o que me resta. A mágoa ou a revolta com o passado, ou com quem nos fez mal, nunca foi a melhor opção. Quando se vive a felicidade do aconchego afetivo de uma familia constituída; a segurança de um teto; o poder olhar ao meu redor, nessa cidade distante que me encontro hoje e ver que todos os meus irmãos e até meus pais, consegui resgatar... não há mágoa ou revolta que não se dissipe.

O amigo leitor deve estar a se perguntar se fui eu ou o cronista quem escreveu esta história. Se existi mesmo ou se sou mera personagem oriunda da mente criativa do cronista. Quem seria eu agora, em Barra do Corda? Existi, sim! Existo, sim! Se o amigo leitor não me percebe, é porque deve estar com a mente cauterizada. Olhe, pois, na sua rua, na sua cidade, que eu estou por aí, a sofrer abusos idênticos ou até piores. Talvez, procura-me enquanto grita para aquela criança que, com muito bom coração, você pôs dentro da sua casa, crente que está a salva-la da pobreza extremada, enquanto ela lhe faz as vezes de doméstica, não é mesmo?

- Oh, menina preguiçosa! Vá agora lavar esta trouxa de roupa no Rio Corda, senão você nem para escola vai, tá ouvindo!

Até hoje, considero que os tamancos babuche são mesmo muito chics. Versáteis, combinam com quase tudo que é roupa que se bote no corpo, minha senhora! Mulheres que usam tais tamancos são as poderosas do bonde. Então, compre o seu tamanco babuche e se empodere!

Parabéns a todas as mulheres guerreiras que quebraram os grilhões impostos pelo machismo atávico e que, como eu, jamais, se submeterão às injustiças sociais, eivadas pela nossa cultura escravagista.
 
 
Wan Lucena
 
 

 

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

domingo, 27 de junho de 2021

O Menino do Canecão

 

Ele tinha apenas sete anos, era de família abastada e não entendia as desigualdades sociais e o fato de que muitos de seus amigos não tinham dinheiro para pagar os bilhetes de entrada para as desejadas sessões do Cine Canecão. Não passava qualquer necessidade e sempre teve acesso ao que havia de melhor na cidade e no prato nunca lhe faltou comida. O coração era altruísta e a empatia o fazia pagar, muitas vezes, a entrada dos amigos que não tinham condições financeiras de comprar os bilhetes.  

E olhe que ele ia ao Canecão quando este era ainda era apenas um barracão de madeira perto do rio e não aquele que quase todos levamos na memória, ao lado da FENAME, na Praça Melo Uchoa. Ele diz que viu o nascimento e a morte do Cine Canecão.

Portador de miopia em altíssimo grau, usava óculos fundo de garrafa, sem os quais quase nada conseguia ver. Havia dias em que chegava para assistir a sessão e se dava conta que esquecera os óculos em casa. Chamava um dos amigos que por ali se encontravam na esperança de Maria Canecão lhes colocasse cinema à dentro e dizia:

- Vai correndo lá em casa e pega meus óculos que eu te pago a entrada - e o moleque, como se fosse o The Flash, saia em desabalada carreira e voltava com os óculos minutos depois. 

Depois de ler a minha última crónica "As Andorinhas de Cabul ou o Canecão era o Ideal" aqui no Turma da Barra publicada na semana passada, esse menino, me contactou e me contou tantas histórias bonitas que me fizeram marear os olhos. Fez aqueles elogios rasgados que nos inflam o ego e quase nos fazem explodir e acrescentou muito mais. Ele assistiu a todos os filmes exibidos no Cine Canecão, com excessão de um.

Estava a contar os minutos para ir para o Cine Canecão para a estreia de de um dos filmes de Os Trapalhões cujo título a memória lhe falha e não se lembra. Minutos antes, a mãe zelosa o percebeu o filho afoguiado e decidiu medir-lhe a temperatura. Barra do Corda passava por um surto catapora. 

- É por isso que vou embora de vez dessa casa - e sentiu o peso da mão da mãe na sua boca. 

- É para que aprendas e jamais te esqueças de valor ao teto que tens - repreendeu-lhe a mãe.

Foi aquela a única vez que o menino do Canecão recebeu esse tipo de repreensão dos amorosos pais. Mas, por causa da rubéola, deixou de assistir a Os Trapalhões.

E menino rico de bom coração, já jovem, se foi para o mundo em busca de aventuras, melhores estudos e formação, e de fazer a sua história. E a fez. Fez uma história dramática e de superação. Andou pelo vale da sombras da morte e sentiu todas as dores do mundo. Desceu ao mais profundo umbral. Depois de muito penar, levantou a cabeça com dificuldade e olhou para o céu azul e se lembrou de suas origens, de sua cidade natal, e do menino feliz do Cine Canecão. Voltou para o seu porto seguro, o seu abrigo, Barra do Corda.  

