domingo, 22 de maio de 2011

PARA ALÉM DOS CAFUNDÓS

PARA ALÉM DOS CAFUNDÓS


Ela teve de voltar ao seu torrão na companhia da mãe, do pai e do irmão mais velho. Enfim, sua família. Durante a jornada se perguntava quem eram aquelas pessoas que compunham a sua família. Se pegou perguntando a si própria, em silêncio profundo, alheia à paisagem que lhe cercava naquele momento. Não percebeu a abelha preta e fedida que se lhe enroscar no cabelo. Zangada, a abelha zumbia ao tentar matar o que lhe seria o inimigo. A abelha podia zumbir á vontade pois Perpétua estava em outra dimensão.

De onde vieram aquelas pessoas que lhe acompanhavam?  Como vieram parar naquela terra? Quem eram seus avós? Onde haviam nascido? As respostas talvez jamais as teria. Era tímida por demais para perguntar o que fosse a seus pais sobre este assunto. Seu pai, apesar de mais sensível, nem sempre estava disposto a responder. Certa feita, depois de uma pergunta qualquer, respondeu-lhe:

- Vá procurar o que fazer, menina!

Ela sentiu o sangue vibrando em sua face e fazendo-a corar de vergonha.  A mãe não a respondia por falta de paciência mesmo ou porque a odiava a ponto de quase não suportar-lhe a presença. Enquanto ela voltava-se para dentro de si mesma, também, podia perceber crescer o rancor e o ódio por tudo e por todos.

Percebeu-se ficando adulta antes da hora e agradeceu por isso. O tempo passava e lhe crescia a certeza a certeza de que sua sina seria tão seca quanto aquela terra maldita para além dos cafundós. No entanto, Perpétua jamais satisfaria a sua curiosidade. Seus pensamentos, dúvidas e angustias jamais se externavam.

A jornada de volta foi longa para si. Ela o fizera a pé por todo o tempo. A carga estava por demais pesada para o coitado do jumento que trupicava das pernas. Todos se deslocavam calados. Não havia mesmo o que ser dito. Mas tinha uma bomba quase a explodir dentro dela. Uma ansiedade do tamanho do mundo. A revolta que queria gritar à mãe e perguntar o porque de tanto desprezo para consigo. Se ela a odiava mesmo ou queria apenas se entrosar com as mulheres do Oliveira. Não tinha noção de todo o mal que lhe causara.  Perpétua sabia que aquela lembrança horrorosa jamais se apagaria e que o peso em seu coração jamais diminuiria.

 Suas vistas turvavam e sentia sensações de desmaios. Entretanto, não deu alarme algum. Permaneceu segurando-se no jacá  da  mesma forma que segurava o choro. Ela não podia parar para se recuperar. Tinha de achar forças para continuar a caminhada. Se odiaria se seu irmão que seguia logo a frente, puxando o jumento pelo cabresto, percebesse seu fungar de choro. Não queria receber qualquer afeto. Não saberia recebê-lo.  Sentiu gosto de sangue na boca e o ar lhe faltando ao pulmão. Deu-se um baita tapa no próprio rosto. Todos pensaram que ela espantava as mutucas que empestavam as canelas do jumento e o faziam surrar-se a todo o tempo com a própria calda.

As tais mutucas não respeitavam a pernas de ninguém, na verdade. Todos tinham de se proteger abanando as pernas, o tempo todo, com galhos verdes. Mesmo assim, vez em quando, sentia-se a ferroada da maldita, desesperada por sangue. Quem sofria era o coitado do jumento. Sua calda não era suficiente para espantar o enxame de mutucas e elas lhe atacavam nas pernas da frente e pelo pescoço onde o seu rabo jamais alcançaria. Mas sentiu-se grata à existência delas por lhe disfarçarem o estalo da palma da mão em seu próprio rosto.

A família levava peixe para uma semana. Levava também, farinha, azeite de coco babaçu,  abóbora, macaxeira, um cacho de banana murici, macaúba, cachos de pitomba, carambas etc..  e as trouxas de roupas lavadas, parte delas ainda úmidas.  Ela trazia sobre si uma carga bem mais pesada que a daquele coitado jumento, voltava com o peso do desprezo de todos.

Uma alma bondosa poderia dela se compadecer, alguém poderia ver-lhe o âmago sofrido e negro, a alma que chorava e coração dilacerado. Uma criatura bondosa a levaria daquele  lugar e lhe daria afeto, carinho, educação, comida e roupa decente. Perpétua sabia que esse seu desejo jamais se tornaria realidade. Ela não podia se enganar. Sonhar era ter de conviver com a frustração. Encarar a vida, nua e crua, era a sua única opção.

Chegaram em casa e a encontraram como a haviam deixado. Por ali ninguém passava mesmo. Não haviam ladrões ou malfeitores. A casa esta fora da rota de todo mundo. Os tropeiros eram os andantes mais prováveis, mesmo assim, nunca nenhum grupo por ali passou a pedir uma caneca d'água.  E mesmo que um deles por ali chegasse, ao ver a penúria daquela casa, logo seguiria caminho sem nada pedir ou levar. Nada de valor havia naquela choupana velha que mais parecia uma tapera abandonada.

O fogão de lenha foi acesso e a fumaça subiu céu acima. Já era noite e Perpétua sabia que o sono não lhe chegaria. Sua mente inquieta a impediria de dormir. Relembraria mil vezes as cenas vividas no Centro Velho.

Decidiu ir para o terreiro em frente a sua casa e observar o céu. Ante o céu estrelado permanecia a sua agonia e os seus presságios lhe atravessavam a alma como facas em fogo. Tinha medo do futuro. Sabia que as coisas piorariam para  si. Era questão de tempo. Estava condenada sem saber qual crime cometera ante os homens e qual pecado ante a Deus.  As lágrimas rolavam pesadas no rosto ainda infantil.

No, seria se não houvera sido concebida. Jamais viria à luz por vontade própria. Deus, tão misericordioso, nem precisaria se dar ao trabalho lhe tirar toda a tristeza  ou de lhe preencher todas as lacunas e, pacientemente, lhe daria resposta a todas as perguntas. Todos dormiam em suas redes quando ela voltou para a casa sentindo o mesmo peso.

Como já previra, mais uma noite sem dormir. Ouviu o galo cantar e finalmente adormeceu para acordar em seguida com o barulho do milho seco que estava sendo despejado no balde velho de alumínio. A ração dos porcos. Seu irmão obedecia a mesma rotina toda madrugada. Levantava o saco e o despejava no balde lentamente. O barulho sempre vinha logo depois do cantar do galo. Ele não tinha a menor intenção de fazer algum silencio. A intenção era mesmo infernizá-la. Fazer-lhe acordar mal humorada.

A dor no estômago a estava matando quando se dirigiu ao velho fogão feito de barro. A lenha queimava e a fumaça empretejava os caibros e as palhas que cobriam a casa. O velho bule de esmalte sobre a grelha mantinha morno o café ralo. Ela tomou dois goles que lhe desceram como pedras garganta abaixo. Nada mais para acompanhar o café da manhã a não ser a farinha de puba que ela dispensou por não estar com a minha vontade de forrar o estômago. Os olhos remelentos foram lavados com uma caneca d’água. Os dentes foram limpos com jalapa na velha escova de dentes toda esfarrapada.  A jalapa era o pó extraído da casca de uma árvore e que fazia as vezes de creme dental. A casca da árvore era triturada até virar um pó que fazia uma espuma ao ser esfregada contra os dentes e dava a sensação de alguma higiene.

Ela estava toda entrevada. Tinha dificuldade nos movimentos, pegou a coité cheia de milho seco que ela mesmo debulhara da espiga e, ainda, grãos crus de arroz. Foi para os fundos da casa, para o quintal poeirento levando a arapuca feita de galhos secos.  A armou com cuidado e voltou para casa.  Quando o sol estava no meio do céu, voltou ao local e pegou a rolinha magra que se debatia, presa na arapuca. Era só mais uma rolinha. Bem que podia ser uma pomba avuaçã, uma nambu ou uma juriti. Mas a sorte lhe trouxera para o almoço apenas aquela rolinha.

