terça-feira, 24 de novembro de 2020

A Coisa tá Feia

A humanidade está mesmo muito doente, é o que me parece. A empatia se faz rara e já não nos incomoda a dor ou aflição alheia. E eu acho mesmo que a empatia seria a mola propulsora que poderia mudar o mundo. 

A empatia é o proclamado "amor ao próximo". Ouvimos falar dele quase que todos os dias, em quase todos os templos e igrejas mundo à fora. Entra por um ouvido e sai pelo outro. 

No primeiro mundo, na Europa onde vivo, percebo vários desses seres sem sentimentos, verdadeiras caixas de carne vazias, robôs sem programação ou defeituosos de suas funções. 

Dias atrás tirei dos bolsos umas moedas para dar a uma pessoa que dizia está a passar fome numa parada de ónibus quando fui interpelado aos gritos por um nacional:

- Esse gajo não passa de vagabundo que não merece ajuda, opáh! - e  fiz cara de paisagem e nada respondi enquanto o necessitado se afastava acabrunhado e com uma vergonha, talvez maior que a minha.

A pandemia do COVID-19 tem piorado e muito a situação de quase todos mundo à fora e muitas são as pessoas que estão em situação precária na Europa. Uma multidão foi despedida e, sem condições de pagar os alugueis de suas casas, é obrigada a ir para as ruas.

Não sei se é apenas impressão minha, mas já faz algum tempo que tenho percebido, com tristeza, que a mancha escura da maldade tem aumentado. Chegamos ao ponto de desconfiarmos de tudo e de todos, o tempo todo. A mão estendida pode ser a do inimigo que apenas quer ganhar-lhe a confiança até descobrir o seu ponto fraco, o segredo do seu cofre, da sua vida, para lhe roubar tudo. 

 E a minha vizinha acaba de informar pela janela aqui:

- Estou a ouvir no jornal que 8 em cada 10 portugueses estão desempregados 

E nessa paranoia é que chego ao ponto que gostaria de vos relatar. 

Estava a ser atendido por uma manicura e a olhar a cena fora do salão através da vidraça e vi uma linda moça a receber um gajo - rapaz, no Brasil - seu companheiro com um abraço e um beijinho de carinho. O amor estava no ar e se percebia estampado no rosto de ambos. Ele chegou com o cabelo ainda molhado e uma pequena toalha ao ombro e, depois da cena de amor e carinho,  entrou para dentro de uma carrinha - o mesmo que van, no Brasil -  ali parada enquanto ela ficou na boleia. Uma cortina improvisada desceu para impedir a visão enquanto o rapaz descansava com a porta aberta.

- Eles estão aí faz mais de uma semana. Eu os tenho observado. Ele sai, vai até o supermercado ali na frente, faz a higiene pessoal no banheiro de lá e volta. Depois ela faz o mesmo - contou-me a manicura.

A grande maioria dos que moram nas ruas - e sorte têm os que possuem carro para fazer de casa - é imigrante e está por aqui de forma ilegal. Se forem pegos, serão presos e deportados sem dó, nem piedade. Assim sendo, além de se está nas ruas, se vive a fugir das polícias e demais órgãos de fiscalização. 

Ante a informação da manicura senti de imediato uma dó danada. E ela me contou que na semana anterior, um outro casal, esse com três filhos, estava no mesmo local e na mesma situação e que um cidadão nacional - muito provavelmente um desses psicopatas que descrevi nos parágrafos anteriores - incomodado com a cena, foi até eles, esbravejou impropérios mil e ameaçou chamar a policia caso permanecessem ali. A família apavorada ligou seu carro casa e se foi em fuga, coitada.

E diante dessa outra estória, tive o ímpeto de tentar ajudar ao casal que muito parecia ser de brasileiros. Por vezes, a ajuda pode ser só um gesto de boa vontade, uma manifestação de apoio e solidariedade, um cuidado, uma palavra - pensei eu. Pensei que podiam usar o banheiro do meu apartamento, minha cozinha... , sei lá, não sei. Talvez eu lhes pudesse lhe levar uma garrafa de café, quem sabe. 

A manicura, muito humana e empática, também achou que podia ajudar de alguma forma. Com todo o cuidado, escolhendo a melhor maneira de contato e a buscar as palavras, me dirigi à moça que me respondeu com um sotaque indiano ou de algum país asiático. Era mesmo muito linda a moça. Uma pele delicada e morena, cabelos lisos como seda e num corte Channel perfeito. O rapaz que descansava protegido das vistas pela cortina improvisada assustou-se que eu percebi, mas ficou lá, sem mostrar a cara.

- Boa tarde, tudo bem? Nós estávamos a lhes observar e parece que vocês estão a precisar de alguma ajuda. Seria o caso ou estamos enganados? Nós só queremos ajudar. E desculpe se estamos a incomodar.

- Boa tarde! - respondeu ela com um sorriso contido - muito obrigada, mas estamos bem sim. Não precisamos de nada. Muito obrigada.

E percebi que havia medo na voz, no olhar. Mas, assim sendo, fui para minha casa, logo na outra rua.

- "Menino! Foi você dobrar a esquina e o rapaz ligou a carrinha e se foram embora acelerados" - foi a mensagem que me mandou a manicura pelo whatssap.

Mas a que ponto chegamos! - pensei eu. Um ato de ajuda, por mais que tenha a melhor das intenções, nos dias de hoje, pode resultar num evento desses. E, de novo, me doeu. E pensei que melhor teria sido nada ter tentado.

A humanidade está muito doente. 

Cuide-se! Proteja-se! Sempre que puder, ajude a quem precisa, não importando se é parente, amigo, conhecido ou conterrâneo. Em primeiro lugar deve está o sentimento de humanidade que é o mesmo que a empatia. Branco ou preto, gordo ou magro, bonito ou feio, rico ou pobre, hétero ou gay... é um ser humano. 

E nunca ajude ninguém pensando em alguma recompensa ou reconhecimento futuro por parte de quem você ajudou. A ajuda tem que ser desinteressada, senão escraviza o outro e deixa de ser ato de filantropia e passa a ser ato de egoísmo.

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Pequeno Glossário de Expressões Portuguesas:

 1  - Não é grande a espingarda = Significa dizer que algo não é grande coisa;

2 - Estar com a bezena = É estar embriagado;

3 - Pedir a dolorosa = Pedir a conta num restaurante

4 - Dar tanga = É o mesmo que dizer: estas a brigar comigo?

5 - A ver navios = a pessoa que foi enganada e ficou desiludida



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