quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O Milagre do Galo que cantou depois de Assado

O que chamamos de Carreirão de Santiago ao olharmos para o céu, caso o leitor não o saiba, leva esse nome por causa do Apóstolo de Jesus Cristo, Tiago, o filho de Zebedeu. E como bom cristão o amigo leitor deve saber também que eram dois os Tiagos apóstolos. E o Tiago a que me refiro não é o Menor, ou seja, o filho de Alfeu,  mas o filho de Zebedeu, Tiago Maior. 

Segundo a lenda, um eremita - aquela pessoa que decidiu viver isolado e completamente afastado da civilização, em geral no meio de alguma floresta e por motivos religiosos - de nome Pelayo, por muitas noites observava, desde uma colina, uma insistente chuva de estrelas cadentes. E foi o próprio Apostolo Tiago que lhe apareceu em sonhos e lhe revelou que as luzes das estrelas a cair lhe indicariam o local exato onde estaria a sua sepultura. 

E o Abade-eremita caminhou, sempre guiado pelas luzes das estrelas a cair, de não sei onde até o local onde se encontra hoje a Catedral de Santiago de Compostela. Depois de cavoucar a terra acumulada por séculos, descobriu a sepultura a sepultura de Santiago. Pelayo comunicou sua descoberta ao Bispo Teodoro de Iria Flavia, e este comunicou ao Rei Alfonso II das Astúrias, o Casto, e que caminhou até lá para verificar os fatos.

E o Rei Alfonso II se tornou assim, o primeiro peregrino da História, tendo ele caminhado desde Oviedo até Santiago, fazendo assim o que se conhece como o Caminho Primitivo. Depois de verificar a veracidade dos fatos, no ano de 847 depois da "Graça de nosso Senhor Jesus Cristo", mandou erigir uma pequena capela no local do túmulo que depois virou a magnifica catedral que hoje se ver.

Aqui deixo a História e passo para lenda, a estória com "E". Quero contar ao leitor a lenda - uma linda lenda - do Galo de Barcelos. E essa lenda tem à ver com o Caminho de Santiago. Tal peregrinação leva milhares de pessoas - e só no ano de 2018 foram 300 mil peregrinos - a sair de diversos pontos na Europa, à pé, rumo ao túmulo de Santiago, em Compostela, na  Espanha.

Barcelos é uma cidade portuguesa que fica bem lá ao norte, já quase na divisa de Portugal com a Espanha e donde cheguei já no meio da tarde, muito cansado depois de quatro dias de peregrinação, desde a Cidade do Porto. Cheguei lá à pé, sim senhor! E sim senhor, este que lhe escreve e que nem homem de religião é, estava a fazer a famosa peregrinação até ao túmulo do dito Apostolo Tiago -  Santiago depois de santificado por decreto papal como o são todos os santos. Foram 12 dias de caminhada. Mas essa é outra Estória.

Barcelos conta com sítios arqueológicos muito bem preservados, dos tempos romanos, e que estão ao dispor dos turistas por toda a cidade. Muralhas medievais, ruínas de igrejas e túmulos feitos em pedra estão aos olhos de qualquer um que decidir fazer uma visita à cidade.

Mas foi as margens do Rio Cávado - rio que corta a cidade - onde decidi "bater um rango". Entrei num restaurante de boa cara e percebi que tinha pompa. Olhei o cardápio e, depois de constatar que cabia no meu bolso, entrei e fui atendido pelo Chef e proprietário já à porta.  Vestido à caráter com o típico uniforme branco e, na cabeça, o seu gorro enorme e estufado e imponente. De sorriso largo e sem cáries. Era ainda jovem, tinha lá seus 40 anos, e não apresentava aquele bucho a bater nos joelhos, tampouco o bigodinho indefectível português.

- Boa tarde - cumprimentei 

- Brasileiro? Amo o Brasil! Inclusive tive um restaurante no Rio, a cidade do Rio, no Rio de Janeiro, onde morei por uns tempos - disse ele efusivo e caloroso, mas contido e profissional, e percebi que o jantar seria muito agradável. E o foi.

Já estava a sorver um gole do bom vinho português, a olhar a estátua de um imenso galo pela janela,  com seus seis metros de altura, todo pintado em preto e vermelho, com corações e flores desenhados a lhe enfeitar enquanto mirava fixo, impávido e colosso, o Rio Cávado, caudaloso e a refletir os últimos raios do sol. Foi quando o Chef se aproximou da mesa e puxou assunto.