A natureza insistia em não ser-lhe pródiga. Depois de quebrar o pescoço da avezinha, depenou-a, a abriu-lhe as costas, sacando-lhe as tripas e os demais miúdos. Salgou-a e a estendeu sobre a grelha. O cheiro era bom e abriu-lhe o apetite por fim. Dividiu o pequeno passarinho com seu irmão.Comeram acompanhada com farinha de puba. Mas tarde, quando a fome apertou novamente, quebrou tucuns e os comeu com dificuldade, haja vista, a castanha ser dura por demais.

Seus pais haviam saído logo depois do café e não voltariam com o por do sol. Tinham ido para a roça. Seu irmão ficara com ela, como de costume. Nada haviam deixado para o almoço. Sabiam que os filhos seriam capazes de se virarem sozinhos. Que comeriam barro, se preciso fosse.

terça-feira, 10 de maio de 2011

A ORIGEM

Ela sentia necessidade de banhar-se em água corrente e abundante. Estava farta de banhos de cuia e de lavar-se com apenas uma lata d'água. Pensava em voltar ao Flores. Desejava reencontrar a negra Maria. Talvez, ensaboar-se com seu sabonete cheiroso. Conversar com ela. Ouvir-lhe a voz a cantar alguma cantiga de roda. Sentir o abraço caloroso dos braços gordos daquela negra de coração tão bom.

Ainda era dia, quando ela, acabrunhada, com medo da reação negativa de Zé Bento, falou a ele, escolhendo as palavras, para perguntar se podia ir ao Flores. Nervosa e com as mãos geladas fez força para que a voz saísse na entonação certa.

- Amanhã vou ao Flores, lavar a roupa suja.

Surpreendeu-se ao ouvir a própria voz. Soou como um comunicado. O tom era imperativo. Imaginou que as suas sobrancelhas estivessem franzidas e que isso pioraria a sua imagem de autoritária. Torceu para que Zé Bento não lhe maltratasse com uma resposta ríspida e que não a impedisse daquele intento.

Ele comia um pedaço de cana. Cuspiu o bagaço e, sem olhar para ela, perguntou-lhe com a voz mansa e suave:

- Você tem certeza?

- Tenho sim. Não tem perigo nenhum. Sei o caminho. Vou de manhãzinha e volto no final do dia. Lavo a roupa e trago as cabaças cheias. 
 
Respondeu ela, torcendo para que ele não obstasse.

- Pois então vá. Eu tenho que trabalhar na roça. Não posso estar contigo, mas saímos juntos e lhe deixo no porto.
 
Informou-a Zé Bento, já que ia passar a semana trabalhando para os Oliveira.

Ela nunca fora de rezar, mas naquela noite ela se pegou pedindo a Deus, que a ajudasse naquela empreitada. Que Ele fizesse com que a negra também fosse lavar a roupa e que a pudesse encontrar.

Ela preparou o frito ainda naquela mesma noite. Quebrou os ovos e os fritou em azeite de coco babaçu. Misturou com a farinha de puba e botou em uma velha panela, a qual envolveu com um pano que lhe segurava a tampa e impedia que o frito derramasse. Pôs tudo nos jacás, a roupa suja, uma faca peixeira, o caniço para pescar, a cabaça d’água e tudo o mais.

O sol ainda não tinha raiado quando ela pegou a estrada, sentada na cangalha. O jumento ia rápido como se nada levasse em suas costas. Os dois jacás não levavam quase nada mesmo e Perpétua era coro e ossos. As mutucas, uma peste, às centenas, insistiam em sugar o sangue nas pernas do animal, fazendo-o surrar-se com o próprio rabo em chicotadas frenéticas.

Durante todo o trajeto ela desejou, ardentemente, por benção de Deus, ver a negra Maria. Sabia, no entanto, que a possibilidade de tal encontro era por demais remota e, se a visse, era mesmo por puro milagre.

O porto ao qual se dirigia, ainda bem, não era o das Oliveira. Não queria reencontrá-las jamais. Além disso, não era sábado aquele dia. Ao menos que ela ainda se lembrasse vagamente, aquele dia devia ser segunda-feira. Não encontraria as Oliveira. Não era o dia que elas lavavam as roupas e, mesmo que fosse, não se aproximaria do porto delas. Iria agir com a maior discrição. Bateria a roupa devagar, sem tanto barulho.

Depois de umas duas horas de caminhada, a vegetação começou a ficar mais verde e o ar foi se tornando mais úmido. Apenas mais alguns minutos e ela estaria no porto, lavando a roupa. Iria tomar um bom banho, iria tentar pegar uns piaus cabeça-gorda para almoçar e, ainda, levaria alguns para casa.

Ao descer a ladeira em direção ao porto, olhava esperançosa, intentando ver Maria, no entanto, nada viu ou ouviu, a não ser os macacos-prego nos galhos das árvores. Se Maria ali estivesse, estaria do outro lado do rio e, certamente, já teria ouvido a sua cantiga. Sua esperança se esvaía. Mas se visse Maria, pensou ela, com certeza atravessaria o Flores de um pulo só. Queria fazer muitas perguntas à negra. Tinha vontade de contar-lhe tudo. Sobre sua vida, sobre sua saga, seus segredos. A negra lhe ofereceria gentilmente o sabonete que cheirava a flores e ela tomaria um banho cheiroso.

Deus não ouvira suas preces. Zé se foi e ela ficou sozinha. O porto estava mesmo sem viv'alma. Desceu a carga do jumento e o amarrou às margens do rio. Ele logo passou a pastar depois de beber muito nas águas correntes. O capim ali era verde e era manjar para ele, com certeza. A carga já havia sido arriada. Tirou a pouca roupa e a ensaboou num tronco que usou como tábua.

Ouviu barulho de pedregulhos rolando ladeira abaixo na outra margem do rio. Ouviu passos de cavalo. Seu coração acelerou-se ao pensar que Maria estava chegando. Ela se surpreendeu, ao ver o cachorro que chegara primeiro do que aquele outro que descia a ladeira por trás dos arbustos. Ela conhecia aquele cachorro. O seu cão Fiel, que a acompanhara, saltou dentro da agua do rio e o atravessou para ir lamber o outro que acabara de chegar. O cão abanava o rabo em frenesi de alegria por ver o seu companheiro.

O coração de Perpétua, no entanto, se empretejou. Uma imensa nuvem negra se lhe abateu. Ela conhecia aquele cachorro que chegara antes que seu dono. Era o Fiel. Um vira-latas misturado com pequinês. Ela virou-se de costas para quem chegava. Não dava mais tempo de correr e esconder-se. Não tinha tempo para arrumar a carga toda e evadir-se dali.

Os cachorros pararam de se lamber e vieram-lhe ao encontro, depois atravessarem as águas rasas do Flores. O cachorro veio lamber-lhes as mãos, feliz por reconhecer-lhe. Perpétua passou-lhe a mão na cabeça, fazendo-lhe um carinho em retribuição.

De costas para a outra margem do rio, não sabia quem tinha chegado. Se sua mãe, se seu pai, ou se ambos. Ficou parada por alguns minutos, torcendo para que aquele parente se fosse para o porto das Oliveira sem sequer lhe falar uma única palavra. Ouviu, no entanto, o barulho da água sendo rasgada com força por pernas que a atravessavam. Perpétua continuou imóvel. Agora, sabia que era sua mãe que vinha em sua direção... e o sabia pelas passadas nervosas na água. Seu pai seria mais discreto, não faria aquele barulho todo só para atravessar aquele rio raso.

- Sai daqui, miséria! 
 
 Ralhou sua mãe com o cachorro.

O cachorro se afastou e se aquietou a alguns metros, a observar como se estivesse com pena dela.

- Quem diria? Aqui estamos. Muito que bem! Sua infeliz! Eu pensei que nunca mais ia te ver nessa vida, mas tu tá aqui... e viva, né mesmo? 
 
Espraguejou, irritada, sua mãe.

Perpétua continuava cabisbaixa, vendo-a apenas da cintura para baixo. Queria morrer naquele momento. Era uma sensação mil vezes pior do que o dia em aquela mulher a humilhara ante as Oliveira. Não achava forças nem coragem para levantar a cabeça e olhar sua mãe nas fuças.

Continuou imóvel, sentada no tronco do qual fizera tábua de lavar roupa. A garganta secara e parecia que havia engolido um punhado de terra seca ou uma mão cheia de farinha-de-puba, sem antes umidecê-la com a saliva. A respiração não lhe obedecia e o coração batia descompassado.

- Tu fugiu com aquele assassino, não foi? Sua desavergonhada! Pensa que eu achei ruim? Achei foi bom!
 
