terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O Erva da Discórdia

Acabara de me fixar na Freguesia da Ajuda, em Lisboa, e decidi que iria fazer uma boa e velha “vaca atolada”, um prato típico do Brasil, composto, basicamente, de costela de vaca com mandioca, ou como se diz na Barra do Corda, macaxeira.
Já quase tudo pronto para sair da panela, que fumegava um vapor cheiroso que inundava todo o quarteirão, quando percebi a falta de um ingrediente crucial: o coentro. Há quem afirme que o coentro é a salsinha com o demônio no corpo. Eu acho o contrário, é a salsinha que é o coentro com o demônio no corpo. Adoro o tempero que me lembra os canteiros suspensos, onde minha mãe cultivava cebolinha e coentro, regados com as águas do doce Rio Corda e que também temperava as piabas e os piaus que nós mesmos pescávamos, enquanto ela lavava trouxas de roupa, escanchada numa tábua.
Ante a falta do coentro, saí correndo até o Mercado Municipal da Ajuda, aqui pertinho, só para comprar um maço e voltar às pressas para finalizar o suculento almoço.
Logo na primeira barraca de legumes e verduras, vi o imenso maço da erva e me dirigi ao atendente, um típico português, ali com seus quase 70 anos, camisa aberta até o umbigo e suado tal qual a minha panela de pressão, que eu deixara em casa, com a vaca atolada a me esperar.
- Por favor, um maço de coentros. Pedi.
- Mas... e o que o freguês vai comprar? Perguntou-me ele.
- Um maço de coentros apenas, se faz favor. Respondi.
- Mas... e vais comprar o quê? Repetiu ele enquanto eu me perguntava se estava a falar-lhe em grego ou na língua dos anjos*.
- Meu senhor, eu quero comprar apenas um maço de folhas de coentro, para terminar de fazer o meu almoço. Insisti.
- Mas... é que aqui não vendemos coentro. Respondeu-me ele, certo do que dizia.
Eu pensei que estava ele de chiste ou a se irritar por causa do valor módico da compra.
- Meu senhor, aquele maço de coentros, ali dependurado, não está à venda?
- Não, não está! Respondeu-me ele.
Este cidadão está mesmo com gracejos, a gozar da minha cara, só pode! Pensei eu, porém disposto a ver aonde ia dar aquela prosa toda torta.
- Aqui não vendemos coentro, mas o oferecemos de graça por ser tão barato. Assim sendo, o freguês compra alguma coisa e lhe ofertamos o coentro. Então... o que o freguês vai comprar? Perguntou-me o português, já bastante fulo da vida comigo.
Eu nada queria comprar a não ser o coentro e me mantive na decisão de não comprar nada que não fosse o coentro.
- Meu senhor, eu quero apenas o coentro, se faz favor! Pedi novamente.
Ele, enraivecido, encheu a mão com um maço de coentros, jogou-o por sobre o tabuleiro e me disse que eu podia, então, levar o coentro e nada pagar, pois ele ali não vendia coentros.
Foi quando pensei: ai caramba! Um entreveiro desse por causa de um maço de coentros? Sério? Eu não estava a acreditar.
- Já não quero os seus coentros nem de graça nem pagos. Retruquei !
E já me ia a sair do mercado, quando fui abordado pelo dono da banca ao lado que, muito simpaticamente, fez questão de esclarecer o que o seu colega já me explicara, mas que não me convencera.
É que, nas feiras, o coentro é um agrado, o qual é dado a quem compra outros produtos. Pediu-me que, por favor, aceitasse de si um maço de coentros e que não levasse o mal-entendido em consideração. Comprei o que nem precisava na banca do simpático português, então peguei o maço de coentros e fui-me dali, certo de que quase criara um incidente diplomático.
No Mercado Municipal da Ajuda não botei mais o pé e quando preciso de coentros vou direto aos supermercados adjacentes, onde estão devidamente expostos em prateleiras e com os respectivos valores anunciados em etiquetas.
A vaca atolada ficou uma delícia e, enquanto a saboreava, pensava se o cômico incidente por causa do coentro viraria crônica... e ri a valer!
* Labaxurias labacantas xarababeias

Wan Lucena

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