segunda-feira, 18 de julho de 2016

Deleite e Desgosto

Sentei-me num dos confortáveis sofás da Feira do Livro de Brasília e comecei a ler Quincas Borba, de Machado de Assis. Veio-me certa culpa e vergonha por não ter lido o livro que é obrigatório, ainda no primeiro grau de estudos. Eu nunca pude me dar ao luxo essencial da leitura, mesmo que dos grandes nomes, mesmo que o desejasse. Eu sempre fui desejoso da boa leitura e me encantava a cultura. Mas, o acesso era escasso. Primeiro na roça, depois... já na cidade, que de tão pequena, muitos sequer ouviram falar dela, minha vida sempre foi de muito trabalho. E a escola era uma obrigação à qual eu bem sabia, precisava dela para sair da penúria. Sempre tive medo das provas e dos professores, embora, tenha ficado de recuperação uma única vez, na sétima série, em matemática, matéria que sempre odiei e tive pavor. Até hoje pago caro por tal carência.

Mas, ali sentado naquele sofá cinza, senti-me confortável e comecei a deleitar-me com a leitura quando uma criança demoníaca começou a correr e gritar em notas que uma cantora lírica não alcançaria. Feira é feira – pensei. Que podia eu esperar? Os pais sequer eu soube quem era no meio de tanta gente. A criança endiabrada corria por todos os cantos e, por mais que tentasse, ela não desaparecia de meus olhos e seus gritos e entravam juízo á dentro como se navalha fossem. Fechei o livro e fiquei ali a observar a cena.

A feira estava sem grandes atrativos e o sol intenso que batia pelas imensas janelas do Centro de Convenções fazia do local um forno apesar do ar condicionado. Os corredores de stands eram todos iguais, bem como, os próprios stands. Não encontrei café que não o de garrafa e para comer, alguns salgados sem graça. Mas, tudo bem, era apenas uma feira – pensei eu mais uma vez.


É que por ser feira literária eu esperava as cores massala. Esperava homens e mulheres com cara de eruditos e ambientes aconchegantes que remetessem à alguma biblioteca. Mas, além estar em país tropical, nosso gosto moderno por aqui não é muito elaborado. Na cena chamou-me a atenção um stand já quando de saída. Alguns cordéis, uns cestos de papelão e uma frase escrita: Por favor, mexa! – O cesto estava cheio de livros de pouca atratividade para mim. Mas, ali ao lado, um imenso e luxuoso book sobre uma mesa donde se podia ler em letras imensas – Lula, 500 anos de História. Retirei-me da feira decepcionado, embora, com dois exemplares de um sebo. Acompanhar-me-ão por algum tempo, além de Machado de Assis, um José Saramago.

Mas, talvez o problema não esteja na feira e sim em mim mesmo. 

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Dona Davina

Quem a ver pegando o ônibus numa alegria que beira à doidice não imagina o passado de lutas. Ela sobe os degraus na estação por volta do meio dia, três vezes por semana. Cerca de meia hora depois desce no clube onde faz a natação.  Motoristas e cobradores já a conhecem e lhe são gentis ante toda a graça e risadaria que ela provoca com suas tiradas de quem está feliz.

A natação começa lá pelas 15h. Ela chega duas horas antes só pra ficar a jogar conversa fora e matar todo mundo de rir. Começa já ao descer do ônibus com qualquer um que esteja na parada e queira ajudar a velha senhora a descer os degraus. Alguns passos e já está na recepção do clube a cumprimentar à todos que a conhecem ou não. Por ali fica a fazer graça até a hora do compromisso de nadar. Se joga na piscina com seu maiô preto e, igual uma pata de asa quebrada, atende aos comandos da instrutora que, vez por outra, lhe grita o nome e ouve-se o riso largo a ecoar na piscina do ginásio coberto.


Ela não quer saber de tristezas. Não se entrega à idade e se vai em passos firmes a viver a vida que pensou jamais teria. Ela nunca escondeu a origem humilde de mulher da roça, lavadeira e zeladora de escola. Veio para a capital depois de aposentada e vive com uma das filhas que lhe proporciona nivel de vida de classe média alta.

Até um sorriso novo pôs na cara. Naqueles tempos idos quando arrancar todos os dentes de uma só vez era a garantia de não sentir dores futuras ela, ainda adolescente, pôs uma "chapa" no lugar dos dentes. Mas, os dentes inferiores ela perdeu com o mesmo argumento e jamais pôs a dentadura. De tanto mastigar encima das gengivas percebia-se o osso do maxilar exposto. Pois, além de uma peça fixa pôs implantes e quando já não mais sabia o que era mastigar voltou a sentir o sumo da cenoura mastigada, enfim.

As muitas rugas que lhe marcam o rosto contam as muitas estórias da mulher nordestina que suou muito para educar os filhos e mostrar-lhes o valor da honestidade.

Wanderley Lucena

terça-feira, 28 de junho de 2016

Vida de Paxá

Eu que nunca gostei de ser servido, confesso: tenho desejos de acordar todos os dias e encontrar a mesa posta por um funcionário que me fosse uma espécie de mordomo e uma empregada ou duas a auxiliá-lo. Queria que ele, o funcionário, me fosse invisível. A casa estaria sempre impecável e a cama eu não teria de arrumar. Ele saberia que gosto de café fresco a cada duas horas e que a falta desse hábito me deixa inquieto e, quanto mais o tempo passa, mais nervoso vou ficando. Ele me admiraria e me serviria com o respeito dos que não possuem a inveja e que quer o mal de quem servem.

Há uma culpa instalada lá no fundo e que me grita a informar que a servilidade é uma escravidão branca ou disfarçada. O escravo trabalhava servilmente pelo prato de ração e para estar vivo. A modernidade impõe salário a quem serve. E sei que todos somos servos-escravos em algum momento ou o tempo todo. Talvez seja a minha moral cristã que me impede. Talvez sejam minhas condições financeiras que não me permitem mesmo. Não sei. Só sei que não gosto nem um pouco de ser servido.

Ter empregados impõe a presença pesada e, por vezes, nefasta de alguém em sua casa o tempo todo a perceber suas intimidades. Eu, daqui de minha solidão, penso que prefiro assim como está. Um ser, mesmo que um desses mordomos que servem sem abrir a boca e mãos pra trás o tempo todo, vêem, pensam, sentem muito além dos cheiros e odores que, nem sempre são agradáveis. Mas, pior, podem sentir ódio e inveja. 

Vivo e faço o que quero. Ando como quero no meu espaço – até pelado. E adoro isso tudo! Fico comigo mesmo e a me servir. Só quando não mais o possa me imporei um ou dois enfermeiros. Minha intimidade e privacidade não a quero dividir nem com quem me esteja invisível e com a mesa posta.

A vida que desejei seria a de um verdadeiro paxá, um rei rei incorrigível e mimado. Fico com a independência que meus músculos me dão. Gosto mesmo de por a mão na massa, de subir escadas e de me exercitar. A vontade de ficar na cama eu, por vezes, me largo em minha preguiça e me levanto só quando o corpo enjoou da cama. Fazer meu café; descer com meu cachorro pra que se alivie de suas necessidades fisiológicas; fazer a cama... é rotina de todos os dias. Depois vem um bom banho quente nesses dias gelados de Brasília. Depois acessar a internet e ver as notícias do dia. Amo tudo isso!

Wanderley Lucena

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Tio Esaú


- E tio Esaú, mãe? A Senhora tem notícias dele?

- Ô Maninho! Parece que as coisas lá não estão boas não. É tanto sofrimento há tanto tempo. Ele não anda mais. Rasteja pelo chão quando quer ir de um canto ao outro. E agora, fiquei sabendo, que já nem rastejando chega a lugar nenhum.

- Pois é, minha mãe. Eu estava falando com um primo de lá. Disse que todos já estão torcendo para que ele se vá de vez. Tá sofrendo muito, dando muito trabalho. Tia Eulina cuida dele dia e noite, parece que tá raquítica de tanto lidar com ele.

Era pouco mais de meio dia quando vi as lágrimas rolaram pela pele enrugada do rosto de minha mãe. O seu irmão mais velho, centenário, já com uma perna amputada há tempos por causa de uma trombose, estava prestes a partir dessa para uma melhor.

Naquele exato momento eu tive a sensação de que ele morria. Cheguei em casa por volta das 15h e vi que meu primo me chamava ao telefone.

- Diga à titia que Tio Esaú acabou de falecer!

Eu chorei! Liguei antes para minha irmã que, zelosa e cuidadora, se dirigiu à ela e lhe deu a notícia.

- Eu já esperava. Foi melhor assim! – respondeu ela com as lágrimas fartas a lhe caírem mais uma vez.

Liguei mais tarde para saber como ela estava e minha irmã me pediu, falando baixinho, que não mais tocasse no assunto e que ela estava bem. Ela estava confortada e conformada.