 Disse sua mãe, demonstrando júbilo e alívio, enquanto batia forte no peito.

- Só não pensei que tu tivesse tanta coragem. Sempre te achei uma pomba morta, uma lerda, uma lesada.
 
Continuou sua mãe.

Ela continuava paralisada, sem nada dizer. Seu juízo agora lhe trazia a sensação de desmaio. Sua cabeça parecia rodar.

Perpétua resignou-se e se empertigou. Respirou fundo e buscou forças onde não tinha. Levantou a cabeça com dificuldade. Viu ódio e satisfação na cara de sua mãe.

Tentou a todo custo não demonstrar o seu pavor e nervosismo.

- Continue. Fale tudo o que tem a dizer!
 
Conseguiu falar a trêmula Perpétua.

- Você sempre me foi um fardo, sua lazarenta! Eu nunca te quis. Sempre te reneguei desde o momento em percebi que tava buchuda de ti. Tomei todo tipo de beberagem venenosa para te expulsar de minha barriga. Queria, com todas as minhas forças, que tu tivesse nascido morta. Quando tu nasceu, nem parteira eu procurei. Eu mesma quebrei o cordão com as mãos. Nunca te amamentei. Tua papa era de água com pó de banana seca com água e açúcar. Nem araruta eu quis te dar. Era muito trabalho ter de plantar para te fazer um gomoso diferente. Eu te tive de pé, se quer saber. Nem me deitar me deitei pra te ter. Tua cabeça bateu no chão quando te expeli. Desejei que tu morresse. Mesmo assim tu não morreu.
 
Bradava-lhe sua mãe, aos berros e com os punhos fechados.

- E por que mesmo, Dona Nilde? 
 
Perguntou Perpétua, estarrecida com o que ouvia.

- Pensa que é filha de teu pai? Não é não! O Nonato é que era teu pai - continuou sua mãe.

- Nonato? 
 
Perguntou-se Perpétua, intimamente. 
 
- Nonato? Será? 
 
A única pessoa que sabia chamar-se Nonato era o finado marido da viúva Carosina. Perguntou-se ela, sem deixar que sua mãe percebesse as perguntas que se fazia.

- Isso mesmo! Aquele cão sarnento do finado marido da Carosina me enganou. Me ludibriou, me iludiu e me desvirginou, dizendo que me daria mundos e fundos, mas quando ficou sabendo que eu tava buchuda de ti, me procurou e me disse que ia me matar se tu nascesse. Bem que eu tentei, mas tu insistia em crescer na minha barriga.
 
Gritava sua mãe, agora curvada e a dois palmos do seu ouvido.

Perpétua desejou ter forças e coragem para partir para cima de sua mãe e matá-la, ali mesmo. Foi contida, porém, por um lampejo de razão. Se assim procedesse, jamais saberia o resto da sua história. Ademais, não mataria mesmo, por mais que a estivesse odiando, naquele momento infeliz.

- Quem matou o Nonato foi teu pai. Quer dizer, aquele que tu pensava que era teu pai. O Nonato se aproveitou que estávamos trabalhando na roça dele e quis me matar. Foi quando fui salva pelo teu pai, que matou o miserável a facãozadas. Fugi com teu pai no mesmo instante e fomos parar naquele torrão de terra seco dos infernos. Nunca mais passei nem perto da fazendo da viúva.
 
Esclareceu sua mãe.

A cabeça de Perpétua estava com um torvelinho. Agora, porém, tudo lhe fazia sentido. O desprezo da sua sua mãe por toda a sua vida. Morarem naquele lugar seco e longe de tudo. Tudo parecia fazer sentido.

- Você é a culpada de tudo, sua infeliz! 
 
Decretou sua mãe, agarrando-a pelo cabelo e levantando a sua cabeça.

Os braços de Perpétua continuavam imóveis. Ela se mantinha passiva. Agora, não tinha a menor vontade de defender-se.

- Tomara que você morra de vez!
 
Gritou sua mãe por entre os dentes cerrados e soltando-a com desprezo.

Nada mais foi dito. Ela permaneceu sentada sobre o tronco, enquanto Enilde atravessou o rio para a outra margem. Um imenso grito se acumulava em seu peito. Uma quantidade tão grande de revolta que parecia que ela iria explodir. Ela fez um esforço descomunal para se conter. Não queria que sua mãe lhe ouvisse em prantos. A cabeça se curvou e o queixo chegou a tocar-lhe o colo. Lágrimas jorravam de seus olhos e o peito resfolegava. Fez concha com as mãos, colheu as águas do Flores e as levou ao rosto para lavar as lágrimas que lhe corriam.

Ela não conseguia mais bater a roupa. Apenas as enxaguou rapidamente e foi botar a cangalha no jumento. Nunca teve tanta dificuldade de colocá-la nas costas do jumento. Olhou, então, para o outro lado do Flores e percebeu que sua mãe não se encontrava mais ali. Sentiu-se aliviada. O segundo cachorro, Fiel, ali permaneceu abanando o rabo. Ela passou a mão na cabeça do cão e ele se deitou de barriga para cima, mexendo as patas no ar, alheio ao que ali se passara.

O sol já ia alto quando ela subiu a ladeira e deixou o Flores para trás. Nada pescou, sequer pôs algum mingongo como isca no anzol do caniço. Queria ir embora dali. Apenas isso. O coração estava pesado e lhe enchia o peito num incômodo descomunal. Já não mais chorava. Os cachorros a seguiam, latindo de vez em quando.

Ela já se encontrava próxima da sua casa, passando ao lado das terras da viúva Carosina. Podia sentir uma energia ruim. Um bafo de receios e pressentimentos. Estava próxima demais da viúva afamada pela maldade e pela mesquinharia. Jamais a vira. Talvez jamais a veria. Poucos tiveram tal desventura.

domingo, 24 de abril de 2011

EQUILÍBRIO

EQUILÍBRIO


A bondade consta de não desejar o mal a ninguém. Significa que você deve desejar que seu inimigo ganhe na mega-sena e sozinho. Que ele viva tantos dias quanto os de Matusalém. Que ele seja sempre bem sucedido, mesmo, que às custas da desonestidade. Deve recebê-lo de bom grado dentro de sua casa e fazer-lhe sala. Deve ficar orgulhoso dele participar dos mesmo eventos sociais e, se sua filha se interessar pelo malandro do filho dele, você deve aceitar e, inclusive, dar-lhe a maior força.

É claro que você não concorda com isso, muito menos eu. Mas muita gente pensa exatamente assim. Ouvi demais, quando participei de uma comunidade evangélica na qual descobri ser o pastor um pedófilo, ladrão, dissimulado que, sequer, tinha segundo grau, quanto mais o curso de teologia. Ao desmascará-lo, os irmãos diziam, com benevolência, estarem orando e Deus tomaria de conta dele. Ora, pois entendo eu, sermos nós, muitas vezes, os instrumentos da vontade divina. Que negar-se a ver a tirania explícita e imposta ao mais fraco, tal negação deveria ser pecado mortal. No entanto, temos por ai uma legião deles a explorar o bolso de quem não tem capacidade de fazer qualquer crítica. E ninguém faz nada. é terreno por demais delicado, minado. É religião e não se deve intrometer. Francamente! Sei que muitos nada fazem por pura covardia ou mesmo pelo conforto de não envolver-se. Ou seja, o próximo que se f...!

Tempos atrás prendi o neto que surrupiava a própria avó. Ela recebia uma baita aposentadoria mas estava esclerosada. O bandido deu, de uma tacada só, 16 mil Reais a Igreja. Sim, aquela mesma. Aquela da corrente da rosa amarela, do sal, dos empresários, etc... Nenhum escrúpulo em arrancar o dinheiro daquela velhinha esclerozada. Tanto da parte do neto quanto dos falsos pastores.

Na Índia tem os Janistas. Os adeptos de tal religião andam em cadeiras de rodas, empurrados por gente de casta mais abaixo. Sabe porque? Ele não querem ser responsáveis por matar uma barata, uma formiga ou mesmo, a grama. Os mesmo ainda usam uma mascara cirúrgica no rosto. Assim eles evitam que moscas e mosquitos sejam engolidos por eles num momento de descuido. Justifica-se o receio ante a quantidade de moscas e mosquitos no fétido país. Mas fico pensando que em nosso corpo existem milhões de bactérias, vírus e outros. Toda vez que tomo banho imagino que se vão pelo ralo uma quantidade enorme deles, bem como, quando escovo os dentes, lavo as mãos, etc... A ciência já provou que tais seres são vivos. Portanto... também estão sendo mortos. Excesso de bondade neste caso.

