terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Letras e Temperos

Sempre lembro da Clarice, a Lispector, todas as vezes que me sento pra escrever e me pergunto: qual vai ser o assunto de hoje? - E olho para todas as coisas sobre a minha mesa e penso: vou escrever sobre a laranja ou sobre o panetone de natal? - E olho pela janela a buscar uma cena inusitada e pitoresca de um vizinho - não quero escrever sobre aquilo mas sobre esse momento que pre-antecede a escrita e que se vai até o ponto final dela.

Seria aquilo que chamamos de inspiração, talvez. Mas, ouso dizer que é mais. E explico: a inspiração é aquele lapso de tempo que nos chega por meio da fome de criar algo. Imaginemos que a fome nos leve a pensar e ter que decidir sobre o que fazer para o almoço. Depois de decida qual carne, qual arroz, se vai ao forno, frito ou cozido... tudo isso eu chamaria de inspiração. Mas tem o momento posterior que aquele em que já estamos a cortar os pedaços e a acrescentar temperos e que segue com a boca do fogão sendo acesa e com o alho e acebola a dourar. E se espera que o sabor seja muito bom no final. Esse segundo momento é o da criação. Ou seja, criar o que se tem por inspiração.

Se na cozinha, escolhem-se os melhores ingredientes. Mas há que corta-los de maneira uniforme e com faca bem afiada para o corte ficar bonito. Há que se mexer, vez em quando, com carinho e leveza. Os temperos verdinhos e cortados ou picados já esperam a hora exata de ir para a panela. O cheiro começa a exalar e talvez chegue até a vizinha que, encantada, quer só dá uma "provadinha" e termina é ficando pra o almoço.

Mas, a mesa tem de ser posta. E vamos arrumar os pratos e talheres com esmero. Não é por frescura, é por carinho e por querer bem viver. E a vida fica tão melhor, mais agradável e bela, quando intentamos a perfeição.

Escrever uma crónica, ou mesmo um livro, também segue a mesma concepção. Primeiro se escolhe o objeto, o assunto. Depois a maneira sobre como se vai escrever sobre a coisa. E há que se escolher as palavras. Troca essa, apaga aquela outra. O primeiro parágrafo tá pronto. Será que tá demais aqui? Menos essa palavra, mais aquele adjetivo. Capricha na emoção porque senão pode ficar insosso. 

Depois de pronto, servimos! Pode ser que nem agrade a todo mundo - aliás, nem o Cristo agradou... - mas, haverá quem muito goste e espere com o estômago a roncar pelo próximo almoço.

E a Clarice, a Lispector, podia servir sopa de pedras que a gente ia comer e se lambuzar. 

Hoje eu amanheci com vontade de escrever. Na falta de ingredientes, vai o meu caldinho ralo que pode ser servido com aquele pãozinho dormido ali.

Wan Lucena



terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Seremos aquilo que sonharmos

Inicio a minha cronica dessa semana a pedir desculpas ao leitor ante ao fato de que ela pode soar piegas ou coisa de auto ajuda. A minha intenção com o texto é o incentivo e a inspiração àqueles que se encontram presos em suas realidades duras e cruéis. A minha cronica talvez esteja direcionada aos mal nascidos como eu que não tiveram o suporte necessário para o crescimento enquanto ser humano. 

Embora falte o suporte para o crescimento, com luta e superação, com esperança e desejo, podemos nós mesmos chegarmos aonde sonharmos. A questão é que muitos não sonham e se entregam à desesperança. Alguém já declarou que "seremos do tamanho que sonharmos". 

Cada individuo tem a sua própria perceção de felicidade, a meu ver. A minha felicidade consta de viver bem e em segurança. As duas opções continuam recheadas de subjetividade, diria o leitor mais crítico. O que é inseguro para mim pode não ser ao outro e vice-versa. A subjetividade aumenta ainda mais quando consideramos o que seria esse "viver bem". Nesse caso teríamos que levar em conta os desejos de cada um. No meu caso que sou um cosmopolita inveterado, nunca daria conta de viver isolado numa casinha de sapê, às margens de caudaloso riacho mesmo que uma imensa montanha riscasse o céu com as suas linhas. Adoro as paisagens bucólicas para um fim de semana ou em fotografias. Mas para o meu dia a dia preciso de uma padaria na rua que ofereça pão quentinho.

Quando sai de minha cidade Barra do Corda, no Maranhão, depois de três noites sem dormir, com dores de estomago e ansias de vomito ante a ansiedade e o medo do que a vida me reservava na cidade grande - e eu tinha razão já que não foi mesmo fácil chegar até aqui e muitas foram as dores e momentos em que me faltou desde o pó de café ao ombro de um amigo que pudesse apenas me apoiar com uma ou duas palavras de ânimo e solidariedade. 