- É mesmo bem bonito o nosso Galo de Barcelos, não é? O senhor conhece a estória do nosso galo? - e pensei eu "senta que lá vem a estória!". E senti certa euforia não sei se advinda do vinho ou da perspetiva do que iria ouvir.

Ante a minha negativa o Chef começou:

- Diz a lenda que nossa cidade de Barcelos, faz mais de 500 anos, estava assombrada com um crime cujo autor não havia sido identificado. Certo dia, a passar por aqui um peregrino Galego - aquele que é  nascido na Galícia, Estado espanhol donde se situa Santiago - foi ele acusado do tal crime. Apesar de jurar inocência, foi preso e condenado à forca. Como ultimo desejo antes da forca, o galego pediu que o levassem até o juiz que o condenara. Ao chegarem à casa do juiz, condenado e a escolta policial, ele estava a se deliciar num banquete com os amigos. 

E aqui o Chef pegou a garrafa de vinho sobre a mesa e, gentilmente, me completou a taça enquanto se curvava com uma mão devidamente presa às costas como manda a etiqueta marcial desses ambientes e serviços. E eu não me fiz de rogado... incorporei o fino que nunca fui e ele continuou:

- Ante o juiz naquele banquete, o peregrino galego jurou inocência. O juiz e seus convidados riram às gargalhadas do condenado e da sua alegação. E o condenado então declarou: sou tão inocente que esse galo à sua mesa se levantará e cantará quando do meu enforcamento.

E o Chef riu de canto enquanto me contava que:

- Pelo sim, pelo não, receosos que ficaram o juiz e seus convidados, ninguém comeu o galo assado e suculento que estava numa bandeja de prata, no meio da rica e farta mesa. E enquanto o cadafalso era aberto pelo carrasco que enforcava o condenado galego peregrino, o que parecia impossível aconteceu. O galo ergueu-se na mesa e cantou em alto e bom som, tal e qual aquele outro galo cantou em Jerusalém depois do Apóstolo Pedro ter negado a Jesus por três vezes. Afinal, era mesmo inocente o condenado.

E aí entendi que estava a ouvir uma lenda, apenas uma lenda, uma belíssima lenda. E Osmar Monte deve está a pensar que essa estória podia ter acontecido na Barra do Corda, só para ser ele a ter o prazer vos conta-la com toda a sua maestria. E aqui eu rio. Com todo o respeito ao contista fabuloso que o é, o grande Osmar.

- Correram todos para o local onde acontecia o enforcamento certos de que já era tarde e que o condenado já estaria era pendurado à corda. Mas, ficaram atónitos ao perceber o galego vivíssimo com a corda ainda no pescoço enquanto o carrasco preparava um segundo nó. Na primeira tentativa, por causa de um nó mal dado pelo carrasco, o enforcamento falhara. O  Juiz então inocentou o condenado e o mandou seguir em paz a sua peregrinação. Anos mais tarde, o mesmo peregrino voltou a Barcelos e ali erigiu o Monumento do Senhor do Galo em louvor à Virgem Maria e Santiago Maior.

- E terminou a lenda - pensei eu.

- E tão importante é o nosso galo que o GAL que o senhor pronuncia todas as vezes que fala o nome Portugal, esse Gal de Portugal, é por causa do nosso galo aqui de Barcelos.

Meses depois, já em Lisboa e dentro de um táxi, enquanto contava a dita lenda a um amigo brasileiro de visita por aqui, fui interrompido pelo motorista:

- Ora Pois! Mas, alto lá! Isso é o que diz a lenda. A História com H é outra. O nome Portugal é derivado de PORTVCALE, nome dado pelos romanos quando aqui desembarcaram no porto, hoje cidade do Porto e por causa de uma outra localidade ali perto e por eles batizada de Cale. 

PORTVCALE é com V mesmo por ser a língua romana que depois virou Portugal, sim "senhoire".

E eu me rendi à História com H. Mas, fico mesmo o Galo de Barcelos só porque gosto mesmo é de lendas e estórias.

Wan Lucena

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Hoje, ao invés do nosso pequeno glossário, vão algumas expressões portuguesas que podem lhe surpreender:

1 - À grande e à francesa = significa em abundancia; com pompa;

2 - Ficar em águas de bacalhau = significa a ideia de falhar ao combinado; de se atrasar; de se perde ou de não chegar à tempo;

3 - Como sardinhas em lata = significa superlotação do mesmo espaço. Usa-se muito para a superlotação dos transportes públicos;  

4 - Ter as favas contadas = ter o resultado, de algo ou alguma coisa, por certo e inevitável;

5 - Dar graxa = elogiar excessivamente e, muitas vezes, em falso.





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