Fico pensando no planeta terra e que somos virus nele. Logo o mataremos, podes crer!

Há o princípio budista que diz que o equilíbrio está no meio. Sim senhor! Todos devemos assumir que, na nossa essência está a bondade e a maldade. Não estaria certo desenvolver uma delas apenas. Nem mal demais, nem bom demais. Entendeu? Ser mal na medida certa. Ser bom na medida certa. Fazer o bem olhando a quem. Sacou? Equilíbrio demais pode ser desequilíbrio.

Aliás, acho linda uma lenda de Buda que conta que ele passou não sei quantos anos debaixo de uma árvore. Naquela posição de todo Buda, posição de yoga. Dizem que ali debaixo daquela árvore ele repetia os mantras, fazia jejum e se concentrava na tentativa de atingir o nirvana. O nirvana, pra quem não sabe, é aquele estado de total equilíbrio, ou seja, um estado paradisíaco em vida. Ele insistia em seu objetivo com muita disciplina e o seu jejum chegou a constar de um único caroço de arroz por dia. Ele ficou tão magro que podia tocar sua coluna com a ponta do dedo ao apertar a própria barriga. Depois de anos e anos insistindo, desistiu sem atingir o seu objetivo, ou seja, o nirvana.

Voltava para casa triste, descrente e decepcionado. Entretanto, quando atravessava uma pequena pinguela no seu caminho de retorno, deparou-se com uma cena que lhe chamou a atenção. Às margens do caudaloso riacho abaixo da pinguela, um mestre ensinava um discípulo a tocar um instrumento de cordas. Quiçá uma cítara, haja vista, naquele tempo ainda não terem inventado o violão. O mestre dizia ao seu discípulo:

- Vamos afinar o instrumento. Não aperte demais a corda, pois ela poderá se romper. Mas não deixe a corda frouxa demais, pois, dessa forma ela não dará som algum.

Ao ouvir tal ensinamento, Buda que ainda não era Buda, mas um reles mortal, se iluminou. Ele entendeu que o equilíbrio que buscara anos a fio em seu sacrifício de jejum e orações, constava tão somente de encontrar o meio. Isso mesmo, o equilíbrio está no meio. Nem tanto aos céus, nem tanto à terra. Bondade demais é desequilíbrio. Assim como maldade demais, da mesma forma. Seca demais o é, chuva demais também. E assim em todos os antagonismos. Foi ali naquela pinguela, ao observar aquela cena, que ele se tornou Buda, o Iluminado.

Apareceu aqui na porta da minha casa, dias atrás, uma senhora enorme e forte, aparentando muito boa saúde. Tinha no máximo uns trinta anos. Se fazia acompanhar de três meninos que deveriam estar no colégio. Ela estava com um saco enorme de mantimentos e interfonava a todos os apartamentos pedindo um quilo de qualquer coisa para alimentar os seus filhos. Quando passava por ela ela me estendeu a mão e fez cara de fome. Me pedia um quilo de arroz ou uns trocados. Eu respondi que nada tinha naquele momento a não ser uma boa trouxa de roupa que, se ela quisesse lavar, eu a recompensaria monetariamente. Ela me olhou de cima a baixo, puta da vida, com as mãos nas cadeiras e batendo um dos pés freneticamente, e me perguntou se teria ela cara de lavadeira. Ficou ofendidíssima, acredita? Claro que eu quis mesmo provocá-la apenas. Mas fiquei ainda mais indignado ao olhar nos prédios da vizinhança e ver outras senhoras de mesma aparência. Enormes sacos de mantimentos já haviam arrecadado. Cada uma se fazia acompanhar de duas ou três crianças remelentas. Em um estacionamento próximo, às escondidas, estava estacionado um veiculo do tipo perua, quase arrastando no chão com tanto peso do que elas arrecadavam.

Nada pode ser feito contra tais criaturas. Seria maldade, entende? Entendo ser maldade não ver as crianças exploradas e, ainda, alimentar esse tipo de máfia. A ingenuidade cega da bondade é que alimenta tal acinte. É a mesma que nos faz dar um trocado ao craqueiro que diz ter guardado o nosso carro. Em seguida ele se dirige ao submundo para comprar a pedra e fumá-la. Detalhe: depois de viciado ele vai arrombar o seu carro, a sua casa, no desespero para satisfazer o seu vício.

São melhores os que sentem a dor da morte ao esmagar uma formiga ou que se levantam contra a injustiça e botam na cadeia os malfeitores de todos os tipos?

Equilibrado é quem sai de "fininho", sem barraco, sem dar escândalo. Ou será que trata-se tal indivíduo de um covarde, um egoísta que não liga se o seu próximo precisava da sua defesa veemente? Agradeço a todos os que se posicionaram ao meu lado quando, em algum momento, sofri alguma injustiça. A inércia ante a injustiça, sua ou do próximo, é algo que me ferve, me causa náuseas.

É verdade que só ladrão de galinhas é que vai pra cadeia. Confesso que já sonhei com a utopia de um grupo de extermínio que, justiceiramente, mataria sem dó muitos corruptos, ladrões do erário público, entre outros tantos.

Confesso: queria mesmo era jogar uma pá de cal na cara de alguns indivíduos quando do seu enterro. Sim, eu sei que posso bater as botas antes deles. Mas isso não muda o fato de que sou capaz das maiores bondades e das piores maldades. E sabe... Sinto-me humano. Humano e apenas isso. Não tenho nenhuma pretensão de ser beatificado mesmo. ão serei um Buda tupiniquim. Não tenho tanta pretensão assim.

CALMA! Falo utopicamente. O justiceiro logo estaria corrompido. Estamos fadados a uma eternidade de mesmice injusta. Creia-me!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O CENTRO VELHO DOS OLIVEIRA

Adicionar legenda
No Centro Velho era todo mundo protestante. Gente branca como ela, porém tinham uma beleza que lhes era própria. A gente de lá era diferente, tinha posses e falava de forma bem pronunciada e usava palavras que jamais ouvira. A pele deles era macia e os olhos eram brilhantes e vívidos. Os cabelos eram bem alinhados pareciam reluzir ao sol. As unhas limpas e aparadas, em pés que não eram rachados e caroçudos como os seus. Os rostos rechonchudos e sem manchas, dos meninos da sua idade, demonstravam que comiam bem.

O rio estava há poucas léguas do lugarejo e, caso a lagoa deles secasse, poderiam saciar a sede, inclusive a dos animais, com facilidade, bastando para isso que se deslocassem até o caudaloso Flores. É verdade que o dito rio não era dos mais abundantes, aliás, secou determinada feita, mas era de boa pescaria e o piau que lá se pescava, assado em folha de bananeira, tinha sabor inigualável. A água era transparente, limpa e muito boa para se beber.
 
Quando sua família ia ao Rio Flores, era obrigada a passar, obrigatoriamente, pelas terras dos Oliveira e, implicitamente, a mendigar o favor de lavar as roupas e pegar a água que lhes faltava, quando o verão secava suas cacimbas.

Bem pertinho da vila que compunha o Centro dos Oliveira, uma Lagoa fornecia água potável ao lugarejo e, no final do dia, os homens para ela se dirigiam. Eles enchiam as latas d’água e iam tomar banho para tirar o suor do dia de labuta. Ninguém entrava na Lagoa, afinal era de lá que tiravam a água para beber. Toda a Lagoa estava cercada devidamente e era assim que se evitava que animais urinassem ou deixassem nela o seu estrume. Por todo o espelho da d’água um imenso manto de mururus a protegia do sol e evitava que evaporasse. A água era fria e escura.

Quando os Oliveira iam botar o tingui nas águas do Flores era uma festa. O tingui é planta venenosa que batida e esmagada era jogada no leito do rio e deixava os peixes embriagados. O povo ficava abaixo e, com cofos, jacás e redes recolhiam o cardume. Naquela época não se falava em crime ambiental.

