Determinado a adotar um cão, fui à Casa dos Animais de Lisboa, do outro lado do Parque Monsanto, e fui de bicicleta. Eu já sabia que não escolheria um cão de raça nobre e, quiçá, com pedigree. Eu resgataria mesmo era um a quem ninguém, talvez jamais, escolheria para adotar.
A Casa de Animais de Lisboa está encravada, discretamente, no alto de um monte coberto de vegetação nativa. Mais de quatrocentos cães estavam à disposição para minha escolha. Todos estavam separados em jaulas frias e húmidas. Havia muito mal cheiro, mas não que o lugar fosse imundo. Ocorre que os animais fazem suas necessidades em horários diversos e a respectiva recolha, ou limpeza, obedece a horários pré-fixados.
Os cães da Casa também não recebem os frequentes banhos que costumamos dar, todas as semanas, naqueles com quem compartilhamos nossas casas.
Já no primeiro corredor de jaulas, um vira-latas de porte médio, de cor branca, de olhar doce e triste, com um defeito congênito que lhe fazia ter uma orelha a apontar para a frente e a outra para trás, chegou até a grade. Estendi-lhe a mão, cuidadosamente, por não saber da sua agressividade. Ele cheirou minha mão e se recolheu tristemente, como se soubesse que suas chances eram mínimas. .
Perguntei ao funcionário sobre aquele cão, sem que ele me desse muita atenção enquanto me levava para outras jaulas e me mostrava cães menores, de raças mais apuradas.
- Está conosco faz mais de quatro anos e tem cerca de seis anos de idade - disse-me o cuidador.
- Vou levar aquele cão. Já podemos parar de escolher - informei decidido.
- Mas... o senhor tem certeza? Há tantos cães mais bonitos - indagou-me o funcionário, na tentativa de fazer-me mudar de ideia.
- Sim, tenho certeza, é mesmo aquele cão que vou levar!
E assim, com dificuldade de me equilibrar na bicicleta enquanto o segurava por uma corda-coleira improvisada, chegamos a casa e fomos direto para o banheiro, que aqui se diz “casa de banho”, tomar uma “duche”, que no Brasil se conhece por chuveirada ou , simplesmente, banho; afinal importava mesmo era tirar-lhe o forte odor de não sei quanto tempo sem um xampu*.
Decidi escolher um nome curto, de uma sílaba apenas: "Karl". Tudo estaria perfeito, se não tivesse eu de justificar que, nem de longe, seria uma homenagem a Karl Marx**, o filósofo-pai do Comunismo e a quem pouco admiro.
- Não, não é uma homenagem ao Marx, mas ao Laguerfeld - Respondo eu, sempre que alguém o associa ao Marx. Karl Lagerfeld foi aquele designer de moda, também alemão, diretor da Chanel e da Fendi, além de colaborador de diversos projetos de moda e de arte. Figura exótica, de longa cabeleira branca amarrada em rabo de cavalo, cujas criações eram desejadas pelas poderosas que desfilavam em tapetes vermelhos, mundo à fora. Muito mais a ver comigo do que o Marx, com certeza!
Assim sendo, Karl, meu cão vira-latas, agora goza do conforto burguês da minha casa e pousa a cabeça em minha perna quando paro, ante ao computador, para vos escrever crónicas***.
Em Portugal, por lei, os cães devem estar sempre presos à guia, porém todo mundo solta seus cães, a depender da docilidade, nos parques públicos. Vez por outra, um ou outro rapagão marombado, cheio de anabolizantes e de “outras substâncias”, igualmente ilegais, repreende-me:
- Se o meu cão estraçalhar o seu, teremos problemas! - avisam-me em alarde tom de ameaça.
Eu sei que meu cão deveria estar na guia e que, se ocorrer de ele ser estraçalhado pelo pitbull de um desses malucos, terei – sim - que assumir a culpa!
- Com certeza terei que assumir a culpa - concordei!
- O problema aqui, entretanto, não é o seu ou o meu cão, mas os seus proprietários ... E me calo, já a dar-lhe as costas.
Em quase três anos em minha companhia ouvi-o latir uma vez apenas, e um latido rouco e baixo - acho que é mudo - se os cães tivessem cordas vocais - o meu cão. Karl tem sonhos que o fazem delirar todas as noites, e imagino podem ser pesadelos. Peculiarmente, nunca quer brigar com os demais cachorros e nunca avança contra ninguém.
Karl é uma doce criatura que, se pudesse falar, me agradeceria todos os dias por tê-lo adotado. Ele me olha com candura e toca-me com o focinho; aí , não sabe ele, sou eu a agradecer-lhe quando a cabeça lhe acaricio, com carinho.
- Obrigado por sua existência e companhia, querido Karl!
Wan Lucena
* A forma original inglesa, shampoo, foi recepcionada no português lusitano como champô;
** Karl Heinrich Marx, filósofo, sociólogo, historiador e economista, que bebeu nas fontes da filosofia idealista alemã, no socialismo francês e na política econômica inglesa, antes de vomitar suas teorias revolucionárias no século XIX. Morreu apátrida, em 1883, aos 64, em Londres.
*** a palavra – crônicas - foi grafada com o acento agudo mesmo (crÓnicas ), pois é a atmosfera lusitano-europeia que respiro e em que me inspiro, quando sento-me a vos escrever.