O que nos faz querer aproveitar cada minuto da vida é a certeza de que vamos morrer. Estou certo de que a morte, por mais que não pareça aceitável, nada mais é que mais um momento da própria vida. E eu acredito mesmo que, não fora a morte, a vida seria verdadeiro inferno.

Wanderley Lucena



quarta-feira, 22 de junho de 2016

Milagres



Meu Deus! Quem me ler desde tão longe? Me pergunto. A tecnologia virtual permite milagres todos os dias. Sou curioso por saber quem me ler e o que pensa a respeito do que escrevo. Vejo o registro em minha página de blog e percebo registros internacionais, inclusive. É mesmo incrível e maravilhoso. No facebook ou em outra rede social qualquer, quase todos os dias, acho e sou achado por gente com quem convivei há anos ou que conheci ainda agora.


É um milagre!

Êxtase

...e a vida segue sem um roteiro rígido. O que tenho são desejos e planos que mudam a todo instante. Meus desejos permanecem intensos. Desejos de viagens; de morar numa vila medieval na Europa; de tomar expresso e ler jornal sem pressa; de conhecer pessoas inteligentes e felizes; de viver o modesto com o conforto de poder pagar o que compro sem grandes aperreios. Mas, a vida impõe o seu ritmo e retarda algumas datas nas quais eu deveria ter estado no embarque internacional rumando para o velho continente. Entretanto, mesmo que com certo retardo, sempre realizo meus desejos. E sei que os realizo sempre porque o universo sempre conspirará em favor do que desejamos intensamente realizar. É que o tempo do universo não obedece aos meus desejos. Só isso! Então, “tudo é uma questão de mante a mente quieta, a espinha ereta e um coração tranquilo”. Até agora o Universo me tem sido por demais generoso. Até agora, mesmo que com limitações, fiz tudo o que desejei e planejei. 

Meu nome é Wanderley Lucena, tenho 51 anos e, sinto-me um adolescente que pula o muro pra encontrar com a amada que namora escondido. Coração batendo acelerado ante o proibido e a ânsia de encontrar o objeto do desejo. Sinto-me o rebelde que sempre me imaginei. Gosto do que me fiz ou do a vida me fez! Sou um deslumbrado pela vida e não perco meu tempo com desgostos. Quando a crise chega a única coisa que quero é que ela termine e que volte ao meu êxtase de felicidade. "Não importa como você começa alguma coisa, mas sim como termina". 

Wanderley Lucena

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Coisas de Mãe

- Mãe, tem almoço ai?
- Claro! Tem almoço sim. Porque?
- Eu vou almoçar ai então, tá certo?
- Ta certo. Só que eu vou para a natação. Você tem as chaves. Eu vou deixar tudo pronto.
- Então tá!
Cheguei em casa e tinha arroz na panela e dois ovos sobre a pia. Morri de rir.

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- Mãe, estou indo ai. Estou muito gripado. Você tem alho, limão e mel ai?
- Claro! Aqui sempre sempre tem alho limão e mel.
- Que bom! Vou passar na farmácia e comprar resfenol pra tomar  junto com um chá que vou fazer ai.
- Não precisa comprar nada! Resfenol tem aqui. Nunca falta resfenol nessa casa. Aqui tem tudo.
- Ótimo! Chego daqui à pouco.
- Estou saindo pra natação. Você tem as chaves. Deixo tudo aqui pra você fazer o chá e, inclusive, o resfenol.
Cheguei em casa e sobre a pia estavam o alho, o limão, o mel e uma caixa de vitamina "C" efervescente. Fui até a farmácia e comprei o resfenol.
Só mesmo a minha mãe!

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- Mãe, estou chegando daqui à pouco por ai. A senhora vai pra natação?
- Não, estou em casa e te espero.
- Tem almoço ai?
- Claro!
Cheguei em casa e quando abri a porta pensei ter errado de apartamento. Três senhoras, todas de cabeça branca igual algodão, mais a filha de uma delas e seu respectivo marido. Eram três irmãs -  Delta, Belinha e outra que não lembro o nome - todas quase da mesma idade de minha mãe e primas dela. As primas, velhas amigas de outrora, faziam visita para matar as saudades.
Botei a cara pra dentro e ficou o silêncio. Senti-me estrela de cinema impacto da chegada. Elas me olhavam admiradas.  A sala minuscula parecia uma cela de cadeia entupida de detentos. 
- Davina! Esse é teu filho? Meu Deus! Que homão! - Exclamou uma mais afoita.
Foi uma festa! Faziam mais barulho que araras chumbadas. O almoço constava de um “rubacão”, arroz cozinhado junto com o feijão bem soltinho e, de acompanhamento um frango assado que compraram pelas redondezas e, mais nada. Minha mãe nunca gostou de comer saladas.

Eu fui embora depois de algumas horas de conversa ante a sala apertada e a pensar: Minha mãe! Só você mesmo! Custava ter avisado que a casa tava cheia de gente? Se tivesse avisado não seria minha mãe.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

As Orelhas de Clarice

A fazer orelhas na Clarice, a Lispector. Ocorre que o único marcador de livros, aquela papeleta à qual marcamos a página para voltar à leitura posteriormente e que era facilmente encontrada em qualquer livraria e que, inclusive, era brinde distribuído até à quem nada comprasse e que, agora, já não mais se ver, virou produto escasso mesmo à quem queira comprar. Quero crer que a crise leva à esse extremo.  E quem sofre as consequências, ao menos nesse momento, é a Clarice. Sou obrigado a dobrar os cantos superiores das páginas, ou "fazer orelhas". É livro de tamanho robusto e de leitura despretensiosa e sem pressa para acabar. Levo-o debaixo do braço para tudo que é lugar, para cima e para baixo, no metrô, no ônibus, à pé, de bicicleta. Faça chuva ou faça sol. E confesso que sinto certo receio de esquecê-la numa mesa de um café qualquer, na cesta da bicicleta. E já a esqueci algumas vezes, porém, volto correndo, desesperado para achá-la onde a esqueci. Até agora ela sempre ficou ali, me esperando o retorno. Mas, por ser ela uma dama, sinto-me culpado com meu desleixo. Peço desculpas e prometo: farei um marcador, mesmo que por minhas próprias mãos só para não lhe fazer mais orelhas, Clarice! Mas, mesmo sem fazer as tais dobras a ação do tempo e o manuseio, por mais que fosse cuidadoso, é implacável. O que era bonito, viçoso e vistoso, começa a ficar opaco e amarronzado. Mas, já está guardado numa gaveta especial de minha memória todas as nossas viagens. 

E a Clarice vai ficando velha, assim como eu. Mas, sempre que lhe folheio as páginas sinto certo “frisson”. É que ouso me achar parecido com ela. Sinto minha pele perder o viço e enrugar-se como papel molhado depois que seca. Mas, percebo que a expressão fica mais fácil e que quem ler páginas velha, amarrotadas e enrugadas, geralmente é quem já percebeu que "livro não se julga pela capa". E o livro se sente renovado como um cachorro de rua todo acabrunhado e que depois de adotado, alimentado e limpo mostra toda a sua alegria e pujança. Eu me conheço já um pouco mais e ao ler a Lispector eu também já a conheço. Tornamo-nos íntimos.


Wanderley Lucena

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Quinze Minutos

Busca frenética dentro da pequena bolsa tiracolo. A chave está lá no fundo. Apenas o tato para encontrar a chave que está junto com óculos, carteiras, fio dental, outra chave, agenda, etc... Encontra a chave, finalmente.  Apertado pra ir ao banheiro. Enfia na fechadura. Abre porta. Fecha porta. O shitsu a abanar o rabo e a esperar o carinho. Carinho feito. Caminha dois metros até a cama. Senta na cama. Desata sapatos. Tira meias. Tira sapatos. Tira roupa toda. Vai em direção ao banheiro. Ufa! Que alívio. Pelado como está, vai para a cozinha. Chaleira a coletar água da torneira. Acende a boca do fogão. Põe chaleira no fogo. Abre torneira. Põe sabão na esponja. Lava toda a louça que nem era muita mas que estava ali desde o almoço. Abre armário. Papel coador de café e suporte para sustentá-lo são postos sobre a pia. Fecha armário. Abre geladeira e apanha o depósito de café. Fecha a geladeira. Abre o depósito com o café. Três colheres são postas no coador. Deixa tudo preparado. A água que não ferve. Vai para a sala com pano na mão e tira a poeira aparente da TV e do móvel que a sustenta. Faz a mesma coisa com o computador e com a mesa sob ele. Volta para a frente do fogão. Coador posto no suporte sobre a garrafa térmica. A água fervente é derramada sobre o café e volta para o fogo para manter a temperatura enquanto o coador escorre a primeira leva. Abre armário. Pega os pães. fecha armário. Põe sobre o balcão. Abre geladeira. Pega a manteiga que também vai para o balcão. Fecha geladeira. Chaleira novamente é derramada sobre o coador. Café pronto. Tampa a garrafa. Pega o copo. Pega o adoçante. Três gotas apenas no copo. Copo vai enchendo de café até pouco acima da metade. Liga a TV e assiste filme brasileiro na Seção da Tarde. Vai para o balcão. Pega o pão e corta com a faca de serra. Uma generosa quantidade de manteiga nas fatias do pão. Saboreia o café fresco. Saboreia o pão. Saboreia a manteiga. Come outro pão. Toma bastante café. Vai para o computador e decide escrever... escrever... escrever isto. Tudo em quinze minutos.