Foi um dos filhos do Oliveira, o Zaqueu, que chamou o pai de Perpétua para participar do tingui.
Ela jamais saíra do do torrão onde nascera. Os preparativos para a viagem rumo ao Flores começaram no dia anterior e Perpétua, ansiosíssima, passou a imaginar a água do rio que até então não conhecia. Imaginou a nova paisagem que veria ao longo de toda a viagem e as descobertas que faria. Era tão menina que não sabia direito do que se tratava. Não entendia e não lhe fora informado o motivo daquela viagem, mas ouvira os adultos, pai e mãe, enquanto arrumavam o frito, falando do tingui que os Oliveira iriam botar no Flores. Certo é que cada minuto parecia infinito. O dia não acabava. A noite inteira pela frente. Era muito tempo para a ansiosa Perpétua.

A noite de véspera foi longa para ela. A ansiedade não a deixava dormir. O dia não amanhecia. Levantou-se diversas vezes e, na ponta dos pés, foi até a porta do quarto dos pais para ver se já se levantavam. Tentou dormir insistentemente, porém não parava de pensar que dali a pouco estaria vendo os Oliveira, o Rio Flores, a vegetação verde e que brincaria feliz e faceira com os meninos da sua idade. Brincaria de roda e aprenderia cantigas lindas. Iria ser aceita sem distinção e faria uma amiga, uma confidente à qual contaria segredos.


O galo cantou finalmente. Ela pulou da rede e esperou que sua mãe viesse acender o fogão de lenha e preparar o quebra-jejum. Cada minuto parecia-lhe uma eternidade. Se fosse por ela, dispensava o café da manhã e já ia estrada afora. O pai, no entanto, ainda foi arrear o jumento e o irmão foi alimentar os animais no chiqueiro e no galinheiro. Ela ficou abanando freneticamente o fogo que sua mãe acendera. A fumaça subiu e uma labareda apareceu entre a lenha. Pronto! Agora era pôr a panela com a água e quando fervesse, duas colheres de café seriam jogadas. Depois, três colheres de açúcar ou, se este faltasse, umas cinco de rapadura raspada. Depois passar no velho pano de coar. A farinha de puba seria o pão que ela jamais comera, sequer vira.

Saíram todos ainda na madrugada. O sol estava alto quando chegaram às margens do Flores. As famílias dos Oliveira foram chegando. As mulheres desciam suas cargas dos cavalos de ancas gordas e de pelos macios e brilhosos. A roupa suja era tirada dos jacás e cada uma se sentava numa das tábuas já instaladas na beira do rio. A roupa era ensaboada com sabão que elas próprias faziam. Era feito da mesma forma que o de sua mãe, ou seja, com tripas de porco que iam ao fogo e viravam sabão, depois que a soda cáustica era misturada na panela. O sabão daquelas mulheres, entretanto, era cheiroso, branquinho e as barras eram cortadas de forma uniforme. O sabão que sua mãe fazia era cinza, indo para o preto. Os pedaços grandes, tinham tamanhos diferentes e era difícil de segurar para esfregar nas roupas. Além do mais, sentia-se o cheiro claro do fato do porco e da soda cáustica.

Ela achava que tinha chegado no paraíso. Era a primeira vez que entrava em água corrente de rio. O banho em sua casa era de caneca, por trás das bananeiras do quintal. Sentou-se numa tábua de lavar roupas que não estava sendo usada por nenhuma das mulheres e meteu as pernas n’água. A água veio aos poucos por sobre a tábua e lhe molhou as nádegas. A sensação era de carícia. Fechou os olhos e sentiu o cheiro da vegetação, das flores silvestres e do sabão perfumado das mulheres dos Oliveira. Viu abelhas amareladas que colhiam o pólen das flores. Outras, negras e sem ferrão, sobrevoavam os montes de roupas ensaboadas. Com as pernas branquelas a balançar dentro d’água, ficou com o olhar perdido a visualizar a cena.

As mulheres batiam roupa e tagarelavam. Os meninos, de bodoques e baladeiras em punho, se punham a caçar rolinhas, juritis e nambus. Os maiores empunhavam espingardas “por fora” e, de vez em quando, se ouvia o estampido de uma delas a matar uma caça qualquer. As meninas auxiliavam as mães com trouxas de roupa ou cuidavam dos burros, jumentos e cavalos usados na viagem.

Para cima do rio, se ouvia a algazarra do homens a preparar o tingui a ser despejado no rio. As mulheres se apressavam a lavar a roupa para que pudessem ajudar na pescaria que começaria logo.

Perpétua percebeu que a olhavam com curiosidade desmedida e com desprezo. Era menina mirrada e todos a achavam tísica e doente. Pareceu-lhe que tinham receio de que ela lhes transmitisse alguma doença contagiosa. Nenhum dos meninos a chamou para brincar ou para uma conversa curiosa. Nenhuma menina se interessou em cumprimentá-la. Ela, por sua vez, não ousava incomodar ninguém. Seu olhar era fundo e sem brilho. Não era de esboçar emoções e era de pouco sorriso. Falava pouco e não quis explorar nada. Não faria amigos ali, mas ao ver as brincadeiras dos meninos nas margens dos Flores, sentiu inveja deles e, no seu íntimo quis com eles brincar. Não se esquecia dos olhares para si. O olhar era discriminatório ou o de quem olhava para um leproso. Ela se sentia nua ante todos. Queria voltar para casa. Nada mais lhe interessava.

Chegaram a perguntar se era ela tísica ou tuberculosa. Sua mãe respondeu apenas que seu mal era ruindade mesmo. Que era uma “sem futuro“. Que tinha fastio e nada queria comer. Que era assim desde nascença. Desejou, então, que o chão se abrisse e ela sumisse dentro do abismo. Desejou ter ficado em casa.

As mulheres dos Oliveira, coradas e robustas, logo deram o diagnóstico de Perpétua. Era verme, lombriga. Só podia ser. Se nunca tivera impaludismo, se não era dada a comer barro, então eram as lombrigas que estavam a lhe sugar o sangue e a fazer a sua barriga crescer. A barriga de Perpétua estaria cheia de vermes que lhe roubavam as forças e vontades. A seguir, ensinaram beberagens e lavagens às quais sua mãe podia lançar mão e curá-la.

A coitada ficou apavorada ao ouvir sobre uma lavagem intestinal. Por seu ânus seria introduzido o bico de uma bomba plástica cheia de líquido quente. O líquido era para lavar as suas vísceras. Perpétua se imaginou completamente imobilizada por quatro mulheres, cada uma a lhe segurar pernas e braços e, uma quinta, a introduzir-lhe o bico da bomba no ânus, e o líquido sendo injetado.

Sua boca seria tapada para abafar-lhe os gritos. De olhos arregalados e com a vergonha de quem foi pego cometendo o pior dos pecados, Perpétua seria lavada por dentro. Seus excrementos seriam expelidos e as mulheres virariam a cara. Imaginou as caretas de nojo e as mãos sendo levadas ao nariz. Imaginou lombrigas enormes a rastejarem dentro de uma bacia de alumínio que serviria de penico.

Enquanto pensava na cena Perpétua teve vertigens e entrou na água do rio com cuidado, segurando firme na tábua, pois não sabia nadar. Mergulhou e sentiu a água fria a encobrir-lhe a cabeça. Ela ficou ali imersa com respiração presa por alguns segundos e desejou ficar assim até que aquela conversa tivesse acabado. Não queria botar a cabeça fora d’água, nunca mais. Não queria ver ninguém. Não queria ouvir nada.

Ao voltar à tona, ouviu gargalhadas e frases sem nexo. Pensou que riam dela e novamente submergiu. Queria morrer. Queria que a mãe morresse. Arrependeu-se amargamente de ter passado a noite sem dormir, ansiosa por estar ali. Não entendia o desprezo que sua mãe demonstrava. O que a levava a agir daquela forma contra si. Odiou-a com toda a intensidade de sua alma infantil e torceu para que a mãe estivesse apenas querendo a aceitação das Oliveira. Que nunca a obrigasse a tal lavagem. Ficou emergindo e submergindo assim, até que percebeu que todos se arregimentavam para entrar no rio. Começava o tingui.

Todos de cofos nas mãos. As redes de pesca estavam armadas. Os meninos que brincavam nos arredores correram para dentro do rio e, juntamente com os adultos, fizeram uma fileira de uma margem à outra do Flores. O rio não era tão profundo e os homens formados ficaram mais para o meio. As mulheres ficaram do lado de fora a esperar os cofos cheios de peixe. Cardumes inteiros começaram a debater-se ante a barreira de gente. Os cofos já cheios de peixe começaram a ser recebidos pelas mulheres que os despejavam em jacás e já os devolviam. Depois, as redes que se encontravam pouco abaixo foram retiradas, também cheias de peixes bêbados do tingui.

