quarta-feira, 4 de novembro de 2020

A Janela e o Mundo

A minha janela em Lisboa não é o que se pode denominar de uma janela qualquer. A cena não é mesmo nada pequena. Todos os dias, se quisesse eu, teria uma estória a vos contar. Eu explico. Moro para o lado de dentro de um imenso quarteirão onde os prédios têm cerca de 8 andares. Moro bem na quina interna do quarteirão. Posso passar até uma marmita para a vizinha que fala comigo de frente, mas na diagonal, de janela para janela. 

As moradias térreas contam com terraços e jardins onde se plantam laranjas, limões, figos, oliveiras etc... Nos terraços se podem ver gatos e cachorros, velhotes a a andar em círculos a fazer um exercício matinal e velhotas a estender suas roupas. 

Tem muitos pombos os quais se alimentam das migalhas jogadas sobre as lajes desde os apartamentos. Tem as gaivotas enormes e famintas que alimentam dos nacos de carne que a minha vizinha de janela lhes joga. 

Depois de o leitor visualizar a minha janela, passo agora passo a descrever um pouco - e apenas um pouco - de toda a cena que assisto a partir dela. E nessa crónica vos relatarei dois acontecimentos muito "pra lá de engraçados" e que espero, ajudem a levantar o canto da boca do leitor, senão uma gaitada.

Essa minha vizinha de parede alpegada... - eu vou dizer que ela é "uma graça" - ama os animais, mas todos os animais mesmo, desde os cães, gatos e pombos as gaivotas e sabe-se lá mais o quê, e desde sua janela passa a brigar com a vizinha do outro lado do quarteirão - e isso significa quase 500 metros de distancia - porque uma cadela qualquer está a latir sem parar e, segundo ela, estaria a passar fome.

É briga também com outro vizinho por causa de outra cadela no terraço lá em baixo que está muito magrinha e a morrer de frio enquanto pede um carinhozinho que seja, coitadinha. E grita daqui para lá e já ninguém sequer lhe da atenção e que vai fazer denuncia aos órgãos de defesa dos animais e que aqui, além de multa, maus tratos a animais pode render até cinco anos de xilindró. 

Ainda esta semana, dei de cara com o marido dessa dita vizinha, um velhinho calvo e  sem dentes, de olhos arregalados e com olheiras profundas e pele de quem precisa, faz anos, de um pouco de banho de sol - coitadinho!

- Coitadinha, da cadela. Sofre muito a coitadinha da bichinha - disse-me ele a dirigir-me a palavra nesses diminutivos e pela primeira vez desde que aqui estou,  e já lá se vão três anos ao menos.

E enquanto eu travava um diálogo "pequeninho", também no diminutivo, quase monossilábico, na janela ao lado, no mesmo apartamento, e sem ser vista por ele, me aparece a referida vizinha, sua esposa, a fazer círculos com o dedo indicador ao ouvido e a balbuciar:

- Ele é doido! Ele é doido! Percebes? - E tentei responder sem que o velhinho me visse a balançar a cabeça em negativa.

- Não, não percebi - menti eu por entre os lábios 

Mais adiante, na outra janela, mora um gajo que já vai com os seus trinta e poucos anos e que fuma como uma caipora e não apenas tabaco - e nada tenho eu com isso, deixo muito bem claro. Meses atrás, feliz da vida que eu estava, a fazer um almoço, por voltas das 14 horas e a bebericar umas taças do bom vinho português, aumentei o som na minha caixinha JBL, a ouvir "Hoje eu não saio não" de Marisa Monte e a achar que estava a todos agradar ante o momento triste de pandemia a que estamos todos submetidos quando ouvi os gritos na janela do dito gajo. Fui até minha janela e o vi com uma espada que deve ter sido usada por Dom Pedro no grito da independência do Brasil.

- Vais baixar o som som ou não vais? - perguntou-me o gajo em bom português de Portugal enquanto a espada zigzagueava janela a fora.