Wanderley Lucena

terça-feira, 17 de maio de 2016

O Monstro

E eu aqui a refletir que minhas preocupações na vida, ou a maior parte delas, sempre foram relacionadas a contas a pagar. Mas, sempre me alimentei com a regularidade de, ao menos, três refeições ao dia. O café da manhã era tomado na certeza de que o almoço estaria na mesa e, em seguida, logo mais à noite, um jantar ou ceia que podia ser só um pão com manteiga e café. Mas, algum alimento estaria à mesa. E essa certeza trazia conforto e tempo para poder preocupar-me com outras coisas, inclusive, com as contas às quais, se fiz, as fiz porque as podia.

A fome  é monstro que não morre ante a saciedade da barriga cheia. O monstro dorme enquanto a digestão é feita. Mas, ele sempre virá com boca enorme e dentes afiados logo depois dela. E a certeza de que o monstro virá de maneira feroz e que não outra arma que usar senão alimentá-lo, é apavorante! É mesmo triste e terrível a incerteza da saciedade ante a fome que virá. O monstro que nos matará, com certeza, se não lhe fizermos a oferenda do pão todas as vezes que ele nos ameaçar com sua bocarra.

E concluo com uma triste questão que me é como um enorme chute na boca do meu estômago: Quantos milhares de pessoas no brasil... quantos milhões de pessoas no planeta... nesse exato momento, estão sem saber se comerão, e o que comerão, na próxima refeição e a que custo?  E pior: quantos estão nesse momento exato, buscando e não encontrando, apenas um pão que lhes amenize a dor de um estômago vazio? Deus tenha misericórdia de cada um de nós e que nunca nos deixe faltar comida na mesa!


Wanderley Lucena

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Amor Condicional

Hoje me senti exalando algum tipo de sentimento, talvez amor, no meio da multidão. Parece que todos podiam perceber o meu sentimento como se sentissem um bom perfume ao qual se precisa cheirar pelo máximo de tempo possível. E percebi pessoas me olhando fixamente como se fora eu algum tipo de pessoa importante. Parece que havia algum magnetismo em mim ou neles. Ao mesmo tempo que me olhavam eu também os olhava. 

Eu me arrumei como sempre e não estava com nenhuma melancia na cabeça. Eu vestia uma bermuda e uma polo acompanhados de um tênis qualquer. Tinha também os óculos espelhados que trazem algum charme, não vou negar. Mas, senti que o que fazia as pessoas  me olharem de alguma maneira que chegou a convencer de certo incômodo. Mas pensei: hoje amo a todos indistintamente e na mesma medida que eles também. Ledo engano!

Já no metrô pedi licença à uma moça feia para sentar ao seu lado. Ela olhou-me fixamente com olhar de doida que me incomodou. Sentei-me ao seu lado e percebi seu braço roçando o meu. Senti como se um mandacaru estivesse a me fazer algum carinho e a me seduzir. Recolhi meu braço de supetão e me diminui o suficiente para que se formasse um muro entre eu e ela. Ela se mexia e respirava alto. Eu grudei meu olhar num cartaz do outro lado do vagão e que tinha alguma coisa escrita mas que não a li. Levantei-me, aliviado, para descer na próxima estação. Susto ao perceber que ela se levantou junto. Pensei: joguei pedra na cruz? Fui para uma porta diferente da que ela sairia e desci sem olhar para os lados. Não a vi mais.

Amor é sentimento que, por causa de nossa humanidade, não se distribui a quem não o desejamos. É uma limitação minha e de muitos. Quem perde tal limitação ganha a santidade. E como eu queria ter essa predisposição para a santidade! Mas, não a tenho. Acho também que no reator da atração termina-se por atrair todos os tipos, inclusive, os inconvenientes. Voltei para casa meio frustrado de saber que meu amor é condicional.

Wanderley Lucena

Escadas Rolantes

A larga e alta escada de granito estava ladeada por duas outras, só que rolantes. As rolantes, tanto a que descia quanto a que subia, estavam lotadas de gente de todas as idades. Solitário subia pela larga a escada de granito aquele senhorzinho fidalgo, magro e ligeiro. Chegou ao ápice antes daqueles que ficaram parados na rolante a subir confortavelmente enquanto liam seus celulares, fugidos à tudo ao derredor.

Nas escadas rolantes os semblantes eram preguiçosos e alguns indivíduos “cheinhos” ou gordos mórbidos. Havia qualquer coisa de mal humor em quase todos. Havia, ainda, qualquer desalinho de quem saiu de casa sem se dar ao trabalho de uma toalete bem elaborada e digna dos mais preciosistas. As roupas eram desalinhadas e até sujas. Ficavam ali paradas na escada que subia automaticamente e, algumas delas, de tão distraídas, tropeçavam ao fim dela.

O Senhorzinho subiu, rapidamente as dezenas de degraus e chegou ao topo antes de qualquer outro que estavam nas rolantes. Aquele sexagenário estava com toda a vitalidade da vida estampada em sua cara alegre e altiva. Os músculos lhe respondiam ao anseio da vida e dos que não se rendem às facilidades e confortos que em nada contribuem para a boa saúde, mas, servem para engordar os indivíduos e a trazer tantas doenças derivadas do ostracismo. Ele subiu mais um vão de escadas e desapareceu em meio à paisagem. Se foi e me deixou a cena bem vivida.

Eu que já era adepto de subir escadas por saber o bem que faz, desde essa cena, só piso numa escada rolante se com muita pressa e, mesmo assim, a escada rola enquanto eu a subo degrau por degrau e com as minhas próprias pernas. 

Na vida quem muito anda chega ao longe, diz o ditado. E eu que tanto quero fazer o "caminho" mesmo que o de Santiado de Compostela, já estou a treinar-me. E não se esqueça que, como diz a frase postada num dado momento desse camminho: "Camiñante, el camino de hace al andar".


Wanderley Lucena

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Imagem e Reflexo

Faço-me de rogado e rejeito elogios que, acredito, sejam verdadeiros e oriundos de pessoas que me querem bem. Ouço e ruborizo. É inevitável o exercício da modéstia. Mas, ali no fundo de mim, está - justo ela - a falsa modéstia. E pareço querer convencer-me que me tornei quem eu sempre quis ser: uma pessoa interessante.

Ao longo de minha vida tive os que me bajulavam por está eu em posição de oferecer-lhes algo em troca, mesmo que fora o simples fato de gostar-lhes ao ponto de tratar-lhes como íntimos ou de não exigir-lhes com a mesma veemência que aos demais os deveres que lhes eram inerentes. Não que eu tenha sido poderoso ou rico. Mas, exerci algumas chefias e posições de destaque e tive subalternos, chefiados e empregados. A bajulação equivocada era evidente. Equivocada por saber eu ser apenas um engodo.

Hoje percebo as manifestações de apreço e carinho e ante ao fato de já não ocupar qualquer cadeira de destaque ou poder, imagino que são tais manifestações pura gratuidade. E fico a me perguntar se sou o que me informam. Faz bem ao ego e aos dentes. O bom é que os elogios  vêm de quem considerei e considero figura inteligentes, por vezes, até importantes socialmente, e que seriam incapazes de bajulações interesseiras ou mentirosas. Pois bem! Eu sempre lhes aviso: não alimentem o monstro! 

Lembro dos tempos idos quando tanto quis ser amigo ou próximo de algumas pessoas e a minha simples aproximação à roda era rejeitada e rechaçada. Agora cuido-me de manter o número de amigos na mesma quantidade, haja vista, não dar conta de atender a todos que me querem. Como diria alguém: tá podendo, heim! Eu vejo pessoas a se movimentar em minha direção e a querer minha atenção e eu, embora, lhes seja gentil, sei que não será alguém que fará parte do meu rol de amigos. E não é por ser pedante, mas, pelo simples fato de que amizade requer tempo e atenção. Tempo eu até tenho, mas, em alguns casos, falta-me a atenção. 