Pouco tempo depois todos estavam a tratar e a salgar os peixes. Tinha pacu, piau cabeça-de-cachorro, piau cabeça-gorda, piabas, traíras, surubins, mandis, carás e cascudos. Estes últimos eram descartados. Ante à tanta fartura, eles não se faziam necessários.

Felizes eram os Oliveira. Tinham o Flores, as roças fartas, cavalos gordos, rebanhos de vacas e pomár de frutas que davam mangas, atas, carambolas, carnaúbas, laranjas, tangerinas tamarindos e muito mais. Tinham casa de farinha e mandioca que chegava a se perder na roça, por não haver necessidade de colhê-la. Perpétua não entendia porque aquela gente dos Oliveira tinha tanto tão fácil, enquanto a sua gente padecia na pobreza total.

Chegou a fantasiar que, quando moça, um dos Oliveira se interessaria por ela e iriam morar às margens do Flores. Seria amada e danaria a falar o que todos queriam ouvir. Nunca seria rejeitada e sua pele adquiriria a maciez das mulheres daquela família. Falaria o que quisesse sem medo. Seria uma Oliveira.

Naquele momento, todavia, só queria ser criança igual a todos os que lá vira, e vira que brincavam de roda e cantavam músicas de melodia agradável. Muitas das quais aprendeu sem que as tivesse cantado, pois na ciranda não brincou com os demais. Viu que os meninos usavam bodoques e estilingues. Alguns poucos, os maiores, usavam espingardas de espoleta e caçavam todo tipo de pássaros e caças.

Tudo nos Oliveira era mais intenso. Até os animais domésticos tinham aspecto melhor. Os cavalos, jumentos e mulas tinham costas largas e boas para se sentar e cavalgar. O pelo dos animais pareciam penteados e brilhavam como se lhes tivessem aplicado gordura de porco. O olhos vivos, arregalados, brilhantes mostravam quão bem alimentados estavam.

Os poucos animais que pertenciam a seus pais eram magros, e nas costas do jumento aparecia o espinhaço, nas laterais, as costelas debaixo da pele sem carne. Era desconfortável sentar naquele espinhaço seco e, o pior, sentia bastante dó do bichinho fraco a carregar mais o seu peso. Ainda tinha as mutucas que insistiam em sugar o sangue do coitado, enquanto ele abanava o rabo desesperado com as ferroadas. Mesmo assim, o danado aproveitava para mastigar sem parar o capim da beira da estrada. Deveria saber o jumento, por instinto, que para onde voltava, uma vez por dia, teria de encarar a bacia de palmas e mascá-las sem vontade.

Ao votarem do Flores e já na casa dos Oliveira, ouviu, encantada, o som mecânico de um rádio jabuti caramelo, postado por sobre um armário petisqueiro, lotado de louças, as quais ficou imaginando para que serviam. Na frente do rádio, várias réguas sobrepostas. Nelas, vários números e pontinhos coloridos. Dois botões amarelos, um de cada lado do rádio, podiam ser girados. Com um se localizava a rádio a ser ouvida, com o outro se aumentava e diminuía o volume.

  À frente da imensa casa do Sr. Oliveira, um imenso pé de pitomba fazia sombra. A pitombeira estava cheia de cachos e um quibano foi enchido de cachos da frutinha travosa. De pouca carne, mas deliciosa ao paladar. O caroço era sempre gêmeo de outro. A casca era facilmente quebrada com os dedos e, na boca, o gosto era meio azedo, meio travoso - uma delícia nas papilas da pobre Perpétua. A pitomba, porém, não era fruta que matasse a fome. Talvez a enganasse. Funcionava melhor para uma merenda ou para comer sem nenhuma pretensão.

Ninguém fumava, como na sua casa, o velho cigarro de palha ou os cachimbos fedidos. Invejava os meninos saudáveis a brincar de roda e a cantar músicas de ciranda, tão agradáveis aos seus ouvidos quanto o cantar do sabiá, que ouvia nas madrugadas, da sua casa.

Jantou sentada no chão, sobre uma esteira de palha de coco babaçu. Comeu peixe assado, arroz com farinha de puba e fava temperada com cheiro-verde. O sabor era diferente e lhe parecia um manjar. Pensou nos vermes e lombrigas de que as mulheres afirmavam sua barriga estava cheia. Um banquete para eles também. Viu os meninos todos, dos Oliveira, a se alimentarem a certa distância com garfos e facas em mãos habilidosas que não lhes deixavam enfiar as pontas do talher nas bochechas. Quis estar entre eles, porém sua timidez e inferioridade a empurraram em direção ao prato de alumínio, entre suas pernas ao chão, e a impediam de levantar os olhos para ver exatamente todo o desprezo que imaginava que demonstravam por si.

Odiou a estada com aquela gente e se arrependeu amargamente da noite que passara sem dormir, ansiosa pra que o dia amanhecesse e pudesse estar na companhia de gente que não fosse sua família. Sentia-se inferiorizada e ridicularizada. Era um trapo imundo e indigno de merecer atenção por parte de quem quer que fosse daquele lugar. Era como portasse uma doença contagiosa e não pudesse se aproximar deles nem brincar com as outras crianças.

terça-feira, 22 de março de 2011

O ANÃO DO CAMINHÃO



Essa semana me dirigia ao trabalho por uma via expressa do Distrito Federal conhecida por Estrutural. Por estar atrasado me permiti dirigir acima da velocidade da via, mesmo sabendo ser essa uma atitude injustificável, quase e sempre. Mas não vai ser você, caro leitor, que vai me criticar nesta hora. Afinal, todos temos telhado de vidro. Quem é que nunca falou ao celular estando ao volante? Qual de nós nunca jogou o farelo do pão pela janela do apartamento abaixo? Quem nunca tirou a meleca do nariz e limpou o dedo na parede? Etc... etc... etc... Portanto, perdoem-me! Pensai nos vossos pecados e perdoai-me como se vós eu fora. (risos).

Pois bem, para piorar, dirigia uma velha viatura, um vw Santana caindo aos pedaços. Estava muito acima dos 100 e pouco abaixo dos 200 por hora quando quase bati a cabeça no teto ante o susto. Uma ensurdecedora buzina que tocava sem parar. Com o coração quase saindo pela boca olhei pelo retrovisor e vi uma carreta gigante logo atrás, colada no velho santana, quase a passar por cima dele. Vi que se tratava de uma baita carreta, gigantesca e assustadora só de ver. Buzinava em altíssimo volume. Pensei que o motorista estava a socorrer alguém ou fugindo de algum caça das forças armadas. Era uma jamanta novíssima e brilhante.

A via Estrutural tem três faixas e eu voava pela faixa da esquerda. A velocidade máxima da citada via sempre foi de 80 km/h. Todos sabemos que caminhões são obrigados a trafegar pela faixa da direita. Mesmo que o motorista quisesse apenas ultrapassar outro veiculo, deveria fazê-lo pela faixa central. A buzina continuava a tocar insistentemente enquanto eu apertava ainda mais o pé para dar-lhe passagem.

Fui para a faixa central e vi aquele imenso caminhão lustroso passando por mim. Eu senti o meu Santana velho desestabilizar por causa do vácuo deixado. A jamanta continuava a buzinar desesperada para os veículos à frente. Os motoristas assustados saiam da faixa e abriam caminho.

Eu não me contive. Voltei para a faixa da esquerda, fiquei logo atrás do gigante. Me senti o Davi ante o Golias. Liguei a sirene, meti o pé no pedal e... uai uai uai uai uai uai uai. O caminhãozão não se fazia de rogado e me ignorava. Quiçá o seu motorista não ouvisse a sirene que era facilmente encoberta pelo volume da sua buzina. Ele insistia em continuar na mesma faixa e na mesma velocidade. Eu já ia pedir reforços quando ele, finalmente, deu seta para a direita e foi parando no acostamento. A descarga do bicho, acoplada junto à cabinona, parecia mais a chaminé de uma usina ceramista que vi em Recife.