Eu fiz cara de impávido colosso e fingi não perceber a ameaça. Com a tranquilidade de um monge budista que estava há anos em posição de lótus a meditar no Tibet, pedi um minutinho, voltei para dentro de casa e baixei o som. De volta a janela e na segurança de que ele não tinha asas, nem era o super homem para voar desde a janela dele ate a minha com um fosso de, no mínimo, uns dez metros de profundidade entre nós, perguntei:

- Pois não! O que o senhor deseja? - e sorvi mais um gole daquele vinho português

E em tom nada amigável e naquele desalinho de quem acaba de acordar, com aquele humor de quem nada dormiu a noite,  me disse que o som estava alto e coisa e tal e que estava a lhe "incomodaire". 

- Mas era só isso? - perguntei como quem estava a falar com um padre e dentro de um sacro santo lugar - quando tomaremos uma taça? - e se recolheu.

A vizinha do marido doido, essa a que me referi acima, depois de alguns dias me informou que ele era seu vizinho de porta, que era arqueólogo, e muito inteligente, e que vivia de ler, que era meio doido, mas super gente boa. E eu captei tudo - mais um  doido, pensei.

A posteriori, a estender minhas roupas no varal à janela, me aparece o dito cujus com um sorriso largo e embotado.

- Bom dia, vizinho! Deus o abençoe sempre!

- Bom dia  - respondi eu sem titubear e certo que um "bom dia" podia salvar não só o meu dia

Ainda ontem, depois de muitas conversas de janela a janela com ele, a falar de politica do Brasil e de Portugal, ele me perguntou:

- Ó vizinho, conheces o Isaiah Berlim?

 Se conhecia Isaiah Berlim? Como assim? Quem diabos era Isaiah Berlim? - pensei eu

- Não, mas o nome me soa familiar 

- Pois pegue ai papel e caneta para que possas anotar o nome dele - e assim o fiz

- Isaiah Berlim, anotaste? Berlim mesmo, como a se escreve a capital alemã. Tens que ler "Quatro Ensaios sobre a Liberdade".

Eu fui pesquisar sobre o filósofo que nada escreveu. E o que dele foi escrito deve-se aos seus alunos que redigiram e publicaram suas aulas quando já estava ele morto. E lá fui eu ler os ensaios de Isaiah Berlim.

E que essa cronica nunca seja lida pelos meus referidos vizinhos a quem sequer sei os nomes, assim como sei que eles também não sabem o meu. E se eles se sentirem magoados - não foi a minha intenção e juro pela santa cruz - que escrevam eles sobre mim uma daquelas crónicas de vingança grega e que todos morramos no final, e que "falem bem ou falem mal, mas que falem de mim" - já dizia Simone de Beauvoir? 

Certo é que se o caro leitor, barra-cordense ou não, pode pensar que somente numa janela lisboeta se pode viver estórias como essa. E eu vos afirmo estarem redondamente enganados. Apure os sentidos desde os ouvidos à visão, do tato ao paladar e olfato. Abra a sua janela e seu coração, pode está na Altamira, no Incra, no Sitio dos Ingleses ou na Trisidela, e vai perceber que a vida é tão rica de estórias quanto as de qualquer lugar do mundo. Porque bom mesmo é sonhar acordado e se fazer personagem de um enredo onde somos sempre o ator principal. E até o vento que nos bate a cara e nos levanta os cabelos, com um pouco de sensibilidade, pode virar uma boa estória, um poesia, um conto. E quem conta, sempre aumenta um ponto.

Aos conterrâneos Barra-cordenses, o meu abraço!


Mini glossário português de Portugal em relação ao português do brasil:


Sanita = vaso sanitário

Ecrã = tela de tv, computador ou celular

Rés-do-chão = andar térreo dos condomínios

Passadeira = faixa de pedestre

Portagem = pedágio

Agrafador = grampeador

Crónica também publicada na Revista Virtual Turma da Barra

https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1779040742261307





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