Nos meus devaneios fico a me imaginar que eu, menino pobre filho de lavadeira , bem que podia ter sido amigo daquele outro menino rico e ter sido o The Flash mais rápido da cidade só para poder receber a recompensa: um bilhete de entrada na sessão do Cine Canecão. 

Aquele menino pobre dormia numa rede de uma casa sem luz elétrica, na Rua do Sitio dos Ingleses, a ouvir o assobio e a guitarra de Ennio Morricone desde os megafones do Canecão e que quebrava o jejum com café preto e farinha de puba, o famoso chibel também foi para o mundo e sentiu tantas dores quanto as do menino rico. 

As lembranças do passado triste e doloroso do passado hoje poderiam virar filme só para inspirar a meninos e meninas que se encontram, ainda nos dias de hoje, em situação igual ou pior. E essa constatação é hoje a minha dor. E que tristeza, meu deus! -

Hoje o menino do Canecão é cidadadão como outro qualquer a viver por ai. Equilibrado, diplomático, cheio de amigos e quase um monge ja que gosta de viver o seu claustros como um urso a hibernar nos invernos rigorosos do norte. Mas, se o amigo leitor quiser ver esse menino, vá até o Morro do Calvário no fim dia. Nem vai precisar muita sorte para o encontrar ali a apreciar encantado um por do sol que cai sobre o seu porto seguro. Mas, se num dia desses o amigo leitor ver um menino a  libertar delicadamente borboletas presas em vitrines de lojas da cidade, tenha a certeza, você está diante dele, do "Menino do Canecão".

 

Wan Lucena 


Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

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sábado, 19 de junho de 2021

As Andorinhas de Cabul ou O Canecão era o Ideal

 

O Cine Ideal está para Lisboa, assim como o Cine Canecão esteve para Barra do Corda. O Ideal está ao lado da Praça Luís de Camões, o Canecão situava-se na Praça Melo Uchoa. O Cine Ideal permanece discreto e quase imperceptível aos olhos mais desatentos, mas sua discrição comercial é cultura da cidade lusitana, imposta por leis rígidas que impedem a aplicação de painéis e letreiros que impliquem a quebra de harmonia das cidades portuguesas. Um simples anúncio do estabelecimento que fique da porta para fora, mesmo que pregado ao vidro ou à parede, pagar-se-á caro para se ter; e quem desobedece às normas recebe altas multas. Segue-se o raciocínio de que, da porta para fora, a área não é sua, mas de todo mundo.


Eu já tinha decidido que numa hora qualquer, um dia, iria assistir um filme no Cine Ideal, só para eu sentir o déjà vu do Cine Canecão. Eu era um menino quando ali assisti As Sete Faces do Dr. Lao, e naquele local entrei apenas uma vez. Nossas condições financeiras não nos permitiam comprar ingressos para assistir a filmes sempre que nos batesse a vontade. Lembro-me, entretanto, em flashes mentais, daquele dia em que eu e meu irmão mais velho estivemos no Cine Canecão. 


Um chinês, mestre em disfarces, que, dentre tantos outros, se tornava cobra e até dragão. Certo é que aquela sessão matinê foi algo muito desejado já que, todas as noitesda minha rede na rua do Sítio dos Ingleses, numa completa escuridão - ainda não tínhamos energia na rua -,eu ouvia os megafones do Cine Canecão a tocar os saudosos temas dos filmes de faroeste. Então dormia, a ouvir aquele assobio e aquela guitarra de Ennio Morricone, do filme Por Um Punhado de DólaresSentia-me transportar para um mundo muito diferente daquele no qual vivia. 


Quando me dirigi ao Cine Ideal eu não sabia muito bem a que assistiria. Não sabia, nem me importava. O que eu queria era sentar-me na cadeira e sentir-me, outra vez, no Cine Canecão.


Na sessão do Cine Ideal, um desenho animado: "As Andorinhas de Cabul". Uma produção francesa de desenhos em aquarela, que narra um drama terrível vivido pelas mulheres no Afeganistão, sob o regime das trevas dos talibãs

 

Um tali, com a esposa com um câncer terminal, se apaixona por uma jovem prisioneira que, por acidente, havia matado o marido. Condenada à morte por apedrejamento, no meio de um estádio de futebol preparado para o espetáculo de horror e de mau gosto, ela espera pelo cumprimento da sentença numa prisão onde ele é diretor... Depois de tê-la visto sem a burca, ele passa a buscar uma maneira de ajudá-la a fugir, sem se dar conta de seus sentimentos reais. 