Quando já em Brasília, poucos meses depois, foi também para lá meu primo, Roselino, o Turita, filho de meu tio Benjamim. Ele ficou por lá não mais que um mês e voltou para Barra do Corda onde se casou e hoje mora na região de Grajau a fazer o que sempre quis. Tem um pedacinho de terra, cabeças de gado pra cuidar e tirar leite, esposa, filhos e netos. É um homem feliz, com certeza. Não suportou viver na cidade grande.

Em Alagoas, quando por lá passei uma temporada difícil, já depois de aposentado, percebia os jovens a fazer nada que não fosse surfar e namorar as raparigas turistas - e rapariga aqui em Portugal é moça, esclareço.  Perguntava-lhes sobre o que esperavam do futuro e eles respondiam com certa indolência maconheira: 

- Não quero outra vida. Aqui que sou feliz. Aqui que vou viver e morrer porque lugar melhor que este no mundo não há!

E quando diziam que "lugar melhor no mundo não havia" eu lhes perguntava qual outro lugar do mundo conheciam e eles, de novo respondiam sem titubear: 

- Conheço tudo pela internet  ou pela televisão e me basta. Aqui nesse praia, nesse povoado, com meus amigos, tomando a minha cervejinha que os outros pagam, com minha família por perto... saio daqui nunca não, viu moço!

E captava essa informação sempre com um misto de desconfianças. Pode ser um acomodado preguiçoso a blefar? Pode sim! Pode ser um apavorado ante a suspeita de que a batalha na cidade grande ou na vida além da sua pequena geografia pode ser por demais difícil e penosa e que o sucesso não é certo? Pode! Pode ser que o individuo esteja mesmo muito é consciente de que não precisa de mais que aquilo de que já dispõe para ser feliz? Pode! Pode ser que não lhe incomode a boca banguela por não ter condições de cuidar dos dentes? Pode! 

Tive lá nas Alagoas uma camareira que do altos dos seus quase 40 anos, casada e com duas filhas moças, me informou certo dia, com tristeza visível, que o local mais longe que fora da sua cidade natal tinha sido a cidade vizinha a apenas 10 kms. 

E eu entendo que a vida, muitas vezes, não nos permite as mesmas oportunidades. Mas também sei, por experiencia própria, que se a porta não nos for aberta por bem, como autoridade que somos de nossas próprias vidas, temos de arrombá-la. E não estou a fazer defesa de violência ou de atos desonestos. Mas acredito que seremos aquilo que sonharmos. Seremos aquilo que desejarmos 24 horas por dia, 365 dias por ano. Há que se mexer, derramar sangue, suor e lágrimas. Há que se romper barreiras e limites. Talvez se deslocar para outra localidade, para uma cidade grande ou para outro país.

Há que se sonhar com um alvo muito bem estabelecido e futuro. O sonho pode se tornar realidade desde que vc opere o milagre que vc está a esperar que deus, o acaso, a sorte ou sei lá o quê, lhe traga.

Mas, nunca mais se voltaremos a sermos quem já fomos. É uma regra da natureza. Entretanto, que amanhã estejamos sempre melhores em tudo.


Wan Lucena


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Sétimo Sentido

O técnico da academia onde tento manter a forma física - um gajo simpático, atento e vívido oriundo do Além-Tejo, com cabelo preso em estilo sumô - mais uma vez se aproximou enquanto eu, em posição de prancha, fazia o maldito abdominal:

- Parabéns! O senhor é muito determinado - e coisa e tal...

- Muito obrigado! E acho que devo concordar consigo - respondi com algum receio na afirmação e complementei - no que depender de mim, viverei até os 100 e com a espinha ereta pelo menos até os 90. Depois dos 90 procurarei um desses milhares de lar de idosos que temos por aqui, e esperarei a minha hora com uma xicara de café na mão, pernas em cruz, e isso se os cuidadores me descobrirem o Whiskey escondido na gaveta do criado mudo - E ele riu.

- Com essa disciplina é capaz de que o senhor chegue mesmo lá - afirmou o gajo treinador. E todos já sabem que gajo por aqui é o mesmo que o jovem ou individuo.

- Entretanto, para bem viver, é preciso aguçar os sentidos - recomendei.

- Como assim? - perguntou-me com interesse enquanto se agachava ao meu lado para poder ouvir-me melhor já que, na posição de prancha, falava eu para o piso da academia. Sim, eu estava a fazer os malditos abdominais. Tento segurar o bucho mesmo que a tarefa hercúlea seja infrutífera.