Em casa, me olho no espelho e não vejo o vêem. O espelho mente? Eu e minha auto-estima baixa não me permitem ver e reconhecer na imagem refletida do espelho a minha real estatura? Eu eu enganado a meu respeito? Estariam eles enganados a meu respeito? Tenho medo do dia em ache que me reconheça verdadeiramente ante o espelho. Que tal dia nunca chegue. Acho idiota a soberba e intragável que "se acha" demais. Não quero me achar. Acho mesmo que não o que procurar ou a ser achado. Eu sou o que não vejo. Vejo o que não sou. Sabe-se lá!

E sei que escrever sobre mim mesmo pode ser antagônico ao argumento que utilizo, mas, se o faço é por pura inquietude. Está latente em mim a felicidade de ser querido e a rejeição ao fato de ser querido.

Wanderley Lucena

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Desfrute e Deleite

Vivo a me assustar com trupicos e tropeções. Qualquer valeta me faz pisar em falso e me desequilibro. Por enquanto chega a ser divertido. Rio com a insegurança de minhas pernas ante os degraus da escada. É mesmo inevitável a distração ante a cena do quotidiano de cidade agitada na qual vivo. Ademais, tem o celular e o maldito watssap que me faz ficar a teclar ou a ler mensagens, mesmo que me deslocando à pé. E quando o sol está aberto, à pino, fica ainda mais complicado. A tela, praticamente, desaparece e fico a insistir em ver o que me chegou. Sem que perceba a calçada se acaba e há um degrau. Um poste me aparece de repente e bem no meio da cara. Um susto e me recomponho. 

E sei que é porque se me chega a velhice. Não é apenas descuido ou desatenção. Não é acidente puro e simples. Até porque sinto o peso quando vou tomar banho. Há um medo de cair e de me machucar. Antigamente não existia isso.

Se por enquanto é divertido perceber-me às portas da velhice, sei que chegará o dia e a hora em que a amaldiçoarei. Sei que me quebrarei um osso a qualquer hora. Se for apenas um dedo, vá lá. Mas e se for a cara? Sim, porque já quase acertei em cheio alguns postes fincados no meio das calçadas. Eu sei da minha imprudência. Mas, quem resiste à tentação? Como deixar para ler em casa a mensagem no telefone quando você já a espera com alguma ânsia? 

Pois bem, os dias sobre a terra, segundo consta, são para desfrute e deleite. Não vou antecipar a dor. Que valha apenas o dia de hoje. O amanhã ainda virá e eu espero que ele me seja tão bom quanto este dia que estar a ser muito bem vivido. As dores de hoje eu já as esqueci. Os dissabores não os levarei em conta. Que venha a alegria de viver e que a dor seja apenas a certeza de que se estar vivo.

Wanderley Lucena



sábado, 16 de abril de 2016

O Parque

Já estava a chegar na academia depois de curtir preguiça até quase meio dia quando decidi mudar o programa. O parque imenso e cheio de gente estava logo ali à minha frente. Arranquei a camisa com certo puder, mas, seguro de que devia aproveitar o momento e me expor. O sol brilha para todos, é o clichê, não é? Muita gente expirando saúde e alegria. Pic nic's, aniversários, fotógrafos profissionais com noivas ou debutantes em poses de gosto suspeito, um palhaço a animar a festa e a atentar que passava pela pista de cooper, cães de estimação, crianças a correr, marombeiros, etc...


Depois de uma hora eu cheguei em casa e fui banhar-me quando o telefone tocou. Um grande a migo a me convidar para o almoço. Ótimo! Pensei eu. Socorro é cozinheira de mão cheia e a companhia do casal é verdadeiro deleite. Mas, vesti-me e fui à pé, afinal, a casa deles fica a cerca 800 metros da minha. Fui, de novo, pelo mesmo parque. A respiração meio ofegante e as pernas a informarem que já não sou mais nenhum jovem. Eu que aos 20 anos ouvia o pessoal da minha idade a reclamar das pernas e pensava como seria quando eu tivesse a idade deles. E agora, cá estava eu com a idade imaginada, morto de cansado e sentir as pernas que já não me sustentam tão bem como antigamente. 

Mas, uma cena inusitada quase me tira do chão ao ver num semáforo, correndo por entre os carros parados e a distribuir sacos fechados de balas e doces que eram deixados por sobre o retrovisor dos carros, ninguém mais ninguém menos que um Homem Aranha. Sim, havia um Homem Aranha a vender balas no semáforo. E a fantasia era de primeira qualidade. Cobria-lhe tudo, inclusive os olhos. O Homem Aranha estava ali, em carne e osso. Corri a fotografar a cena e logo um pai pediu para tirar fotos com ele e seu filhinho. Fiquei á pensar: é a crise! Depois: que povo danado esse nosso povo brasileiro.

Eufórico e já suado cheguei à imponente portaria do condomínio de meu amigo e ali estava uma senhorinha que, com certeza, era a faxineira e a substituir o porteiro que deveria estar no almoço. Eu nunca gravei o numero do apartamento do meu porque é só chegar e falar para os porteiros que é para o Augusto e eles já informam o número do apartamento. Mas, a senhorinha humilde sequer sabia quem era Augusto. Eu sabia que podia ser no terceiro ou segundo andar. Pedi licença para ir até o apartamento sem ser anunciado já que eu, a mentir, sabia qual o apartamento. Subi pelo elevador e apertei o segundo andar. A porta era exatamente igual e apertei a campainha e ouvi uma voz feminina gritar lá de dentro:

- Pode entrar. A porta está aberta!

Eu abri a porta e vi alguma coisa diferente nos móveis a partir do corredor. Mas, havia um grande sofá marrom que era igual ao da casa de meus amigos e enchi o peito de alto-confiança e emburaquei casa à dentro. Uma senhora de cabelo vermelho, num corte channel, veio ao meu encontro e eu, idiota que só, pensei:

- Deve ser alguma parenta da dona da casa, minha amiga, a dona da  casa que deve estar em outro aposento.

Eu perguntei pela Socorro, minha amiga e fui informado pela senhora que não conhecia tal pessoa. Fiquei verde e tremi. Eu pedi mil desculpas pela invasão certo da gafe cometida. Mas, agora sabia, o apartamento de meus amigos era no piso à cima, o terceiro andar.

Mas, para concluir tenho que voltar ao assunto anterior, ou seja, a idade e o corpo. O corpo não é mais o mesmo; os músculos podem não mais corresponder como ao 20, mas, a cabeça vai muito bem, obrigado. O raciocínio está atento como jamais esteve. É privilégio chegar aqui. Mas, aos 70? Como estarei? Que venham os anos! E que venham muitas outras situações. 

Wanderley lucena

sábado, 9 de abril de 2016

Sábado

É sábado em minha casa e em minh’alma. É folga para quem trabalha, mas é, também, véspera de domingo. É o último dia da semana e, geralmente, é de pura preguiça, de tomar cerveja com amigos, de caminhada no parque, de churrasco, de piscina. Sábado tem noite que pode ser curtida sem hora de voltar pra casa ante ao fato de que se pode dormir no domingo até a hora que se bem quiser já que é dia de folga.

A noite de sábado é de bebedeira, de sexo, de boate, de caça, de aventura. O sábado é intenso e para fora de si, enquanto que o domingo é dia de missa, de culto, de interiorizar-se. E eu até gosto de umas viagens para dentro de mim, mas, com todo o respeito aos religiosos domingueiros, prefiro fazer isso debaixo de uma árvore ou às margens de caudaloso riacho, ou a andar pelo parque, ou a ouvir uma música enquanto dirijo o meu carro.

Sábado é o dia de quem quiser, é o seu dia, é meu dia e pode até ser o dia do capeta. O sábado é meu, todinho meu, só meu. Eu quero morrer num sábado. Quero morrer depois de um êxtase, de um transe. Quero morrer nas vésperas de um domingo. Quero morrer depois de voltar de uma festa ou durante ela. Prefiro a primeira opção só pra não estragar a festa dos demais. Quero que a festa continue sem mim. Quero morrer depois de jogar-me em minha cama numa madrugada de estrelas e farto de alegria e que seja numa noite de sábado pra domingo. Quem quiser ir ao meu velório que o faça depois da festa e que vá com as olheiras da noite bem vivida e com o hálito do álcool e da esbórnia.

E olha que hoje eu já nem preciso mais tanto assim do sábado, pois, sou um desocupado e tenho o ócio por produção graças à aposentadoria merecida. Mas, no sábado todos vivem, mesmo que inconscientemente, a mesma intenção de propriedade desse dia e só querem se divertir.

