terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Sétimo Sentido

O técnico da academia onde tento manter a forma física - um gajo simpático, atento e vívido oriundo do Além-Tejo, com cabelo preso em estilo sumô - mais uma vez se aproximou enquanto eu, em posição de prancha, fazia o maldito abdominal:

- Parabéns! O senhor é muito determinado - e coisa e tal...

- Muito obrigado! E acho que devo concordar consigo - respondi com algum receio na afirmação e complementei - no que depender de mim, viverei até os 100 e com a espinha ereta pelo menos até os 90. Depois dos 90 procurarei um desses milhares de lar de idosos que temos por aqui, e esperarei a minha hora com uma xicara de café na mão, pernas em cruz, e isso se os cuidadores me descobrirem o Whiskey escondido na gaveta do criado mudo - E ele riu.

- Com essa disciplina é capaz de que o senhor chegue mesmo lá - afirmou o gajo treinador. E todos já sabem que gajo por aqui é o mesmo que o jovem ou individuo.

- Entretanto, para bem viver, é preciso aguçar os sentidos - recomendei.

- Como assim? - perguntou-me com interesse enquanto se agachava ao meu lado para poder ouvir-me melhor já que, na posição de prancha, falava eu para o piso da academia. Sim, eu estava a fazer os malditos abdominais. Tento segurar o bucho mesmo que a tarefa hercúlea seja infrutífera.

E explanei a minha teoria óbvia, tão óbvia como o nascer do sol e talvez, mais velha que o Matusalém:

- A maturidade amortece os sentidos, meu caro. A visão enfraquece e a surdez é quase certa. Mas, há que se explorar soluções para as carências sensoriais. E elas, as soluções,  existem e estão à disposição de todos. Podem ser tecnológicas ou criativas. Um aparelho auditivo, por exemplo, faz muito mouco voltar a ouvir. E um par de óculos, então!

- Compreendo perfeitamente as soluções tecnológicas existentes para as falências de nossos sentidos. Mas, o que o senhor quer dizer com soluções criativas? - perguntou-me ele

- Quero dizer que há que aguçar a visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato. Usarmos a criatividade na hora de apreciarmos a vida e nas conclusões que tiraremos ante todas as experiencias por nos vividas. A atenção para com a maravilha que é o momento agora. E há que se desenvolver a atenção por meio da sensibilidade. A atenção para não se endurecer com a vida que pode ser difícil muitas vezes. A atenção para não se ficar a resmungar na rabugice que é, toda ela, nossa própria escolha. Meu rapaz, existem sempre duas maneiras, no mínimo, de vermos o mesmo objeto. Muitas são as conclusões que se pode tirar de objeto, momento ou fato vivido. Tais conclusões, por mais dolorosas que sejam, na maioria dos casos, podem ser vistas com positividade. E é claro que teremos de deixar margem às exceções.  

- Compreendo - disse-me ele.

- Com atenção e certa disciplina podemos usar da nossa criatividade para apurar, para aguçar a todos os nossos sentidos, inclusive os que se vão perdendo com o tempo. E aí acho que entra um outro sentido. Não o sexto sentido porque esse, todos sabemos, já foi descrito e até filme já virou - diga-se, belíssimo filme - e que trata dessa temática e que leva justo esse nome mesmo: O sexto Sentido. Mas, me refiro à atenção que damos ao que vivemos nas nossas tarefas e deveres do quotidiano. Tem à ver com certo deslumbramento ante as coisas mais simples e a reflexão que fazemos de todas elas. Exemplo: à beira do caminho quantas flores que ninguém ver. Mas, o mais o atento percebe não só a florada, mas se deslumbra também com a flor. E se ajoelha como que em completa devoção e, com carinho e esmero, colhe a flor e a leva ao nariz, e sente o seu perfume, e ver a sua cor. E , com encantamento, ver uma abelha ali naquela outra flor. E ao observa-la percebe a grande maravilha que afinal é a vida, a existência e a oportunidade de está ali. E sente um contentamento tão grande! E reflete sobre a abelhinha está coletar o pólen para abastecer a sua colmeia, a sua comunidade. E que o prazer dela é desenvolver a sua tarefa e alimentar a sua rainha, a razão de toda a sua existência fugaz. E que até um favo de mel produzirá e alimentará a quem, sem permissão lhe invade a comunidade e lhe rouba o produto de seu duro trabalho - e que delícia que é o mel ao paladar. E ouve o farfalhar das folhas com o vento e o canto dos pássaros e o cão a ladrar. E tira os sapatos só pra sentir a terra a lhe massagear as plantas dos pés. E com sorte ouvirá um trovão e a chuva bem faceja lhe cairá ao rosto.

- Talvez possamos chamar essa atenção e deslumbramento como o sétimo sentido - e me surpreendeu

- Talvez sim. Mas é mesmo uma questão de está alerta para o que se sente ante tudo, até mesmo ante a dor ou a morte. Inclusive, tem um guerrilheiro famoso que matou um monte de gente e que sequer merece que se cite o seu nome, a quem é atribuída uma celebre frase: Hay que endurecer, pero la ternura jamás! - em tradução livre "Há que endurecer, porém sem perder a ternura!".

- Acho que poderíamos chamar de sabedoria o Sétimo Sentido - disse ele a me surpreender novamente

- E com o tempo a gente aprende que quantidade nem sempre condiz com qualidade. E que ouvir menos pode ser benéfico e que "falar demais é dar bom dia a cavalo". E que não precisamos experimentar determinadas coisas que, só pelo mal odor já sabemos que ao paladar pode nos fazer vomitar. E que não preciso por minha mão em qualquer coisa ou buraco. 

E aqui pergunto ao caro leitor - Seria a sabedoria o sétimo sentido? 

E eu que sempre persegui a sabedoria. E ela que sempre correu léguas de mim.

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Pequeno glossário de palavras em português do Brasil e Portugal:


Banda desenhada = Historia em Quadrinhos

Peúgas = meias

Explicador = Professor particular

Carta de Condução = Carteira de Motorista

Sandes = Sanduiche

Gelado = Sorvete



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