sábado, 19 de junho de 2021

As Andorinhas de Cabul ou O Canecão era o Ideal

 

O Cine Ideal está para Lisboa, assim como o Cine Canecão esteve para Barra do Corda. O Ideal está ao lado da Praça Luís de Camões, o Canecão situava-se na Praça Melo Uchoa. O Cine Ideal permanece discreto e quase imperceptível aos olhos mais desatentos, mas sua discrição comercial é cultura da cidade lusitana, imposta por leis rígidas que impedem a aplicação de painéis e letreiros que impliquem a quebra de harmonia das cidades portuguesas. Um simples anúncio do estabelecimento que fique da porta para fora, mesmo que pregado ao vidro ou à parede, pagar-se-á caro para se ter; e quem desobedece às normas recebe altas multas. Segue-se o raciocínio de que, da porta para fora, a área não é sua, mas de todo mundo.


Eu já tinha decidido que numa hora qualquer, um dia, iria assistir um filme no Cine Ideal, só para eu sentir o déjà vu do Cine Canecão. Eu era um menino quando ali assisti As Sete Faces do Dr. Lao, e naquele local entrei apenas uma vez. Nossas condições financeiras não nos permitiam comprar ingressos para assistir a filmes sempre que nos batesse a vontade. Lembro-me, entretanto, em flashes mentais, daquele dia em que eu e meu irmão mais velho estivemos no Cine Canecão. 


Um chinês, mestre em disfarces, que, dentre tantos outros, se tornava cobra e até dragão. Certo é que aquela sessão matinê foi algo muito desejado já que, todas as noitesda minha rede na rua do Sítio dos Ingleses, numa completa escuridão - ainda não tínhamos energia na rua -,eu ouvia os megafones do Cine Canecão a tocar os saudosos temas dos filmes de faroeste. Então dormia, a ouvir aquele assobio e aquela guitarra de Ennio Morricone, do filme Por Um Punhado de DólaresSentia-me transportar para um mundo muito diferente daquele no qual vivia. 


Quando me dirigi ao Cine Ideal eu não sabia muito bem a que assistiria. Não sabia, nem me importava. O que eu queria era sentar-me na cadeira e sentir-me, outra vez, no Cine Canecão.


Na sessão do Cine Ideal, um desenho animado: "As Andorinhas de Cabul". Uma produção francesa de desenhos em aquarela, que narra um drama terrível vivido pelas mulheres no Afeganistão, sob o regime das trevas dos talibãs

 

Um tali, com a esposa com um câncer terminal, se apaixona por uma jovem prisioneira que, por acidente, havia matado o marido. Condenada à morte por apedrejamento, no meio de um estádio de futebol preparado para o espetáculo de horror e de mau gosto, ela espera pelo cumprimento da sentença numa prisão onde ele é diretor... Depois de tê-la visto sem a burca, ele passa a buscar uma maneira de ajudá-la a fugir, sem se dar conta de seus sentimentos reais. 


A burca, conquanto haja muita controvérsia, é aquela veste feminina que cobre todo o corpo eque o diabo inventou só para humilhar as mulheres muçulmanassendo, em alguns países,obrigatória até hoje. Não é permitido aos homens ver as mulheres, masacidentalmente, ele viu o seu rosto. Então, a esposa, com enfermidadeincurável e em estágio avançado, acolhe o marido que, num dado dia, volta do trabalho em prantos. 


Ele lhe conta da prisioneira e lhe informa a sua vontade de salvá-la por meio de uma fuga. No dia do fuzilamento, ainda na prisão, percebe que por baixo da burca está, não a prisioneira, porém, sua esposa com câncer terminal. A prisioneira fugira. A esposa, naquele momento, lhe informa que o amor o resgatara. Por toda a vida ela tentara, em vão, despertar nele o sentimento que o levara a chorar aos cântaros. Ela o amava tanto que o libertou para viver o seu novel amor.


As Andorinhas de Cabul voam sempre que ouvem a algazarra dos tiranos a disparar fuzis e metralhadoras nas suas arruaças cruéis pelas ruas empoeiradas da cidade de Cabul. O canto triste e melancólico dessas aves é ouvido nas cenas rotineiras e cotidianas das personagens na cidade,tétrica e deserta.


Ocorre que o final não é nem um pouco feliz e não lhes contarei para não estragar o filme, de antemão. Advirto, entretanto, que não é um desenho indicado para crianças. Trata-se de um desenho cult e sensível, qual muito recomendo aos maiores de idade que pensam que o amor sempre vira arroz com feijão.


A propósito, por falar em cult, o Canecão era muito cult. Essa expressão não existia naquele tempo, eu acho. Hoje, todavia, sei que o Canecão era muito cultAliás, penso que um desses empresários cordenses, mais saudosista e afinado com a sétima arte, bem que podia ressuscitar o Canecão. Eu acho que seria um completo sucessocom fila maior que a da Caixa Econômica em dia de pagamento de auxílio-emergencial. 

 

Se as histórias de Cabul, envolvendo Talibãs,sempre têm finais trágicos, ao menos em Lisboa,o Cine Ideal constitui-se um patrimônio, ainda,com uma história feliz. Já a história do Canecão, com seu triste final, poderia ser retratada num desenho de aquarela com final melancólico, triste, só que não em Cabul.

 

 

Wan Lucena

 

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

Turma da Barra:  https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1964905437008169

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