A minha janela em Lisboa não é o que se pode denominar de uma janela qualquer. A cena não é mesmo nada pequena. Todos os dias, se quisesse eu, teria uma estória a vos contar. Eu explico. Moro para o lado de dentro de um imenso quarteirão onde os prédios têm cerca de 8 andares. Moro bem na quina interna do quarteirão. Posso passar até uma marmita para a vizinha que fala comigo de frente, mas na diagonal, de janela para janela.
As moradias térreas contam com terraços e jardins onde se plantam laranjas, limões, figos, oliveiras etc... Nos terraços se podem ver gatos e cachorros, velhotes a a andar em círculos a fazer um exercício matinal e velhotas a estender suas roupas.
Tem muitos pombos os quais se alimentam das migalhas jogadas sobre as lajes desde os apartamentos. Tem as gaivotas enormes e famintas que alimentam dos nacos de carne que a minha vizinha de janela lhes joga.
Depois de o leitor visualizar a minha janela, passo agora passo a descrever um pouco - e apenas um pouco - de toda a cena que assisto a partir dela. E nessa crónica vos relatarei dois acontecimentos muito "pra lá de engraçados" e que espero, ajudem a levantar o canto da boca do leitor, senão uma gaitada.
Essa minha vizinha de parede alpegada... - eu vou dizer que ela é "uma graça" - ama os animais, mas todos os animais mesmo, desde os cães, gatos e pombos as gaivotas e sabe-se lá mais o quê, e desde sua janela passa a brigar com a vizinha do outro lado do quarteirão - e isso significa quase 500 metros de distancia - porque uma cadela qualquer está a latir sem parar e, segundo ela, estaria a passar fome.
É briga também com outro vizinho por causa de outra cadela no terraço lá em baixo que está muito magrinha e a morrer de frio enquanto pede um carinhozinho que seja, coitadinha. E grita daqui para lá e já ninguém sequer lhe da atenção e que vai fazer denuncia aos órgãos de defesa dos animais e que aqui, além de multa, maus tratos a animais pode render até cinco anos de xilindró.
Ainda esta semana, dei de cara com o marido dessa dita vizinha, um velhinho calvo e sem dentes, de olhos arregalados e com olheiras profundas e pele de quem precisa, faz anos, de um pouco de banho de sol - coitadinho!
- Coitadinha, da cadela. Sofre muito a coitadinha da bichinha - disse-me ele a dirigir-me a palavra nesses diminutivos e pela primeira vez desde que aqui estou, e já lá se vão três anos ao menos.
E enquanto eu travava um diálogo "pequeninho", também no diminutivo, quase monossilábico, na janela ao lado, no mesmo apartamento, e sem ser vista por ele, me aparece a referida vizinha, sua esposa, a fazer círculos com o dedo indicador ao ouvido e a balbuciar:
- Ele é doido! Ele é doido! Percebes? - E tentei responder sem que o velhinho me visse a balançar a cabeça em negativa.
- Não, não percebi - menti eu por entre os lábios
Mais adiante, na outra janela, mora um gajo que já vai com os seus trinta e poucos anos e que fuma como uma caipora e não apenas tabaco - e nada tenho eu com isso, deixo muito bem claro. Meses atrás, feliz da vida que eu estava, a fazer um almoço, por voltas das 14 horas e a bebericar umas taças do bom vinho português, aumentei o som na minha caixinha JBL, a ouvir "Hoje eu não saio não" de Marisa Monte e a achar que estava a todos agradar ante o momento triste de pandemia a que estamos todos submetidos quando ouvi os gritos na janela do dito gajo. Fui até minha janela e o vi com uma espada que deve ter sido usada por Dom Pedro no grito da independência do Brasil.
- Vais baixar o som som ou não vais? - perguntou-me o gajo em bom português de Portugal enquanto a espada zigzagueava janela a fora.
