sexta-feira, 30 de março de 2018

Deus é Sabiá

Do meio do quarteirão donde estão laranjeiras, limoeiros, figueira e algumas outras espécies não identificadas desde minha janela ouço todas as madrugadas, muito antes do sol enviar o primeiro raio, um doido de um sabiá a cantar sem parar. Sim, um sabiá me acorda todas as madrugadas, lá pelas quatro da madrugada e canta sem parar até que se faz acompanhar por um banco de pardais e por pombos. E assim amanhece o dia. Eu não sei se é coisa de Deus que insiste em me abençoar com coisas lindas como essas quando eu nem sou crédulo em tais deuses sagrados, senão, no inominável, inqualificável e indenominável. Ante o grande mistério que é a vida e o Cosmos e tudo o mais, me rendo e aceito minha impotência e respeito o que não conheço. Respeito ainda a tentativa humana de conexão em direção à divindade e tudo o que já se produziu em termos artísticos em louvor à que chamam Deus. Mas nem é disso que quero falar. Quero falar é do sabiá. E o sabiá também é Deus. Veja só! La vem Deus de novo no meu texto.

Em total escuridão ele canta sem parar, a se esgoelar, em notas perfeitas e por horas à fio. Os pardais tentam imitar o seu solo de burros que são. Os velhos pombos com seus peitos estugados em marquises por eles todas cagadas, seguem os desafinados pardais e estragam o solo do sabiá que cala, talvez puto da vida ou vaidoso por entender a vã tentativa dos demais em imitar-lhe. E o pior, com o sol já claro, as gaivotas imensas soltam gritos desesperados que parecem de mal agouro, mas que aceito como sendo mais uma manifestação da natureza divina da qual também estão dotados.

Eu fico na minha cama, em êxtase, tento acompanhar cada nota, solfejo, assobio. O sono me vem e tento não dormir só pra ficar a ouvir o danado. Durmo e acordo com os pardais desesperados e pelos pombos a bufar em seus peitos inchados e em dança de acasalamento e a pisotear a própria bosta e, por fim, as gaivotas parecem ecoar em megafones seus gritos. O sol já brilha e o sabiá já não canta mais. Cedeu o palco para as demais criaturas que tentam uma imitação horrorosa. Nunca o vi. Talvez nunca o verei. Mas, quem já viu Deus?

E aqui é puro concreto com um ou outro ponto verde de frutífera onde resolveram morar todas essas criaturas divinas e um Deus que chama Sabiá. Tomara um dia o veja, mesmo que de longe. Mas, como sou sortudo, quem sabe um dia desses, o danado pousará na minha janela. E aí vou lhes dizer: Deus existe!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja honesto e autentico no seu comentário. Agradeço muito sua colaboração.