terça-feira, 2 de março de 2021

A Humanidade tem jeito

 Vi na revista eletrônica, Turma da Barra, da qual tenho grande honra em ser um dos colunistas, uma estória ocorrida na minha cidade natal, Barra do Corda. Trata-se de uma jovem senhora, cujo nome prefiro não citar, pois não lhe pedi autorização, cheia de amor ao próximo e sabedora que, muito além de ficar no discurso hipócrita da caridade de sacristias, podia efetivamente arregaçar as mangas e fazer o bem.


Pelas ruas de Barra do Corda, desde o diabólico plano Collor, havia um senhor que fora à ruína financeira e, consumada a falência, passara a morar nas ruas como um mendigo. Essa moça o convidou para morar em sua própria casa e o tratou com toda dignidade e respeito, como se um parente ou um familiar fosse. A revista registrou que ela elogiava os hábitos de higiene do antigo e maltrapilho mendigo e as fotos de um “antes e depois“, da revista TB, demonstram uma transformação simplesmente incrível.


Quero falar, no entanto, é desse "arregaçar de mangas" que leva os indivíduos a fazer o bem, independentemente de suas religiões, crenças e/ou diferenças que possam existir, àqueles que necessitam de uma boa ação.


É público e notório que o bem que uma mão faz a outra jamais deva saber. O intuito é impedir que o ato se esvazie pelo ralo da vaidade, eu sei. Ocorre que atos de maldade , principalmente os mais bárbaros, frise-se , enchem os jornais televisivos ou escritos, 24 horas do dia. Muitos são os que se deliciam ao ver tais estórias, enquanto abrem suas bocas, estupefatos ante a iniquidade.


Atos de bondade raríssimas vezes são mostrados e, se não são mostrados, não inspiram aos demais, não servem de exemplos a serem copiados. Assim, parece-me que passou da hora de se reconhecer que os atos de generosidade não deveriam ser escondidos. A argumentação em contrário serve muito mais aos que nada desejam fazer e, assim, não venham a ser incomodados ou interpelados com cobranças de fazer o que de fato não desejam.


Quem não se sensibiliza ante a humilhação alheia, seja ela qual for, sociopata é. Quem não se apieda com o sofrimento alheio por não se pôr no lugar de outrem, ou seja, é absolutamente incapaz de sentir empatia, sociopata é.


Eu, a meu modo, também vigio por ajudar a quem possa, sempre que a oportunidade surge. Sei que são muitos a se aproveitar da bondade alheia e outros tantos se passam por necessitados só para arranjar uns trocados, a fim de poderem encher o coco de cachaça, mas, vez por outra, temos umas surpresas.


Assim que cheguei a Lisboa, já se vão quatro anos, ao sair da agência do Banco do Brasil, bem na praça Marquês de Pombal, esbarrei com um gajo* alto, com idade acima de 60 anos, barba longa e branca, com uma mochila a tira-colo e jeitão de pessoa de bem com a vida, mas que, aparentemente, precisava de um teto ou de uma toillete**, para proceder a um alinhamento, apenas para passar um pente nos cabelos, visto que a mim não me parecia precisar também de um banho. Estava até limpinho, o gajo... Ele estagnou-se e curvou-se com simpatia...


- Por favor, pode passar, meu senhor.


- Pode passar o senhor, meu senhor – respondi, a reconhecer-lhe a humildade e nobreza.


- Brasileiro, não é? Adoro-vos! Brasileiro é o povo mais amável e simpático do mundo. Eu conheci o Brasil quando muito jovem, quando marinheiro. Estive por Manaus, Belém do Pará e outras cidades do Brasil. E as brasileiras? Ah... As brasileiras! Mulheres mais lindas no mundo não há! - Disse-me ele com simpatia e começamos a descer a Avenida da Liberdade, enquanto conversávamos animadamente.


Ele me explicou que morava pelas ruas fazia muito tempo e, ao ser indagado se era feliz, respondeu-me de forma convincente que sim. Eu, compadecido, ofereci-lhe uma nota de 10 euros, a qual ele recusou de forma veemente e causou-me não só surpresa, mas espanto.


- Como assim? O senhor pode almoçar bem com esses 10 euros, meu Senhor. E o faço de coração. Por favor, aceite-os! - Insisti eu.


- O senhor se importa, não é? - Perguntou-me ele, emocionado - Eu já almocei e não tenho fome, mas agradeço muito o seu gesto de generosidade, que os céus estão a ver... - e se foi sem nada querer de mim, que não fosse aquela circunstancial troca de palavras.


Ainda ontem, já quase meia-noite, aqui perto de minha casa, numa saída com o Karl, meu cão mudo, fui abordado por um rapaz cheio de saúde, o qual vejo com frequência aqui pelas redondezas. Contou-me aquela velha ladainha cansativa de que o seu carro estava de tanque vazio logo ali, e que ele não tinha dinheiro para gasolina, e que estava a pedir a uns e outros alguns trocados para poder abastecer e ir encontrar-se com sua esposa "coitadinha", do outro lado do rio Tejo e bla-bla-blá...etc. Eu o informei que estava desprovido naquele momento enquanto percebia o seu hálito alcoólico, mesmo estando ele a usar máscara, por conta da pandemia.


O gesto de bondade da minha conterrânea cordense requer muita coragem e amor. Não deixa de ser um risco colocar um estranho a morar dentro de sua casa, mas soube que ela o observava fazia algum tempo e que sabia da sua estória, conhecia sua índole e, quem sabe, seus familiares. É mesmo um ato que requer cuidado, muito cuidado, mas acima de tudo é ato que declara: a humanidade ainda tem jeito.


Wan Lucena


*Termo informal usado em Portugal como sinonimo de fulano, sicrano, cara, rapaz, pessoa do sexo masculino quando não se sabe ou não se deseja mencionar o nome da pessoa.


**Termo francês usado para banheiro, bem como, a ação de se lavar, pentear ou maquiar e cuja pronúncia é “toalete”.

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