Pode até ser o dia de fazer a faxina em casa, mas, ela será feita ao som do U2 e com o volume máximo a estourar as caixas de som e anunciar ao resto da vizinhança que sábado é o meu dia e que é de alegria intensa. A faxina será acompanhada de uma cerveja e a vassoura será a parceira numa dança pagã que antecede a muitos outros atos. Pode ser a visita de um amigo ou da namorada, mas, há a expectativa da noite que começará cedo e terminará com os raios do sol de domingo. Será festa e dança. Noites de encontros enamorados de apaixonados ou de encontros rápidos e furtivos de quem jamais se verá novamente. Encontros elaborados e programados ou intuitivos e repentinos em becos escuros e derivados da atração dos corpos. E a faxina será feliz ante a perspectiva de uma noite intensa de sábado.

Domingo é de descanso do que se fez no sábado. O domingo é o “dia do senhor”. Dia de ficar na desagradável expectativa da segunda-feira. E a segunda-feira é o pior dia da semana. De tão desagradável ele começa já no domingo. Se eu pudesse pararia o tempo ou pularia todas as segundas-feiras e iria direto para a terça-feira. 

Sábado é o dia melhor de todos. E o bom é que ele acontece a cada sete dias. Não é como o aniversário, o réveillon, o feriado prolongado... esses ocorrem uma vez no mês ou ano. Sábado tem 30 horas já que só acaba com o sol de domingo. O domingo fica para o senhor e todas as suas ladainhas, rituais e obrigações enfadonhas. Se o domingo é do senhor, o sábado é todo meu! O sábado é nosso! Vamos para a festa!

Wanderley Lucena

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Reencontro

Graças à tecnologia virtual das redes sociais, um amigo ao qual não via fazia mais de 30 anos, manteve contato. Ocorre que não era qualquer amigo, mas, um amigo por demais especial. Quando nos conhecemos no ano de 1984 quando éramos alunos em um curso de regime internato e durou sete meses. 

Foi com surpresa que recebi seu convite de "adicionar" em uma dessas redes sociais. Era o meu velho e bom amigo de outrora que mantinha aquele contato depois de tantos anos. E agora, morando na mesma cidade, marcamos um papo, um "matar a saudade" em um bar charmoso aqui pertinho.

Cheguei antes do horário e fiquei a esperar. Será ele teria dificuldades em me reconhecer depois de tantos anos? Ele chegou e abriu-se em afetuoso abraço. Não fora o cabelo platinado pelo tempo eu diria que ele nada mudara. Não haviam rugas em seu rosto moreno e a expressão era a mesma. Nem a barriga típica das pessoas de nossa idade. O mesmo sorriso, os mesmo gestos. Mas, como não poderia deixar de ser, havia a sobriedade que é a grande vantagem das pessoas amadurecidas. A fala era mansa e o tom ameno das pessoas educadas. E meu amigo sempre foi pessoa admirável nesse quesito. O papo durou cerca de três horas e elas se passaram como se três minutos. 

Ele me contou as suas estórias e eu as minhas. As lembranças que ele tinha de mim, de nós e dele, muitas delas se me haviam me apagado na memória. Mas, consegui reviver e até me lembrar de algumas delas. As lembranças todas eram como o cheiro da murta depois que a chuva cai na terra árida. Já sentiu o cheiro da murta? É frutinha verde, cítrica e sabor indescritível que dar lá pra o sertão, na beira dos caminhos da roça no Maranhão. O cheiro é tão bom que bem podia ser acondicionado em frasco de perfume francês. 

Nosso reencontro foi um reviver, um abrir de baú velho cheio de recordações. Encontrar um amigo ao qual você queria fora também teu irmão é como encontro cósmico ao qual não se pode mensurar. E tenho meu irmão de sangue a quem tanto gosto e quero bem. Mas, o meu amigo ali na minha frente era mais que amigo, era companheiro de estação planetária, estação chamada "terra". Um encontro de almas irmãs. Ficou combinado, de novo, a qualquer momento, nos encontraremos e continuar emos a conversa tão agradável e que não foi suficiente. "Gracias a la vida que me ha dado tanto!".

Wanderley Lucena

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Odores de humanidade

Depois de sentir um mal odor típico da flatulência e dentro do metrô eu fiquei a me perguntar do porquê sermos tão fedidos. O corpo humano precisava de tantos orifícios? Eu sei é aceito a sabedoria da natureza e não reclamar por reclamar, simplesmente. Faço a minha reflexão com certa análise espiritual-filosófica. E seu que é pura ousadia de minha parte, pois, filósofo não o sou. Mas, a mãe natureza precisava no colocar em corpo tão orgânico? Porque o corpo humano precisa produzir tantos gases? Tem o mal hálito, o suor nas axilas, o chulé,  a cera do ouvido, as secreções das partes íntimas, a saliva, a flatulência, o excremento e até o próprio sangue. Meu Deus!

Inventamos o perfume para disfarçar tanto fedor e mesmo assim, por vezes, nem os mais fortes dão conta do recado. Mesmo aqueles que belos fedem tanto quanto qualquer mendigo que não toma banho, basta que fique um ou dois dias em total relaxamento da assepsia corporal. Devemos ser espitritos, creio. Como podemos, enquanto espíritos, seres energéticos, fedor tanto?

Como pode o nosso interior ser tão podre e não conter-se em si é termos de espécie tantas nojeiras que vão desde um simples flato à uma diarréia? Uma boca cheia de cáries e sem escovação pode bem ser comparada a um ânus. Seria mesmo um privilégio a nossa humanidade fétida e em putrefação?

Quem se habilita às respostas? Eu de cá me ponho, mesmo assim, agradecido ante o sol cálido em minha fronte ou de sentir água corrente e fria em menus pés quando os ponho num caldaloso regaço. Ademais, bem sei, existem muitos bons odores na natureza que podem ir desde uma flor à relva molhada ou seca. Mas, a natureza sequer se faz alguma assepsia como nós humanos somos obrigados diariamente e por diversas vezes.

Mas, vale a minha humanidade ainda que fétida. Mas, se pudesse escolher, pediria vir com cheirinho de alguma flor Silvestre que bem poderia ser a lavanda.

Wanderley Lucena

Educação e Estilo

Desde que aqui cheguei chama-me a atenção a quantidade de leitores nos vagões do metrô de Brasilia. Faz-me lembrar a boa impressão que tive no metrô de Buenos Aires quando por lá estive faz alguns anos.  Naquele momento pensei com meus botões no quanto nós estávamos distantes deles, os argentinos. Belíssimos que são e com uma cara de quem entende o mundo de tanto que se educam los hermanos. Mas, já faz algum tempo que lá estive e as coisas podem ter mudado depois da passagem de uma bruxa má chamada Cristina que lhes roubou muito, assim como cá, uma outra bruxa tudo nos roubou, inclusive, a nossa dignidade.

A minha reflexão é pensar que apesar da carência educacional oferecida pelo governo da bruxa má, insistimos em nossa busca pela educação. Vejo as ordas de alunos com suas mochilas pesadas e seus uniformes pobres e surrados a se dirigirem para suas escolas em busca da salvação. Nos vagões vejo muitos a lerem seus livros e que prazer que isso me dá. E agora sei que se não os via era porque não tínhamos o metrô e de ônibus é impossível ler ante os solavancos que faltam nos jogar janela à fora.

Já não sinto mais invejas de "mis queridos hermanos argentinos". Já não nos falta mais nem a beleza. Esse quesito também tem me chamado a atenção positivamente. Somos um povo bonito. E melhor é que somos mesclados. Temos brancos, negros, morenos, índios, galegos, sararás, etc... e já alcançamos bom nível de equilíbrio estético. É lindo ver que sabemos equilibrar as cores e que temos certa elegância no vestir.

Vale lembrar que nem tudo são flores. É triste ver o egoísmo do jovem que se senta no banco reservado e faz de conta que não percebe o idoso a quem deveria dar o lugar. Assim como, perceber que ninguém obedece a ordem de entrada e saída dos vagões e se atropelam uns aos outros ou ver que sentam-se no chão do vagão e se encostam nas portas que abrem e fecham freneticamente. Além do risco que corre quem pratica tal falta de educação, há a questão que impedem a mobilidade de quem deseja entrar ou sair do vagão.

Esta semana, já numa parada de ônibus, um garoto de uns 13 anos, vestindo uniforme de um Centro Educacional, estava sentado sobre o encosto da cadeira e com os pés sobre o assento. Teclava displicente no seu celular. Não resisti e o abordei e cobrei que respeitasse quem iria sentar-se logo após ele. O rapazote, mal saído dos cueiros, resolveu discordar. Chamei-o de mal educado e que deveria recolher-se e ouvir e aprender com os mais velhos. Ele não quis saber e disse que sua educação era cabida a seus pais e somente à eles. Discordei de forma veemente com o incauto e lhe informei que educação é recebida a todo momento e vem de onde menos se espera e que o seu Centro Educacional onde estudava era também responsável por sua educação. Mas, rendi-me ante a surdez daquele menino e conclui que se eu tentasse convencer a um poste de concreto poderia ter mais sucesso. Recolhi-me.

