Vi na revista eletrônica, Turma da Barra, da qual tenho grande honra em ser um dos colunistas, uma estória ocorrida na minha cidade natal, Barra do Corda. Trata-se de uma jovem senhora, cujo nome prefiro não citar, pois não lhe pedi autorização, cheia de amor ao próximo e sabedora que, muito além de ficar no discurso hipócrita da caridade de sacristias, podia efetivamente arregaçar as mangas e fazer o bem.
Pelas ruas de Barra do Corda, desde o diabólico plano Collor, havia um senhor que fora à ruína financeira e, consumada a falência, passara a morar nas ruas como um mendigo. Essa moça o convidou para morar em sua própria casa e o tratou com toda dignidade e respeito, como se um parente ou um familiar fosse. A revista registrou que ela elogiava os hábitos de higiene do antigo e maltrapilho mendigo e as fotos de um “antes e depois“, da revista TB, demonstram uma transformação simplesmente incrível.
Quero falar, no entanto, é desse "arregaçar de mangas" que leva os indivíduos a fazer o bem, independentemente de suas religiões, crenças e/ou diferenças que possam existir, àqueles que necessitam de uma boa ação.
É público e notório que o bem que uma mão faz a outra jamais deva saber. O intuito é impedir que o ato se esvazie pelo ralo da vaidade, eu sei. Ocorre que atos de maldade , principalmente os mais bárbaros, frise-se , enchem os jornais televisivos ou escritos, 24 horas do dia. Muitos são os que se deliciam ao ver tais estórias, enquanto abrem suas bocas, estupefatos ante a iniquidade.
Atos de bondade raríssimas vezes são mostrados e, se não são mostrados, não inspiram aos demais, não servem de exemplos a serem copiados. Assim, parece-me que passou da hora de se reconhecer que os atos de generosidade não deveriam ser escondidos. A argumentação em contrário serve muito mais aos que nada desejam fazer e, assim, não venham a ser incomodados ou interpelados com cobranças de fazer o que de fato não desejam.
Quem não se sensibiliza ante a humilhação alheia, seja ela qual for, sociopata é. Quem não se apieda com o sofrimento alheio por não se pôr no lugar de outrem, ou seja, é absolutamente incapaz de sentir empatia, sociopata é.
Eu, a meu modo, também vigio por ajudar a quem possa, sempre que a oportunidade surge. Sei que são muitos a se aproveitar da bondade alheia e outros tantos se passam por necessitados só para arranjar uns trocados, a fim de poderem encher o coco de cachaça, mas, vez por outra, temos umas surpresas.
Assim que cheguei a Lisboa, já se vão quatro anos, ao sair da agência do Banco do Brasil, bem na praça Marquês de Pombal, esbarrei com um gajo* alto, com idade acima de 60 anos, barba longa e branca, com uma mochila a tira-colo e jeitão de pessoa de bem com a vida, mas que, aparentemente, precisava de um teto ou de uma toillete**, para proceder a um alinhamento, apenas para passar um pente nos cabelos, visto que a mim não me parecia precisar também de um banho. Estava até limpinho, o gajo... Ele estagnou-se e curvou-se com simpatia...
- Por favor, pode passar, meu senhor.
- Pode passar o senhor, meu senhor – respondi, a reconhecer-lhe a humildade e nobreza.
- Brasileiro, não é? Adoro-vos! Brasileiro é o povo mais amável e simpático do mundo. Eu conheci o Brasil quando muito jovem, quando marinheiro. Estive por Manaus, Belém do Pará e outras cidades do Brasil. E as brasileiras? Ah... As brasileiras! Mulheres mais lindas no mundo não há! - Disse-me ele com simpatia e começamos a descer a Avenida da Liberdade, enquanto conversávamos animadamente.
Ele me explicou que morava pelas ruas fazia muito tempo e, ao ser indagado se era feliz, respondeu-me de forma convincente que sim. Eu, compadecido, ofereci-lhe uma nota de 10 euros, a qual ele recusou de forma veemente e causou-me não só surpresa, mas espanto.
- Como assim? O senhor pode almoçar bem com esses 10 euros, meu Senhor. E o faço de coração. Por favor, aceite-os! - Insisti eu.
- O senhor se importa, não é? - Perguntou-me ele, emocionado - Eu já almocei e não tenho fome, mas agradeço muito o seu gesto de generosidade, que os céus estão a ver... - e se foi sem nada querer de mim, que não fosse aquela circunstancial troca de palavras.
Ainda ontem, já quase meia-noite, aqui perto de minha casa, numa saída com o Karl, meu cão mudo, fui abordado por um rapaz cheio de saúde, o qual vejo com frequência aqui pelas redondezas. Contou-me aquela velha ladainha cansativa de que o seu carro estava de tanque vazio logo ali, e que ele não tinha dinheiro para gasolina, e que estava a pedir a uns e outros alguns trocados para poder abastecer e ir encontrar-se com sua esposa "coitadinha", do outro lado do rio Tejo e bla-bla-blá...etc. Eu o informei que estava desprovido naquele momento enquanto percebia o seu hálito alcoólico, mesmo estando ele a usar máscara, por conta da pandemia.
O gesto de bondade da minha conterrânea cordense requer muita coragem e amor. Não deixa de ser um risco colocar um estranho a morar dentro de sua casa, mas soube que ela o observava fazia algum tempo e que sabia da sua estória, conhecia sua índole e, quem sabe, seus familiares. É mesmo um ato que requer cuidado, muito cuidado, mas acima de tudo é ato que declara: a humanidade ainda tem jeito.
Wan Lucena
*Termo informal usado em Portugal como sinonimo de fulano, sicrano, cara, rapaz, pessoa do sexo masculino quando não se sabe ou não se deseja mencionar o nome da pessoa.
**Termo francês usado para banheiro, bem como, a ação de se lavar, pentear ou maquiar e cuja pronúncia é “toalete”.
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