A burca, conquanto haja muita controvérsia, é aquela veste feminina que cobre todo o corpo eque o diabo inventou só para humilhar as mulheres muçulmanassendo, em alguns países,obrigatória até hoje. Não é permitido aos homens ver as mulheres, masacidentalmente, ele viu o seu rosto. Então, a esposa, com enfermidadeincurável e em estágio avançado, acolhe o marido que, num dado dia, volta do trabalho em prantos. 


Ele lhe conta da prisioneira e lhe informa a sua vontade de salvá-la por meio de uma fuga. No dia do fuzilamento, ainda na prisão, percebe que por baixo da burca está, não a prisioneira, porém, sua esposa com câncer terminal. A prisioneira fugira. A esposa, naquele momento, lhe informa que o amor o resgatara. Por toda a vida ela tentara, em vão, despertar nele o sentimento que o levara a chorar aos cântaros. Ela o amava tanto que o libertou para viver o seu novel amor.


As Andorinhas de Cabul voam sempre que ouvem a algazarra dos tiranos a disparar fuzis e metralhadoras nas suas arruaças cruéis pelas ruas empoeiradas da cidade de Cabul. O canto triste e melancólico dessas aves é ouvido nas cenas rotineiras e cotidianas das personagens na cidade,tétrica e deserta.


Ocorre que o final não é nem um pouco feliz e não lhes contarei para não estragar o filme, de antemão. Advirto, entretanto, que não é um desenho indicado para crianças. Trata-se de um desenho cult e sensível, qual muito recomendo aos maiores de idade que pensam que o amor sempre vira arroz com feijão.


A propósito, por falar em cult, o Canecão era muito cult. Essa expressão não existia naquele tempo, eu acho. Hoje, todavia, sei que o Canecão era muito cultAliás, penso que um desses empresários cordenses, mais saudosista e afinado com a sétima arte, bem que podia ressuscitar o Canecão. Eu acho que seria um completo sucessocom fila maior que a da Caixa Econômica em dia de pagamento de auxílio-emergencial. 

 

Se as histórias de Cabul, envolvendo Talibãs,sempre têm finais trágicos, ao menos em Lisboa,o Cine Ideal constitui-se um patrimônio, ainda,com uma história feliz. Já a história do Canecão, com seu triste final, poderia ser retratada num desenho de aquarela com final melancólico, triste, só que não em Cabul.

 

 

Wan Lucena

 

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

Turma da Barra:  https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1964905437008169

sexta-feira, 11 de junho de 2021

A Barra anda muito Parisiense

1 - Numa galáxia a milhões de anos luz da minha:

Andy Warhol, o artista plástico e cineasta norte-americano que catapultou a cultura gráfica do século XX e que impulsionou o “Movimento Pop”* nos anos 60, criava suas imagens ao utilizar motivos e conceitos de publicidade em suas obras. Os múltiplos motivos serigráficos, com suas repetições mecânicas em cores vibrantes e explosivas, chocavam as massas de consumo, mas também as hipnotizavam a ponto de o seu trabalho tornar-se icônico. Desde as latas da sopa Campbell à garrafa da Coca-Cola; de Marilyn Monroe, Liz Taylor, Michael Jackson, Elvis Presley, Brigitte Bardot, Mao Tsé-Tung, Guevara, até o nosso Pelé, todos viraram símbolos pop ao serem reproduzidos em série nas variações de suas cores. 

David Bowie, "O Camaleão" do Rock, na década seguinte, distinguiu-se no cenário artístico mundial por sua capacidade vocal e intelectual, mas principalmente pela capacidade de se reinventar, enquanto figura pop. Extravagante e andrógino**, reinventava-se continuamente não apenas por meio da sua inovação musical, mas, especialmente, por conta das suas multifaces visuais. Além de ter sido dos artistas que mais influenciou e modificou vidas, segundo o seu biógrafo David Buckley, auxiliou em lutas de importantes movimentos sociais, como o da libertação gay. 

 

2 - Na nossa galáxia e no momento presente:

- Depois de longo tempo a viver nas grandes cidades do Brasil onde fiz minha independência, sempre com o intuito de voltar a Barra do Corda, cá estou e já lá se vão pra mais de 10 anos, 5 dos quais vivi praticamente recluso, com certo receio de me libertar completamente. Hoje, todos sabem que sou homossexual e sou muito respeitado na cidade, inclusive.

