quarta-feira, 17 de março de 2021

Uma Santa brasileira em Lisboa

A paisagem que se vê desde o Miradouro* de Santa Luzia é de fazer babar aos mais insensíveis. Os telhados vermelhos e as fachadas azulejadas dos edifícios de Lisboa colorem a sua paisagem abaixo e, mais adiante, um imenso espelho - Rio Tejo - no horizonte, riscado pelos navios cruzeiros que chegam e partem lotados de turistas. Dali ainda se veem as abóbadas – peculiares domos sagrados - das igrejas, e as ruas típicas, sempre apinhadas das gentes da cidade. Do outro lado, as cidades de Almada, Alcochete, Montijo e várias outras. 

O miradouro, por si só, já é desbunde aos olhos. Há um imenso pergolado que sustenta os bougainvilles, de floradas exuberantemente rosadas, os quais sobem pelas paredes da Igreja de Santa Luzia, situada no mesmo local, e que se espalham a sombrear os casais enamorados e os artistas que por ali ganham seus trocados. Ademais, todas as paredes da referida igreja, assim como as muretas do miradouro, estão cobertas por centenários azulejos portugueses, em cujos quadros pode-se contemplar cenas históricas das aventuras e das glórias portuguesas.

Aos fundos da linda igreja, o visitante, mais curioso e atento, perceberá uma escada discreta e, se por ela subir os degraus, achará um platô** onde funciona um Café; ali poderá sentar-se a observar toda a cena, confortavelmente, enquanto se refresca com uma boa cerveja ou saboreia um delicioso “drink”. 

A Igreja de Santa Luzia, também de telhados vermelhos, não é tão grande, mas é superbém cuidada e se mantém altiva tanto quanto a coluna do seu guardião: um senhor de uns 90 anos, magro e narigudo; vestido em um uniforme jaquetão garboso, azul petróleo, com uma medalha da Cruz de Malta no peito e um bigodinho indefectível, como não poderia deixar de ser.  Respeitoso e rígido como um militar de plantão numa guarita, mãos para trás em completa subordinação, devidamente enquadrado por trás do balcão, logo à entrada, recebe os visitantes ou pagadores de promessas. Ali, sobre o balcão, numa cesta-gazofilácio*** são depositadas as oferendas e as esmolas. 

- Muito bom dia e seja muito bem-vindo à Igreja de Santa Luzia! - assim me recebeu, com distinta simpatia, o fiel soldado-guardião de Santa Luzia.

Ao perceber que eu era brasileiro, esclareceu:

- A nossa Santa Luzia é brasileira, o senhor sabia? - Claro é que eu não sabia. O que eu sabia, até então, era que o Brasil não tinha santos reconhecidos pelo Vaticano.

- Brasileira? Como assim? - Indaguei com enorme curiosidade e ele acompanhou-me até ao oratório e, à minha direita, discreta e sem enfeites, sem brilho ou velas, encontrava-se uma estátua em madeira, de cor marrom como um hábito franciscano, de pescoço longo que, com todo o respeito, me lembrou a Olívia Palito. As suas formas mostravam com exuberância uma mulher de saias esvoaçantes e cabelos tão volumosos e ondulados que faziam o seu rosto ficar minúsculo. 

- O senhor sabe quem esculpiu a nossa Santa Luzia? - Perguntou-me o velho guardião.

Como eu poderia saber? Eu acabara de chegar a Lisboa e não sou grande conhecedor de artes, muito menos de santas. 

 Eu, em minhas conjecturas mentais, tentava adivinhar quem seria o autor. Pensei nos artistas pernambucanos e baianos que tão bem sabem fazer santos, seja em barro, madeira ou quaisquer outros materiais.

- Quem esculpiu a nossa Santa Luzia foi o mineiro Aleijadinho. – Foi então que, muito, me emocionei ante a obra de Antonio Francisco Lisboa, o nosso escultor maior, aclamadíssimo artista da arquitetura colonial, o nosso brasileiro: o Aleijadinho.

Não sei se por ironia, ressalte-se, Lisboa já lhe ia de sobrenome, e eu que sou um quase ateu, de imediato, fiz o sinal da cruz em reverência a Aleijadinho e em seguida à Santa Luzia, de quem eu nem poderia ser devoto. 

Saí da igreja emocionado, depois de, até mesmo, acender umas velas por intercessão de parentes e amigos que ficaram no Brasil; e o gazofilácio do bom velhinho guardião recebeu a minha esmola.

·        * Miradouro: mirante; local elevado de onde se tem uma visão    panorâmica.

·        ** Platô: esplanada; local plano e alto; chapada; “deck”; “terraço”.

·        *** Gazofilácio: caixa onde os fiéis depositam suas ofertas; lugar em que, nos templos, se colocam as ofertas; na Grécia Antiga significava caixa de joias.

 

Wan Lucena


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