Desci de minha viatura fazendo questão de mostrar meu distintivo e minha .40 em aço inox que brilhava com o sol do meio dia. Olhei para cima e pedi que o motorista descesse. Quase não acreditei quando o rapaz abriu a imensa porta. Tratava-se de indivíduo que não passava de 1,60 cm. Pensei que era um anão a serviço de Papai Noel. Eu precisei fazer um esforço imenso para não soltar um gargalhada daquelas.

Eles desceu os degraus com dificuldade. Suas pernas eram curtas e ele ficava tentando achar o degrau abaixo. Fiquei olhando a imensa boleia. Tudo era gigante, desde o banco até os pedais. A marcha era quase o mastro da bandeira nacional. Minha curiosidade era grande, mas, não ousei perguntar com aquelas perninhas conseguiam alcançar os pedais. Não sei como ele alcançava o volante, os pedais, etc...

Já no chão, ele teve de olhar para cima para poder falar comigo. Tremia igual vara verde. Agora eu era o Golias e ele o Davi. De imediato, foi me pedindo desculpas humildemente. Ao verificar a sua Carteira Nacional de Habilitação, notei que ali estavam escritas desde a letra A até a letra E. O moço tava podendo. Talvez pudesse até pilotar um boing.

Eu perguntei se ele sabia o valor da multa por excesso de velocidade. (Veja só quem falava!). Ameacei ligar para a transportadora proprietária da jamanta e denunciá-lo. Ele, muito nervoso, solicitou, humilhado, gaguejando, que não o prejudicasse. Explicou-me que o patrão era, por demais, exigente e que perderia seu emprego, com certeza. Pareceu-me crueldade desnecessária denunciá-lo. Ele havia aprendido a lição. Ademais, se comportou respeitosamente, pediu-me desculpas e garantiu que jamais iria fazer aquilo novamente.

Liberei-o para fazer as entregas de Papai Noel e segui para o trabalho no velho Santana, dessa vez, tanto eu quanto o anão, respeitando o limite de velocidade.

Wanderley Lucena

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O meu Torrão

A poeira naquele torrão de terra era algo com o qual ela já deveria ter se acostumado. Afinal, ali nascera e não conhecia lugar diferente daquele. Com exceção dos dias de raras chuvas, a poeira era uma constante naquela paisagem insólita, assim como o sol que tudo secava e não deixava a horta vingar. Tudo era malnascido, não crescia, pecava. O caruncho atacava as bananeiras e os pés de manga. Dali jamais saíra.

O lugar era para carcarás, para lagartos e animais peçonhentos acostumados a se esconder do sol nas tocas cavadas na ribanceira. A vida existente estava condenada aos espinhos de mandacarus, cactos, tucuns e unhas-de-gato. As árvores eram retorcidas e de verde, muitas vezes, só o pé de pequi.

Ela ficava admirando o pequizeiro por horas. Ele lhe dava sombra e frutos amarelos que eram cozidos junto com o arroz. O fruto tinha de ser mordido com cuidado, pois, dentro do caroço, uma quantidade infinita de espinhos poderiam entrar na língua do apressado e, de tão finos, dificilmente seriam retirados. Perpétua se perguntava de onde aquela árvore buscava água para manter-se verde ante tanta seca. Todo o resto da vegetação era cinzenta. O pequizeiro, além de sempre verde, ainda, produzia frutos.

A água era escassa. A cacimba secava muitas vezes e, por meses a fio, era obrigada a buscar água e encher os potes na lagoa dos Oliveira, lá pra bandas do Centro Velho.

Para adiante de si,  donde o sol nascia, por detrás de sua casa, desde a janela, o que ela via era o horizonte a queimar sob o sol, como se para além existisse apenas o fim do mundo; mesmo porque Perpétua nunca quis ir além dos seus limites. Era longe por demais e sempre lhe disseram que a paisagem para além do horizonte era exatamente igual à que havia visto por toda a vida. Para o outro lado da casa está o Centro Velho.

Para a direita estava a fazenda da viúva Carosina, mulher de poucos amigos e conhecida pela mesquinharia. Dizia-se que era mulher rica por demais e que guardava ouro escondido em potes enterrados no chão, em locais desconhecidos. Não dava nada a ninguém e escorraçava a tiros quem se atrevesse a colher uma manga em sua fazenda. As frutas apodreciam debaixo dos pés. Perpétua não a conhecia e a fazenda ficava a léguas da sua casa.

Para o lado esquerdo, seguia-se por uma estrada pouco mais larga que uma vereda e por onde, raras vezes, passava algum carro de boi. Por esta estrada, a exatas sete léguas, estava o povoado do Clemente. Tratava-se de uma currutela onde seus pais compravam açúcar, sal, soda cáustica e outros gêneros. Quando não tinham dinheiro praticavam o escambo.

A época de derrubar a caatinga, encoivarar os gravetos já queimados, queimar as coivaras, plantar os grãos de arroz, milho, fava, feijão e outros, era-lhe por demais trabalhosa. Não se lembra exatamente da idade em que começou a ajudar o pai e a mãe com aquela labuta. Lembra-se, no entanto, de receber a tarefa de roçar o arroz, extirpando apenas a erva daninha, deixando a moitinha verde e frágil que cresceria e daria pendões, cachos amarelos como o ouro, que seriam, habilidosamente, colhidos por mãos que seguravam uma faca amolada entre os dedos, para cortar o cacho que era jogado no cofo amarrado à cintura. Era a época em que tinha certa fartura e havia algum verde. De resto era seca esturricante.

A roça era plantada quando se aproximava a estação das chuvas. Chamava a atenção a insistência de seus pais em procurar um pedaço de terra, todos os anos, e derrubar a mata, queimar tudo, depois encoivarar e queimar de novo. Tanto trabalho para tão pouca colheita. A melancia era pequena e sem gosto. O arroz plantado, muitas vezes, não era suficiente para abastecer a casa até a próxima estação. O feijão murchava e, não raras vezes, se perdia.

Não havia dúvida, entretanto, que esta era a época em que havia algum verde na paisagem. Tinham algo para se comer. Ela adorava comer as favas úmidas do feijão ainda verde, quando colhidas diretamente da rama. Comia os brotos azedos de cajá que, na época das chuvas, aqui ou ali, se podia achá-los nos tocos do pé que fora cortado. O tucum dava um palmito delicioso, mas, até cortá-lo no meio da moita espinhenta da palmeira, era tarefa difícil e Perpétua não dava conta. Dependia do irmão que, a golpes de facão ou de catana, cortava a toceira espinhenta e limpava o palmito que comiam in natura.

A pesar de tudo, naquele lugar seco existia vida. Muitas delas totalmente adaptadas à seca que podia durar anos. Ali colhia-se a macaúba e dela se fazia o mocororó. A calda daquele coquinho amarelado se soltava depois de ser socada no pilão. Depois era adoçada com raspa de rapadura e enriquecida com a farinha de puba.

A estação da seca durava quase o ano todo. Chovia por cerca de dois meses e, quando os céus eram generosos, três meses. As chuvas, mesmo assim, eram fracas e esparsas. No ano inteiro se colhiam o tucum, a macaúba, o coco babaçu, o mandacaru e a palma. O tucum era colhido com cuidado, dentro da moita espinhenta. O coquinho do tucum podia ser quebrado e comido e a sua castanha branca não era de todo ruim.

O babaçu era a principal fonte de riqueza e era colhido na terra dos Oliveira. Lá havia um coqueiral e lhes era permitida a cata dos cocos que caiam no chão. Os cofos cheios eram despejados nos jacás que o jumento levaria nas costas, subindo a ladeira e, a seguir, o estirão até chegar à sua casa. Muitas vezes, Perpétua acompanhou a mãe a catar o babaçu. Aprendeu, ainda menina, a escanchar no cabo do machado e, com o macete à mão, acertar o babaçu que se abria e mostrava sua amêndoa, com a qual se fazia óleo comestível que substituía a banha do porco, quando esta faltava. Ovo frito em óleo de coco babaçu, servido no velho prato de esmalte, onde já se encontrava o arroz e a fava, era algo que ela muito apreciava.

Tinha a farinha seca e a de puba. A diferença de uma para a outra é grande. Ela sempre preferiu a de puba. Caroçuda e amarelinha. Depois de colocada na boca, tinha-se que esperar os caroços umedecerem com a saliva. Não era para ser mordida. Quem não soubesse da técnica poderia ficar sem um dente ou ficaria entalado com os caroços secos a arranharem a goela, mas era ótima companhia à banana murici, ao cafezinho ralo passado no saco, ao caldo de tatu e a uma nambu assada.

