segunda-feira, 19 de julho de 2021

Uma Crónica Nelson Rodriguiana

Como quase todo mundo que queria sair da pobreza extrema, naqueles anos, ele entrou num velho ônibus da Transbrasiliana e se foi para a cidade grande, levando duas mudas de roupas, uma no corpo e outra na mala. Ele tinha ganas de vencer, não era preguiçoso e havia estudado direitinho, mesmo que em colégios públicos.

 

Já na cidade grande, continuou na igreja a praticar a sua fé, já que vinha de família tradicionalmente evangélica. O rapaz não era muito dotado de beleza, mas arrumou uma namorada e andavam, para cima e para baixo, de mãos dadas.

 

Logo, passou em dois concursos e assumiu ambas as funções públicas. A vida se estabelecia e a pobreza ia ficando no passado.

 

A surpresa ficou por conta do anúncio do casamento. Surpresa dupla aliás, porque a moça já estava grávida.  Ele, desde menino, sempre foi efeminado. Todos sabiam que "aquilo não ia dar em nada", mas casaram-se com as bênçãos hipócritas do pastor... e veio um filho atrás do outro. O rapaz se mostrava um reprodutor inveterado e, ao contrário do que todos imaginavam, parecia mesmo era gostar muito da "fruta".


A dupla jornada de trabalho o poupava da companhia da esposa e da rotina do lar. Muitos anos se passaram e decidiu que, aos sábados, dia de folga, faria umas oficinas de pintura, teatro, artesanatos etc.... Uma maneira arranjada para ficar ainda mais ausente da companhia da esposa.

 

Certo dia, chegou em casa acompanhado de um rapazola moreno, lábios carnudos, cabelos encaracolados e músculos muito bem definidos. Apresentou-o à esposa como um amigo, colega de turma nas oficinas de arte, carente, muito necessitado mesmo, que se encontrava em situação vulnerável e a precisar de um teto e de um prato de comida, coitado! Faria um arranjo nos quartos e liberaria um deles ao rapaz. Com o consentimento da fiel esposa, os arrumos e improvisos se deram, e o rapaz ali se instalou.

 

Num dado domingo, depois da escola dominical, a esposa precisou se ausentar para uma obrigação. Os filhos estavam nas atividades vespertinas de domingo na igreja. Aquelas visitas dela, sempre aos domingos de tarde, a parentes de uma cidade vizinha, era quase uma rotina. Ela sempre voltava ao fim do dia.  Ocorre que, depois de já se encontrar a meio caminho da viagem, se lembrou que havia esquecido uma encomenda que deveria entregar a um parente e retornou à sua casa.

 

Entrou sem fazer alarde e foi direto para o seu quarto para pegar a encomenda que, sabia, estava numa gaveta do armário. O mundo ruiu ao ver a cena na própria cama. Na impactante e inesperada performance, seu marido estava por baixo, para piorar a cena. Escandalosa ela sempre fora, ademais sempre desconfiara da macheza do próprio marido. Sabia que ou casava-se com ele ou ficaria no caritó.

 

Ela nunca foi das mais discretas, muito pelo contrário, era tida por fofoqueira. Era com muita mangofa e desprezo que jogava no ventilador toda aquela "merda". Falava a todos daquela cena à qual seu marido a havia submetido sob o próprio teto, na sua consagrada e ungida cama. Queria uma vingança rápida. O escárnio e o constrangimento do próprio marido foi a maneira arrumada. Ao contar a cena, era perceptível que estava muito próximo de sofrer uma síncope nervosa. Foi horrível!

 

O rapazola desapareceu das vistas da família. Não sei se também das vistas dele. Ele, porém, parecia impávido colosso e transparecia até um certo prazer ao perceber que a "merda" respingava também na cara da sociedade hipócrita, que o obrigara, bem como a muitos outros, a se submeter à prática de comer jaca ou jiló, quando todos sabiam que preferia uvas e tâmaras. Já que o caldo entornara, e agora somente lhe restava sair de casa, ele assim o fez.

 

- Uma ato vil e  infame - diziam quase todos que a ouviam.


- Maldita sociedade hipócrita! Maldito machismo! - Pensei eu, enquanto ouvia consternado e constrangido o seu relato.


Não fosse o machismo, todos poderiam ser livres para viver o que realmente são, sem se sujeitarem a nada que não lhes respeitasse a essência. O machismo já causou muitos danos e desestruturou famílias inteiras. Sem falar nos traumas que nunca cicatrizam e que, na maioria das vezes, ocorrem quando os seres ainda são crianças impúberes.


É bem verdade que as coisas mudaram e acho que para melhor. Mesmo que com muita vergonha, não são poucos os que agora podem viver suas vidas em toda a sua expressão e que não se rendem às regras sociais, e idiotas, ditadas pelo machismo. Dizer que nos livramos por completo de tal imposição seria tapar o sol com a peneira. Muitos são os que ainda vivem vida dupla, escondidos atrás de casamentos de fachada, a fazer infelizes muito mais que a si próprios.


A simples edição desta crónica já é um ato de coragem, em face do qual os ditos hipócritas bufarão de raiva e as senhoras pudicas da igreja corarão. Sugiro-lhes, todavia, encarar o espelho e, com muita honestidade, olhar sem covardia se na sua casa não estariam todos envolvidos numa trama rodriguiana, como esta que lhes acabo de contar.


Não pense, minha senhora, que por seu marido não manifestar qualquer gesto efeminado, ou por muito bem lhe servir à cama, estaria livre de ser a próxima personagem de uma das minhas crônicas Nelson Rodriguianas, mais à frente. 


Wan Lucena


Nota: Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real, terá sido mera coincidência.”  

Esta crónica foi publicada originalmente na Revista Eletrónica Turma da Barra a quem muito agradecemos

 


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