Mas, estamos melhores, creio eu.  

Wanderley Lucena 

A Efusiva

E ela me mandou um agradecimento todo simpático por meio do watssap. Agradecia pela forma como a descrevera em uma de minhas postagens/crônicas. Dizia ela que a havia captado na essência e que nem era merecedora de ser uma das minhas personagens. Eu fiquei a pensar no quanto fazemos a ideia errada da imagem, da nossa auto-imagem. Uns a exageram para mais e outros para menos. Não sei se ela fazia o bom e velho exercício da humildade ou se estava mesmo equivocada quanto à sua estatura de personalidade. Adoro ouvi-la. Efusiva e espirituosa como poucas que conheci. É já uma senhora cinquentona com cara de trinta e que já começa a se incomodar com tal fato. Eu a entendo pois, também, estou eu no mesmo barco.

São tantas as estórias por ela contadas que eu gostaria de ter um gravador ou uma memória de elefante para contá-las todas neste blog. Ela fala alto e dar risadas abertas. Vez por outra é obrigada a se levantar da mesa e ir para a rua para empurrar a maldita nicotina no juízo e nas veias. Acho que jamais acharei alguém tão espirituosa quanto ela.

"Nunca gostei dela mesmo!", tascou ela em uma de suas tiradas enquanto se matava a puxar a fumaça nicotinada do cigarro e entupir os pulmões. Eu não sei exatamente a quem ela se referia por ter apontado com um gesto de cabeça discreto em direção à uma das senhoras da mesa.  Mas, parecia ser de uma parenta com quem teve alguma desafeição quanto esteve com problemas de saúde e não foi por ela assistida. Mas, ela nunca foi de perder tempo a declarar suas decepções. Sempre em alto astral e alegre, diria eu, quase doida. Adoro gente doida. Aquele doido do bem, sabe? Aquele que se desprendeu dos conceitos sociais ou que jamais se prendeu à eles.

Naquele mesmo dia enviou, via grupo de watssap, uma foto dela própria vestida em um belo modelo prateado de algum modelista francês e que, creio, deve ter comprado por lá mesmo, por Paris. O grupo, atencioso e gentil, comentou de sua beleza e elegância, mas, se pronunciou quanto ao vestido que bem podia ser usado no tapete vermelho do Oscar. Ela não se fez de rogada e exigiu os comentários a respeito do vestido. Pois bem, esse é o estilo dela. É autêntica e sagaz.

Ela é atabalhoada e fala feito papagaio. A sua ânsia para contar suas estórias é tanta que, por vezes, não adianta. Todos têm de calar-se, rendidos a ouvi-la. Enquanto conta suas estória tem crises de risos contaminantes e todos faltam morrer, junto com ela, ante a esteria. É mesmo uma dessas figuras às quais eu passaria horas, talvez dias, sem abusar de ouvir.

Ela é uma espécie de carro alegórico que se anuncia já lá esquina e que se senta à mesa e todos sabem que a atmosfera mudou. E mudou para melhor! Um prazer ouvir gente que nem ela! Mas, pare de fumar, viu?

Wanderley Lucena

terça-feira, 22 de março de 2016

Ócio por Dádiva

Ficar em casa e dormir de tarde. Fazer nada o dia inteiro, ao menos por enquanto. Sabe quanto a tua consciência não te acusa o ócio? Então, é nesse estágio que me encontro. Melhor que não ter patrão é não ter empregados. As responsabilidades diminuem e você acorda quando o teu corpo manda. É claro continuo a manter alguma disciplina e o me obrigo alguma produção mesmo que no ócio. Tem a academia que eu gosto e que fica a apenas cem metros de minha casa. Mantenho alguns horários que me são impostos pelo meu estado de alerta.

Fico na minha zona de conforto por algum tempo. Sei que logo minha inquietude me impulsionará pra algum outro lugar ou projeto. Estou livre como nunca estive. E nos novos projetos pretendo não mais ter empregados, patrões ou sócios. O máximo a que me permito é a parceria dos que se juntam por interesses do   coracão. Uma paixão, um amor... quiçás, quiçás, quiçás.Tenho meus amigos queridos e aos quais gosto de estar em suas companhias e quem recorro, muitas vezes, em busca de algum apoio, de ombro ou colo. Tem minha família - e família é família e ponto. 

Não há desgosto. Decepções existem. Há a certeza de que o momento é de passagem e que logo estarei em novas paragens e que uma nova aventura virá e que nela as emoções serão tão intensas quanto as que vivi nos últimos anos.

Estou na estação sem saber se pego o próximo trem. E essa sensação não é de todo ruim. É a eterna inquietude que atormenta a todos os seres - ou será que não? Eu acho que alguns estão dormentes ante à vida e que a ignorância pode ser uma dádiva. Mas, quem saiu dessa zona de conforto jamais retornará à ela. Estou certo que mais vale essa inquietude que não ousar ir além daquilo que ensinaram ser o limite. O meu limite quem o faz sou eu. E minhas limitações são muitas e podem ser, em sua grande maioria, de ordem material. Mas, a minha mente é livre. Livre sou, inclusive, para não ter os horários marcados. Livre para me permitir acordar ou dormir quando o queira. 

No meu ócio eu permanecerei até quando o queira meu corpo. Mesmo que eu venha a sair desse estágio, o farei com a convicção de quem o faz com plenitude e respeito à si mesmo. Já trabalhei por demais e à muitos dediquei-me. Agora estou a cuidar um pouco mais de mim mesmo e pretendo continuar na jornada para dentro de meu próprio ser. O mundo que existe para dentro mim é tão grande quanto o mundo de mim para fora. 

Wanderley Lucena

segunda-feira, 14 de março de 2016

O Metrô

E eu a andar de metro pela capital federal sempre na companhia da Clarice, a Lispector. Por vezes, a guardo um pouco na minha bolsa só pra ficar observando a cena. E se tem uma coisa que gosto é de observar a cena. Sou fanático por gente. Gosto de perceber as formas de cada um, desde a cabeça até os pés. Mas, não só isso. Gosto de ver os modos de cada um ou de um grupo. Eu gosto de ver TV, de cinema, de jornais e revistas e... Sabe porque? Por que gosto de gente. Sinto-me espectador de um BBB onde todos vivem numa redoma gigante - aos moldes de "O show de Truman". Eu de cá a criticar a tudo e a todos sem esquecer que, de lá, também sou parte do show é objeto de críticas tão severas quanto às minhas.

No metrô me incomoda a falta de educação dos que insistem em sentar-se no local reservado a idosos, deficientes e grávidas e se fazem de morto a partir do momento que se sentam. Os pedintes e vendedores. Os alunos adolescentes a rirem sem ter porquê é sempre em altura que o vagão inteiro pode ouvir. Os amassos dos casais apaixonados quase se "comendo" na frente de todo mundo e, pior, os evangélicos que decidem fazer sua pregação e a tentar salvar os que estão a ouvir-lhes.

Na estação, já fora do vagão, aproveitando-se da acústica do local, uma louca-evangélica, gritava em alto e bom som a sua pregação. Não a vi. Mas, subi as escadas da estação e, já no piso superior, ouvia os berros da louca que informava, segundo a própria Bíblia, ser loucura aquilo que dizia. Alguns aplausos e "améns" foram ouvidos. E eu fui embora deixando aquilo para trás e a pensar: se fora um macumbeiro a bater tambor de terecô podia? Será que a segurança não iria intervir?

Mas, que bom que é poder ter ouvidos para ouvir, boca para falar, dedos para teclar e poder escrever isto. Segue o show? Que siga o show!

quarta-feira, 2 de março de 2016

O Coelho e o Ovo

E a tal páscoa que todos comemoramos sem saber do que se trata? Jamais vi comemoração tão comercial quanto esta. Acabei de ouvir que o lucro sobre os produtos achocolatados que vão desde bonbons a ovos de páscoa chegam a mais de 400%. É muito lucro! Acho que de tanto lucro passa a ser qualquer outra coisa. E chocolate é viciante. Quanto mais você come, mais você quer comer. 

Ovos de páscoa? Sério? Ovos de coelho? Sério? E coelho bota ovo? É muito louco o que se percebe. Existe o feriado de páscoa. E o feriado é quase que mundial. Sim, todo o mundo comemora a páscoa sem saber do que se trata. É mesmo muito louco.

Louco mesmo é perceber que o significado para o cristãos é totalmente diferente para os judeus. Os cristãos usurparam o nome "páscoa" para comemorar a ressureição do Cristo. Já os judeus a comemoram a páscoa, ou o "pessach", para lebrar o dia da passagem do mar vermelho. Ou seja, nada tem a ver uma coisa com a outra. 