E explanei a minha teoria óbvia, tão óbvia como o nascer do sol e talvez, mais velha que o Matusalém:

- A maturidade amortece os sentidos, meu caro. A visão enfraquece e a surdez é quase certa. Mas, há que se explorar soluções para as carências sensoriais. E elas, as soluções,  existem e estão à disposição de todos. Podem ser tecnológicas ou criativas. Um aparelho auditivo, por exemplo, faz muito mouco voltar a ouvir. E um par de óculos, então!

- Compreendo perfeitamente as soluções tecnológicas existentes para as falências de nossos sentidos. Mas, o que o senhor quer dizer com soluções criativas? - perguntou-me ele

- Quero dizer que há que aguçar a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Usarmos a criatividade na hora de apreciarmos a vida e nas conclusões que tiraremos ante todas as experiencias por nos vividas. A atenção para com a maravilha que é o momento agora. E há que se desenvolver a atenção por meio da sensibilidade. A atenção para não se endurecer com a vida que pode ser difícil muitas vezes. A atenção para não se ficar a resmungar na rabugice que é, toda ela, nossa própria escolha. Meu rapaz, existem sempre duas maneiras, no mínimo, de vermos o mesmo objeto. Muitas são as conclusões que se pode tirar de objeto, momento ou fato vivido. Tais conclusões, por mais dolorosas que sejam, na maioria dos casos, podem ser vistas com positividade. E é claro que teremos de deixar margem às exceções.  

- Compreendo - disse-me ele.

- Com atenção e certa disciplina podemos usar da nossa criatividade para apurar, para aguçar a todos os nossos sentidos, inclusive os que se vão perdendo com o tempo. E aí acho que entra um outro sentido. Não o sexto sentido porque esse, todos sabemos, já foi descrito e até filme já virou - diga-se, belíssimo filme - e que trata dessa temática e que leva justo esse nome mesmo: O sexto Sentido. Mas, me refiro à atenção que damos ao que vivemos nas nossas tarefas e deveres do quotidiano. Tem à ver com certo deslumbramento ante as coisas mais simples e a reflexão que fazemos de todas elas. Exemplo: à beira do caminho quantas flores que ninguém ver. Mas, o mais o atento percebe não só a florada, mas se deslumbra também com a flor. E se ajoelha como que em completa devoção e, com carinho e esmero, colhe a flor e a leva ao nariz, e sente o seu perfume, e ver a sua cor. E , com encantamento, ver uma abelha ali naquela outra flor. E ao observa-la percebe a grande maravilha que afinal é a vida, a existência e a oportunidade de está ali. E sente um contentamento tão grande! E reflete sobre a abelhinha está coletar o pólen para abastecer a sua colmeia, a sua comunidade. E que o prazer dela é desenvolver a sua tarefa e alimentar a sua rainha, a razão de toda a sua existência fugaz. E que até um favo de mel produzirá e alimentará a quem, sem permissão lhe invade a comunidade e lhe rouba o produto de seu duro trabalho - e que delícia que é o mel ao paladar. E ouve o farfalhar das folhas com o vento e o canto dos pássaros e o cão a ladrar. E tira os sapatos só pra sentir a terra a lhe massagear as plantas dos pés. E com sorte ouvirá um trovão e a chuva bem faceja lhe cairá ao rosto.

- Talvez possamos chamar essa atenção e deslumbramento como o sétimo sentido - e me surpreendeu

- Talvez sim. Mas é mesmo uma questão de está alerta para o que se sente ante tudo, até mesmo ante a dor ou a morte. Inclusive, tem um guerrilheiro famoso que matou um monte de gente e que sequer merece que se cite o seu nome, a quem é atribuída uma celebre frase: Hay que endurecer, pero la ternura jamás! - em tradução livre "Há que endurecer, porém sem perder a ternura!".

- Acho que poderíamos chamar de sabedoria o Sétimo Sentido - disse ele a me surpreender novamente

- E com o tempo a gente aprende que quantidade nem sempre condiz com qualidade. E que ouvir menos pode ser benéfico e que "falar demais é dar bom dia a cavalo". E que não precisamos experimentar determinadas coisas que, só pelo mal odor já sabemos que ao paladar pode nos fazer vomitar. E que não preciso por minha mão em qualquer coisa ou buraco. 

E aqui pergunto ao caro leitor - Seria a sabedoria o sétimo sentido? 

E eu que sempre persegui a sabedoria. E ela que sempre correu léguas de mim.

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Pequeno glossário de palavras em português do Brasil e Portugal:


Banda desenhada = Historia em Quadrinhos

Peúgas = meias

Explicador = Professor particular

Carta de Condução = Carteira de Motorista

Sandes = Sanduiche

Gelado = Sorvete