Eu fiz cara de impávido colosso e fingi não perceber a ameaça. Com a tranquilidade de um monge budista que estava há anos em posição de lótus a meditar no Tibet, pedi um minutinho, voltei para dentro de casa e baixei o som. De volta a janela e na segurança de que ele não tinha asas, nem era o super homem para voar desde a janela dele ate a minha com um fosso de, no mínimo, uns dez metros de profundidade entre nós, perguntei:
- Pois não! O que o senhor deseja? - e sorvi mais um gole daquele vinho português
E em tom nada amigável e naquele desalinho de quem acaba de acordar, com aquele humor de quem nada dormiu a noite, me disse que o som estava alto e coisa e tal e que estava a lhe "incomodaire".
- Mas era só isso? - perguntei como quem estava a falar com um padre e dentro de um sacro santo lugar - quando tomaremos uma taça? - e se recolheu.
A vizinha do marido doido, essa a que me referi acima, depois de alguns dias me informou que ele era seu vizinho de porta, que era arqueólogo, e muito inteligente, e que vivia de ler, que era meio doido, mas super gente boa. E eu captei tudo - mais um doido, pensei.
A posteriori, a estender minhas roupas no varal à janela, me aparece o dito cujus com um sorriso largo e embotado.
- Bom dia, vizinho! Deus o abençoe sempre!
- Bom dia - respondi eu sem titubear e certo que um "bom dia" podia salvar não só o meu dia
Ainda ontem, depois de muitas conversas de janela a janela com ele, a falar de politica do Brasil e de Portugal, ele me perguntou:
- Ó vizinho, conheces o Isaiah Berlim?
Se conhecia Isaiah Berlim? Como assim? Quem diabos era Isaiah Berlim? - pensei eu
- Não, mas o nome me soa familiar
- Pois pegue ai papel e caneta para que possas anotar o nome dele - e assim o fiz
- Isaiah Berlim, anotaste? Berlim mesmo, como a se escreve a capital alemã. Tens que ler "Quatro Ensaios sobre a Liberdade".
Eu fui pesquisar sobre o filósofo que nada escreveu. E o que dele foi escrito deve-se aos seus alunos que redigiram e publicaram suas aulas quando já estava ele morto. E lá fui eu ler os ensaios de Isaiah Berlim.
E que essa cronica nunca seja lida pelos meus referidos vizinhos a quem sequer sei os nomes, assim como sei que eles também não sabem o meu. E se eles se sentirem magoados - não foi a minha intenção e juro pela santa cruz - que escrevam eles sobre mim uma daquelas crónicas de vingança grega e que todos morramos no final, e que "falem bem ou falem mal, mas que falem de mim" - já dizia Simone de Beauvoir?
Certo é que se o caro leitor, barra-cordense ou não, pode pensar que somente numa janela lisboeta se pode viver estórias como essa. E eu vos afirmo estarem redondamente enganados. Apure os sentidos desde os ouvidos à visão, do tato ao paladar e olfato. Abra a sua janela e seu coração, pode está na Altamira, no Incra, no Sitio dos Ingleses ou na Trisidela, e vai perceber que a vida é tão rica de estórias quanto as de qualquer lugar do mundo. Porque bom mesmo é sonhar acordado e se fazer personagem de um enredo onde somos sempre o ator principal. E até o vento que nos bate a cara e nos levanta os cabelos, com um pouco de sensibilidade, pode virar uma boa estória, um poesia, um conto. E quem conta, sempre aumenta um ponto.
Aos conterrâneos Barra-cordenses, o meu abraço!
Mini glossário português de Portugal em relação ao português do brasil:
Sanita = vaso sanitário
Ecrã = tela de tv, computador ou celular
Rés-do-chão = andar térreo dos condomínios
Passadeira = faixa de pedestre
Portagem = pedágio
Agrafador = grampeador
Crónica também publicada na Revista Virtual Turma da Barra
https://www.facebook.com/jornalturmadabarra/posts/1779040742261307
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