E para a maioria trata-se da páscoa, apenas a páscoa sem qualquer sentido. O governo decreta o feriado e o povo se esbalda a comer chocolate em formas de ovos botados por um coelho. Uma bobagem tão grande quanto a figura do Papai Noel que é figura quase santa nas denominações evangélico-cristães, mas que, na verdade tem sua origem na paganidade.

É mesmo interessante observar a insanidade dos que desfilam nas tropas da ignorância e se rendem hipnotizados aos apelos da mídia, do comércio, das igrejas e das crendices.

Wanderley Lucena

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O Cão Imaginário e os Ensacolados

A locomover-me à pé pelo Setor Comercial Sul, local bastante movimentado, principalmente na hora do almoço na capital federal e em companhia de meu grande amigo Beto, decidimos almoçar por ali, num restaurante de comida de sabor incrível. Meu amigo tem gosto apurado e o restaurante gostoso nem era tão caro. Mas, ao dirigir-nos desde o seu trabalho até o restaurante, um trajeto de não mais que 100 metros, duas cenas inéditas me chamaram a atenção.

Senti cheiro de marijuana e vi rapazes e moças sentados no chão, em rodas, aos montes, a fumar a erva já quase legalizada, ante todos que por ali passavam. Tinha muito mais cena a acontecer e que eu não dei conta de apreender e aqui postar. Mas, meu amigo chamou-me a atenção, sabedor que tudo aquilo era-me material de escrita para publicação neste blog.

Mas, o que me chamou a atenção mesmo foi um indivíduo com cabelo amarrado sobre a cabeça, no estilo lutador de sumô, com uma fita vermelho intenso de uns quase seis metros de comprimento amarrada no antebraço e um conjunto de favas de não sei o que, amarrada na ponta que se arrastava ao chão como se conduzisse ele um cão de estimação. A fita vermelha devia ser de seda e as favas eram de alguma árvore nativa do cerrado. Paramos, eu e meu amigo, e ficamos a observar a cena enquanto o moço nos passava. De andar empertigado, olhar no horizonte, altivo, puxava as favas que faziam um barulho como que de um instrumento de percussão. Não sei se nos percebeu a mirar-lhe, mas, de tão excêntrico, devia sentir-se artista a impor seu comportamento. Ou seria algum louco? Não sei até agora. Mas, se era artista,  ganhou nossa atenção. E é isso que todo artista busca afinal. Gostaria de rever o espetáculo. Voltarei por ali com certeza e espero ver o espetáculo desse artista anônimo.

A outra cena veio a seguir. Causou-me estranheza ver algumas dezenas de pessoas bem vestidas, talvez, executivos que por ali laboravam, com sacolas de papel reciclado enfiadas nas cabeças. As sacolas eram todas exatamente iguais e estavam furadas nos lugares dos olhos e nariz. Eu fiquei curioso. Não sei do que se tratava. Eles andavam para lá e para cá sem nenhuma outra manifestação. Não havia um grito de ordem nem alguém com algum megafone a fazer algum discurso.  Não entendi, assim como o rapaz com visual de lutador de sumô a carregar o cão imaginário por sua rica fita de seda vermelha, se tratava-se de manifestação artística, protesto ou loucura. Quaiquer das opções, gostei do que vi. Senti a pulsação e o frescor da metrópole e sua gente e senti-me parte dela. Voltei para a estação do metrô com alegria e em estado de contemplação.

Wanderley Lucena

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Mar do Francês

Adeus mar do Francês!
Ficas um pouco mais salgado ante minhas lágrimas derramadas 
Lágrimas que agora fazem parte de ti
Guarda-as com carinho e não as percas
Obrigado por teu calor e por teu abraço que me submergiu e ressuscitou tantas vezes
Tuas ondas me abasteceram de energia e donde percebi parte de ti
Mergulhar em tuas águas mornas e cristalinas
Voltar a ser, de novo, feto em placenta
Protegido e envolvido
Eu e tu
Nós apenas
Tu me acolhestes e me ouvistes
Mas, não chores, querido mar
Logo nos encontraremos novamente em tua outra margem
Sei que tuas águas serão frias e que te temerei o contato
Mas, sem dúvida, num dia de muito sol, de novo me envolverás 
Não quero mais deixar-te lágrimas grossas e de dor
Que elas sejam benditas e agradecidas
Adeus meu querido mar!

Wanderley Lucena

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Baldiação

Vendi meu carro e não pretendo comprar outro tão cedo, haja vista, os custos de manutenção altíssimos neste país. A gasolina com preços estratosféricos, por si só, já justificaria minha atitude. Mas, existem os famigerados IPVA, lincenciamentos, etc... E, ainda, pneus, lavagem, estacionamentos, etc... etc...

Hoje, depois de não sei quantos anos a andar de carro, fui pegar um ônibus. Queria chegar até um shopping no centro da cidade, porém, teria que pegar, não um, mas dois ônibus, ou seja, teria que fazer uma "baldiação", na lingua local.

Minha saga começou por volta das 9h quando o sol já está à pino - e aqui o sol está à pino desde muito mais cedo. O sol aqui, às 5h já está nascido e bem alto. Em compesação, `s 17h30min já é noite escura, de meter dedo no olho. A parada do ônibus era marcada apenas por uma placa azul com a figura de um onibus colada num poste torto de iluminação pública. Já suado e incomodado com o calor, tentei me enquadrar à esquálida sombra que me dava o poste. Exercício hercúleo já que sempre me ficava alguma parte do corpo a torrar no sol.

Enfim, uma minivan, atende ao meu aceno. Ao entrar senti como que a baforada de um caldeirão nos infernos. O interior estava abafado e fedorento. As janelas eram pequenas e mal abriam. O transporte público por aqui, seja ele qual for, nunca contará com um ar condicionado. Suando às bicas, recepcionou-me o cobrador. Um verdadeiro vampiro. Tinha ele apenas dois dentes, os caninos. Fiquei com a piada na cabeça: um deve ser pra abrir cerveja e outro, côco.

Pra variar, lotadíssima, a van disparou á toda velocidade fazendo curvas e passando por quebra-molas como se fora um fiapo de areia no chão. Ante o meu deslocamento, o simpático vampiro-cobrador desceu uma espécie de tabuleta-banco pregada na parede de minivan. Havia uma lixeira cheia no piso e a tabuleta desceu sobre ela. O cobrador-vampiro apontou-me, gentilmente, a inusitada cadeira à qual não me fiz de rogado e assentei-me, resignado. Peguei a Clarice debaixo do sovaco e folheei em vão. Os solvancos faziam minha mão subir quase ao teto e em seguida ao piso. Fechei-a e fiquei atento à cena ao meu redor, já sabedor que minhas impressões não seriam as melhores. Mas, desafiador que sou, permaneci a observar.


Vi casinhas humildes e sujas; vi lixo espalhado na rua, nas praias e nas ruas; vi mil ambulantes a vender desde caldo de cana a calcinhas eróticas; vi muito mais. Chegamos na Praça da Cadeia onde se daria a tal "baldiação". A praça sob sol escaldante e poucas árvores, estava tomada por todo o tipo de ambulantes que vendiam as mesmas bugingangas, pra variar. Vi num ônibus que vinha, a placa que indicava o nome do shopping ao qual eu ia e dei sinal. Sentei numa cadeira de plástico amarela sem acochoamento e do lado do corredor e não da janela. Péssima escolha a minha. A última cadeira vazia era, justo, aquela ao meu lado e... uma raínha Momo, imensa, uma jamanta de tão grande, decidiu sentar-se nela. Eu fui expulso de meu assento, ou pelo menos metade de minhas nádegas que ficaram no corredor. A gorda era evangélica e danou a cantar hinos que o capeta teria dificuldades de ouvir. Bravamente, permaneci encostado na sua imensa bunda, pedindo aos deuses que me permitissem o bom senso de não me meter com ela numa discussão qualquer. 

Olhei pela janela lambuzada pela maresia de anos e assisti ao ápice da minha ópera, do meu drama: o Salgadinho. Vi e senti o mal cheiro do esgoto que ele virou. Um rio que já teve águas cristalinas, potáveis e caudalosas e que virou um imenso esgoto à céu aberto. Um cavalo quase explodindo com os  gases da putrefação com um enxame de moscas varejeiras a lhe sobrevoar boiava em suas águas a descer lentamente, levado pela força da correnteza preguiçosa em direção ao mar azul e cristalino do mar de Maceió.  O Salgadinho já foi rio de águas límpidas, cristalinas e potáveis - dizem os locais. Pois, foi ele transformado nessa "coisa" que leva desde sofás velhos e podres a animais mortos variados, inclusive, gente. É o progresso! Diriam alguns. Eu acho que é pura falta de educação e consciência ambiental mesmo.

E as boas impressões deste lugar? Dessa viagem tão curta e tão longa? Tentarei achá-las posteriormente, porém, injustamente, não as contarei. Prefiro a tragédia!

