domingo, 27 de junho de 2021

O Menino do Canecão

 

Ele tinha apenas sete anos, era de família abastada e não entendia as desigualdades sociais e o fato de que muitos de seus amigos não tinham dinheiro para pagar os bilhetes de entrada para as desejadas sessões do Cine Canecão. Não passava qualquer necessidade e sempre teve acesso ao que havia de melhor na cidade e no prato nunca lhe faltou comida. O coração era altruísta e a empatia o fazia pagar, muitas vezes, a entrada dos amigos que não tinham condições financeiras de comprar os bilhetes.  

E olhe que ele ia ao Canecão quando este era ainda era apenas um barracão de madeira perto do rio e não aquele que quase todos levamos na memória, ao lado da FENAME, na Praça Melo Uchoa. Ele diz que viu o nascimento e a morte do Cine Canecão.

Portador de miopia em altíssimo grau, usava óculos fundo de garrafa, sem os quais quase nada conseguia ver. Havia dias em que chegava para assistir a sessão e se dava conta que esquecera os óculos em casa. Chamava um dos amigos que por ali se encontravam na esperança de Maria Canecão lhes colocasse cinema à dentro e dizia:

- Vai correndo lá em casa e pega meus óculos que eu te pago a entrada - e o moleque, como se fosse o The Flash, saia em desabalada carreira e voltava com os óculos minutos depois. 

Depois de ler a minha última crónica "As Andorinhas de Cabul ou o Canecão era o Ideal" aqui no Turma da Barra publicada na semana passada, esse menino, me contactou e me contou tantas histórias bonitas que me fizeram marear os olhos. Fez aqueles elogios rasgados que nos inflam o ego e quase nos fazem explodir e acrescentou muito mais. Ele assistiu a todos os filmes exibidos no Cine Canecão, com excessão de um.

Estava a contar os minutos para ir para o Cine Canecão para a estreia de de um dos filmes de Os Trapalhões cujo título a memória lhe falha e não se lembra. Minutos antes, a mãe zelosa o percebeu o filho afoguiado e decidiu medir-lhe a temperatura. Barra do Corda passava por um surto catapora. 

- É por isso que vou embora de vez dessa casa - e sentiu o peso da mão da mãe na sua boca. 

- É para que aprendas e jamais te esqueças de valor ao teto que tens - repreendeu-lhe a mãe.

Foi aquela a única vez que o menino do Canecão recebeu esse tipo de repreensão dos amorosos pais. Mas, por causa da rubéola, deixou de assistir a Os Trapalhões.

E menino rico de bom coração, já jovem, se foi para o mundo em busca de aventuras, melhores estudos e formação, e de fazer a sua história. E a fez. Fez uma história dramática e de superação. Andou pelo vale da sombras da morte e sentiu todas as dores do mundo. Desceu ao mais profundo umbral. Depois de muito penar, levantou a cabeça com dificuldade e olhou para o céu azul e se lembrou de suas origens, de sua cidade natal, e do menino feliz do Cine Canecão. Voltou para o seu porto seguro, o seu abrigo, Barra do Corda.  

Nos meus devaneios fico a me imaginar que eu, menino pobre filho de lavadeira , bem que podia ter sido amigo daquele outro menino rico e ter sido o The Flash mais rápido da cidade só para poder receber a recompensa: um bilhete de entrada na sessão do Cine Canecão. 

Aquele menino pobre dormia numa rede de uma casa sem luz elétrica, na Rua do Sitio dos Ingleses, a ouvir o assobio e a guitarra de Ennio Morricone desde os megafones do Canecão e que quebrava o jejum com café preto e farinha de puba, o famoso chibel também foi para o mundo e sentiu tantas dores quanto as do menino rico. 

As lembranças do passado triste e doloroso do passado hoje poderiam virar filme só para inspirar a meninos e meninas que se encontram, ainda nos dias de hoje, em situação igual ou pior. E essa constatação é hoje a minha dor. E que tristeza, meu deus! -

Hoje o menino do Canecão é cidadadão como outro qualquer a viver por ai. Equilibrado, diplomático, cheio de amigos e quase um monge ja que gosta de viver o seu claustros como um urso a hibernar nos invernos rigorosos do norte. Mas, se o amigo leitor quiser ver esse menino, vá até o Morro do Calvário no fim dia. Nem vai precisar muita sorte para o encontrar ali a apreciar encantado um por do sol que cai sobre o seu porto seguro. Mas, se num dia desses o amigo leitor ver um menino a  libertar delicadamente borboletas presas em vitrines de lojas da cidade, tenha a certeza, você está diante dele, do "Menino do Canecão".

 

Wan Lucena 


Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

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