- Sério? E como você conseguiu se readaptar? Eu acho que eu não conseguiria mais não.

- Aqui também se vivem muitas histórias e a cidade pulsa com uma cena cultural muito latente, mas alentada. Depois de 5 anos recluso em minha casa, eu conheci um rapazote, quase um adolescente, de apenas 17 anos, em relação a quem muito relutei para não me deixar envolver. Se, entretanto, até Violeta Parra, a cantora Chilena, aos 55 anos apaixonara-se por um rapazote de 17 e, vale citar, desse amor surgiu a composição "Volver a los 17"; frise-se, uma das belas músicas do Cancioneiro Universal. Por que não eu também, que tinha então os meus quase 50? Joguei-me e, de repente, já era tarde! Estava mortalmente apaixonado. Aliás, foi esse rapazola que me levou a conhecer a noite barra-cordense ... e que cena, meu amigo! Acontecem tantas coisas na cena da noite cordense, que até deus duvida.

- Que história maravilhosa essa! Incrível!

- E agora estou me relacionando com um velho, mas, quando digo velho, é velho mesmo e eu, simplesmente, o adoro! É uma pessoa sofredora, um homem simples, da roça, porém, quando ele chega aqui a casa, transforma-se no que há de mais vanguardista em arte. Gosta mesmo é de apanhar, o safado. De apanhar muito!

- Você está de brincadeira?!!

- Falo a verdade...

Então, contou-me ele mais umas mil histórias tão loucas que me arrebatou, transportando-me para o bairro boêmio e decadente de Paris, Montmartre, onde tive a grande sorte de me hospedar, numa das minhas viagens à Cidade Luz... e foram apenas duas, nem foram tantas assim.  Ali, em Monmartre, todavia, acompanhado de minha irmã mais nova - para não ficar dúvidas de que nunca me utilizei do mercado sexual típico de lá - em ambas as vezes, reitero, se não o fiz, foi por não ser adepto do que se poderia qualificar como uma aberração desrespeitosa ou anomalia comportamental, em face da qual sempre vou opor alguns escrúpulos pessoais para poder discordar, conquanto não seja dado a censuras. Já cada um deve cuidar do seu próprio traseiro, creio. À ocasião, pude perceber a agressividade da liberdade que se manifestava por meio das vitrines, expostas de frente para a rua, como se fosse uma padaria que estivesse a mostrar os pães sobre o balcão; com toda a variedade de produtos para todos os tipos de práticas sexuais. O que se quisesse buscar, em todas as vertentes mais loucas da sexualidade, creio, ali se podia achar.

Enquanto eu pensava na cena parisiense, ele prosseguia no seu peculiar relato da sua boemia nas noites cordenses.

 

3 - Na minha própria galáxia, a milhões de anos luz daquela dos artistas citados:

Escrevo esta crónica muito louca, a qual alguns denominarão corajosa; os pudicos e carolas a batizarão de imprópria; já os preconceituosos de plantão vão considerá-la uma peça publicitária do movimento LGBT, ao qual sequer pertenço. 

Enfatizo que, embora sinta que a minha galáxia situa-se à distância astronômica, em anos luz, daquela pertinente aos dois monstros do movimento pop referenciados, talvez, possa ter eu a soberba de querer estar a produzir minha versão pop tupiniquim, desde Lisboa para Barra do Corda, a Princesa do Sertão, minha amada cidade natal, minha Macondo mágica; bem assim para quem mais me leia nesse mundão afora. Reconheço minha insignificância ante a realidade muito aquém da perfeição, doida e vanguardista, de ambos os artistas. 

Se a minha crónica lhe causou qualquer emoção, mesmo que desconforto, constrangimento ou até repulsa, atingi o meu objetivo. Meu desejo, no entanto, é realmente que o meu leitor tenha se apercebido de que a vida é meio caleidoscópica e que se movimenta o tempo todo, em átimos multicores. Ela pode ser linda e até mesmo nos hipnotizar, tal qual um caleidoscópio***.

 

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*Pop Art (ou arte “popular”) - movimento artístico surgido na década de 1950 no Reino Unido e que alcançou sua maior expressão nos anos 60, nos Estados Unidos. 

**Andrógino - indivíduo que mistura características masculinas e femininas, em um único ser.

 

***Caleidoscópio - aparelho óptico formado por um pequeno tubo de cartão ou metal, com pequenos fragmentos de vidro multicoloridos e que, por meio do reflexo da luz exterior, apresenta combinações de mandalas, a cada movimento das mãos que o seguram, produzindo um agradável efeito visual a quem lhe olha.

 

WAN LUCENA