O shopping chegou e eu desci aliviado com a sensação de que aquele era um ônibus fantasma. Depois... voltei para casa de táxi mesmo sabendo da facada que me custaria. Mas, dessa vez sem "baldiação". 

Wanderley Lucena

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Gaveta do Esquecimento

Você tem muita sorte de ter ressuscitado para mim - ou seria azar? - Sou mesmo bastante rancoroso e não estou aqui a me punir por isso. Quando utilizo-me de matar alguém - morte simbólica, por favor, me entenda - o faço depois de perceber ser a única opção ante quem me agride. E ai... adiós muchacho! 

Sei que o perdão deve ser usado com frequência e que a vida fica mais suave quando o rancor não pesa no coração. Mas, percebo que o perdão, ao menos para mim, fica numa gaveta de algum móvel empoeirado no meio de vários outros. E por mais que o busque não me lembro qual a gaveta o pus. Mas, por vezes, até o encontro. Em alguns casos tranco a gaveta e jogo a chave fora.

Mas, evito esse ato extremado de jogar alguém no limbo do esquecimento. São poucas as pessoas ás quais consedero mortas. E é verdade que por vezes eles intentam ressuscitar e, a depender, jogo mais cal sobre o túmulo. Com a idade fui ficando pior para alguns casos e mais complacentes para outros. 

Eu sei que esse papo é brabo, pesado. Mas, não negue! Todos temos nossas mágoas. Tá bom! Tem algumas excessões - talvez, o Dalai Lama. Mas, não sou o Dalai. Bem que eu gostaria, mas, não o sou. Fazer o quê?

Eu acho que perdoar é louvável. Porém, algumas pessoas, mesmo que perdoadas, voltam a reinscidir. E nesses casos não sei perdoar a mim próprio. E ai fico dias, meses, anos a remoer-me. Quando aniquilo o indívíduo sinto-me realizado por ter feito a coisa certa. E durmo em paz depois de ter tomado um vinho para relaxar e - porque não? - comemorar. É beber o sangue o morto, como diz o adágio popular.

Um dia vou fazer uma visita ao Dalai e pedir-lhe que me ajude na busca do perdão. Por enquanto fico com minha peixeira na mão a proteger-me e a proteger-te. Sim, porque eu sou contra qualquer injustiça, inclusive, contra o próximo. E, se preciso for, me manifesto e entro na frente de quem está a ser agredido. Mas, bom mesmo, é viver em paz e sem agressões de quem quer que seja. 


Wanderley Lucena

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Riso por Disbunde

Prefiro o riso ao choro. Há quem prefira a emoção densa e dramática da tragédia. Eu gosto de uma boa tragédia. Porém, a refletir sobre o assunto considerei que o choro é para quem está em processo de cura. Quem chora de emoção ante suas lutas ou ante a luta de outrem está a observar o processo de sua própria cura ou do outro. Mas, que rir, rir porque está curado. O riso é êxtase pós luta. Quem está doente não rir. O que rir o faz de cara e peito abertos.

O sorriso descontrai e lança-se, expulso pelos musculos internos, de dentro para fora, para o universo. O choro é contraido. Quem chora chora pra dentro de si mesmo. O choro é acanhado e escondido. Quem chora não quer chorar. Quem chora quer mesmo é rir. O riso se escancara ante o sol cálido e se espalha por quem o assiste. O riso é virus do bem que se espalha. 

Que não se invalide o poder do processo da cura que vem pelo choro. As lágrimas lavam a alma e depois... pra cura ser completa... vem o sorriso. Bom mesmo é rir depois do processo. É rir por agradecimento. O riso é para quem está em paz e sem problemas. O problema que pode ser  uma doença, quiçá, a morte, leva ao choro. Uma reflexão, um livro, uma cena de filme ou de realidade pode levar ao choro. Nada há de errado em chorar. Mas, rir é que é disbunde. O riso é o estravasamento de boa emoção.

Mas, há tempo de sorrir e tempo de chorar, diz a bíblia que nem é tão sagrada assim. Mas, ela tem razão. Já sorri e já chorei. E chorei sozinho, às escondidas. E depois do choro vem a paz e a leveza. Mas. o rir é orgásmico. É bom andar por ai a mostrar os dentes a quem sequer conhece. Quem rir recebe riso por resposta. Quem chora recebe dó e pena. Definitivamente, fico como meu sorriso. Fico com o seu sorriso! Mas, levo a minha dor! 

Wanderley Lucena

sábado, 23 de janeiro de 2016

A Garçonete e a Privada

O pessoal do serviço do Roxy Bar, na Praia do Francês, em Alagoas, Brasil, por si só já seria material suficiente para estórias que renderiam um livro de muitas páginas. Cada garçon, assim como qualquer indivíduo, traz características muito peculiares. Eles consideram que o trabalho é excessivo e correm para lá e para cá como se o mundo estivesse a se acabar e eles tivessem que sobreviver em meio a uma chuva de pedras. Quem se sentar junto ao balcão, e não nas muitas mesas espalhadas pelo salão, perceberá o clima tenso e denso. A atmosfera não acompanha a boa música que toca quase inaudível apesar de tantas reclamações para que o volume suba um pouco mais. Ouvir Pink Floyd muito longe, abrir bem os ouvidos e mesmo assim não poder apreciar a música é exercício irritante e enfadonho. 

Tem a mocinha loira, de olhar furtivo,  mãe de três filhos, estudante de algum curso superior que não me lembro e que aparece do nada, correndo pelo salão como se estivesse ocupada a atender algum cliente. Ele aparece e desaparece por quase meia hora. Volta  aparecer e, de novo, some por mais meia hora. A observá-la, percebi que a funcionária que mais usava o banheiro de serviço era justo ela. E sabe porquê? Segundo me informaram, depois de fechar a porta, baixa a tampa do vaso e sentada ali tira uma soneca para recuperar o cansaço da correria ou da praia, da "maresia", dos namoros que a fazem perder a noite (ou ganhar - a depender de onde se olha). Acorda e sai correndo pelo salão e volta correndo para o mesmo banheiro a fazer a mesma coisa tentando disfarçar a sua atitude.

Mas, a mesma moça me informou não ser ela garçonete. Parece-me que é bióloga ou algo que o valha e que, portanto, goza de certo privilégio - ao menos em sua cabeça - já que é superior aos demais. Que por ser bióloga não precisa se preocupar em servir como os demais. Sempre notei certo ar de superioridade na moça. Agora estava respondido o porquê. Ela se considerava bióloga e não garçonete. Há grande equívoco no argumento da garçonete que dorme na privada. Ela pode não ser garçonete. Ela está garçonete. Que aproveitasse a oportunidade de trabalhar na nave intergaláctica que é o Roxy e que fosse feliz ao falar com tantos de tantas nacionalidades. Mas, na cabeça da gorçonete, o Brasil estava a perder uma bióloga e ela era obrigada a desenvolver atividades indignas. Resta saber se o dono do estabelecimento conhece a tal falácia da moça e se concorda com ela - coisa que duvido muito. 

Já percebi certo chamego, talvez só por parte dela, em direção a um italiano de olhos azuis como a cor do mar do Francês. Acho logo teremos novo rebento, talvez, com dupla nacionalidade. Mas, esse é apenas um pormenor. Nada contra quem pare seus filhos desde que os crie e crie bem. Mas, a moça é de poucas posses e se mantem com a ajuda do pai. Aqui vive de favor nas casas de amigos. Assim sendo, acho que seria melhor uma laqueadura. Well!

Mas, não é a música baixa que me chama a escrever e sim o serviço desta estação intergalática chamada Roxy Bar. Ontem fui lá como de costume e percebi certa calmaria. O clima estava até bom. Não houve nenhuma discussão ou barraco entre eles. Reclamei, claro. 

- Escuta! - interpelei a garçonete - cadê? Não vai ter um barraco hoje? Uma briga? Uma discussão? Nada? Tenho meus direitos como cliente e quero ver ao menos um barraco! Francamente! Vou reclamar com o dono! (rs)

Fui informado que houve reunião entre todos e o dono e que foram repreendidos. Eu, se fora dono, demitiria metade do pessoal a bem do estabelecimento. Como nada tenho com o estabelecimento que não seja o de consumir, religiosamente a minha cerveja enquanto tento um colóquio mesmo que com a moça que dorme sentada sob a privada, recolho-me à minha insignificância.

PS.: Antes de publicar essa crônica, fui, como de sempre, ao Roxy e não vi a garçonete bióloga que dormia escondida sentada sobre a privada. Disseram-me que um ropante de rebeldia, pegou suas poucas tralhas e ausentou-se com probabilidade de não mais voltar. O assento da privada está vazio. Alguém se habilita?


Wanderley Lucena