A farinha seca era mais simples, fina e branca. Alguns a preferiam. Ela ficava admirada com a técnica de seu pai ao jogar com a mão a farinha fininha na boca, sem que nada se perdesse no vento. Era questão de pontaria a olhos vendados. A farinha seca era mesmo ótima quando virava angu, no caldo de qualquer cozido. No chambaril, com costela cozida, com galinha e tantos outros.

Engana-se, todavia, quem pensa que havia caldo todo dia, para Perpétua. A galinha só ia para a panela em datas especiais ou quando alguém adoecia. Costela, chambaril... Vixe Maria! Era mais difícil ainda. Só quando seu pai ia ao Clemente, uma vez na vida, e por lá trocava uma dúzia de ovos por meio quilo de osso, quando dava sorte de por lá terem abatido uma vaca magra.

A casa era coberta com palha de coco babaçu e tinha paredes de pau a pique, à custa do barro massapê. O chão era batido e os poucos móveis eram um baú, quatro cadeiras tipo tamborete, cobertos de couro de gado, uma mesa mal talhada, um fogão de lenha, duas forquilhas que seguravam dois potes d’água, a cama velha de seus pais e o velho pilão.

Acima, enganchado nos paus que compunham o teto da choupana, o paiol guardava o arroz ainda sem pilar, o feijão, a farinha de puba, a fava e o milho. O paiol era depósito que logo se esvaziava, depois da colheita da roça, e muitas vezes seu pai foi obrigado a mendigar sementes com os Oliveira, para poder plantar a roça.

Nada vingava direito. O fruto, quando vingava, não era doce. A bagem que segurava os grãos, muitas vezes, era atacada por pragas de gafanhotos, caruncho ou outra praga qualquer. A espiga de milho era pequena e falhada. O caruncho tudo empretejava. O sol logo evaporava a água da chuva e a poeira levantava-se no meio da roça, espalhando-se na palha do arroz e do milho.

Os animais eram magrelos e as crias, quando escapavam da mordida de cobra, eram presas das raposas ou se perdiam no meio da catingueira e nunca mais voltavam. Quando se ia a achá-las já haviam virado carniça, muitas vezes, já carcomida pelos insetos que se alimentavam das carnes depois que os urubus haviam feito sua parte. As pragas de carrapatos, pulgas e pichilingas sugavam tudo o que tinha sangue, inclusive as galinhas.

Tudo estimulava a sua angustia. Pérpetua não falava quase nada. Na sua cabeça, o tormento era constante. As perguntas lhe soavam em alto e bom som. A sua observação era apurada. O futuro seria exatamente igual ou pior que o seu presente, e isto ela sentia na alma. A sua mágoa lhe pesava o coração. Mágoa ante Deus, ante o universo. Não aceitava o fato de ter nascido. Chorava sem que se deixasse perceber.

Nos momentos de maior reflexão, sentia que o ar que lhe entrava narinas a dentro, queimando-lhe o peito oco, como a fumaça do fogão de lenha de sua mãe. O ato de inspirar e expirar o ar chegava-lhe ao ouvido, ressonando alto.

Havia noites em que, no terreiro à frente da sua casa, se deitava no chão, cheio de seixos, de papo pro ar. O contato das pedras a machucavam, na carne das costas, contra as costelas e lhe causavam dor, mas se sentia viva e tocada. Era assim que podia abrir e fechar o olhos ante o firmamento acima de si. Ali ficava observando as estrelas, o Carreirão de São Tiago, a lua de São Jorge e até estrelas cadentes.

O TORRÃO DE TERRA (continuação)

Certa vez, percebeu que uma estrela se movia lenta no céu. Apareceu em um lado do firmamento e seguiu reto para o outro, depois desapareceu. Na outra noite ela a viu novamente. Agora, olhando melhor, via uma outra aqui e acolá. Era difícil de achá-las no meio de milhões de outras, mas, quando as achava, ficava observando por horas a fio até que a estrelinha desaparecesse. Ao perguntar ao pai sobre tal mistério, ouviu que se tratavam de satélites. Nunca tinha ouvido tal palavra e seu pai lhe explicou que eram geringonças que os homens lançavam desde a terra... e mais não sabia ele.

Ante o céu estrelado, permanecia com sua agonia, sua dor, o desgosto pela vida e por tudo que a rodeava. Seus presságios lhe atravessavam a alma como facas incandescentes. Tinha medo do futuro e não suportava seu presente. Sabia que as coisas piorariam para si. Disso tinha certeza. Sabia que estava condenada. Não sabia qual crime cometera ante os homens e qual pecado ante Deus. As lágrimas rolavam pesadas no seu rosto infantil.

A lua, quando cheia, impedia que ela observasse as estrelas, mas a hipnotizava da mesma forma. Ficava imaginando o que seria aquela imensa bola lá no céu. De que se compunha e quem lá moraria. A imagem de São Jorge a matar o dragão nunca a convenceu. Sabia que aquilo era fantasia humana. Queria tocar a lua e achar nela Deus. Iria lhe fazer muitas perguntas e lhe pedir colo. Ia pedir que o tempo voltasse até o momento em que fora gerada. Deus, em gesto magnânimo, impediria que óvulo e espermatozóide se fundissem e ela não seria gerada, jamais estaria ali.

Ela era sensível demais. Mil reflexões se passavam, enquanto observava qualquer cena. Que fosse o observar do firmamento, de uma doninha ou a da miséria em que nascera; sem que esperasse, lá estava na sua mente uma imensa interrogação, que piorava por demais as coisas. Algumas ficavam anos a fio, noite após noite, dia após dia, repetindo-se em sua cachola, sem perceber qualquer resposta. Sentia a alma e o coração inquietos, ante os presságios que lhe advinham.

Tinha dores de estômago terríveis e noites em que não achava o sono. Olheiras se lhe surgiam no rosto e, durante o dia, tinha de encarar todos os seus afazeres. Ninguém a percebia. Nada lhe era perguntado. Ninguém se importava. Ela tinha a nítida impressão de que se sumisse daquela casa, sua ausência não seria sentida tão cedo. Perpétua não reclamava nem pedia ajuda.

Todos já dormiam em suas redes, quando ela voltava para a casa depois de ficar absorta, a olhar o firmamento, a chorar, a pensar e a ter presságios horríveis sobre si mesma. Na sua rede, porém, nada de o sono chegar. Virava de um lado para o outro, pelejava pra dormir, e nada. Na verdade, queria dormir o sonho eterno. Sentia-se só. Era como uma estranha naquela casa, naquela família. Não era uma esquecida, mas uma rejeitada.

Sua mãe fazia questão de demonstrar sua insatisfação para com ela. Por algum motivo desconhecido, ela era odiada por aquela que lhe dera a vida. Seu pai parecia alheio a tudo e era como se ela lhe fosse invisível. O irmão era sarcástico e apenas reproduzia a atitude da mãe. Ele sempre ficava com a melhor parte de tudo. Dava-lhe cascudos, toda vez que ela se recusava a fazer-lhe alguma vontade. Ninguém ia em sua defesa. Jamais teve a piedade de ninguém.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O VIÇO DO LOBO.



Alguma coisa está diferente em mim. A maturidade é sinônimo de equlíbrio. Agora sei o quanto isso é verdadeiro. Não sou nenhum zen-budista. Vez por outra o sangue sobe e quando vejo o barraco está armado. Mas esses momentos estão ficando cada vez mais raros. E acho ótimo. Eu consigo ficar observando a cena, calado, sem reagir à agressão. É ótimo isso porque sinto que não alimento a energia negativa do outro ou o ímpeto da agressão fica totalmente injusto e a pessoa cai no ridículo ante os que observam a cena.

Mas o desapego é outra boa prática que me veio junto com a maturidade. O apego nos faz apaixonar e querer buscar nutrir-nos com o efêmero da presença de quem, muitas vezes, nos detesta. A maioria das pessoas sofre horrores ante a negativa do outro. Quando se espera que alguém reaja exatamente como gostaríamos, é sofrido e chato. Quando voce está desapegado, nada espera. Se a pessoa reage de forma diversa da esperada, sem titubear, partimos para outra. A ação passou e logo virão outras.

Agora, o que me mata é minha ironia. Minha terapeuta me disse que a ironia é usada por pessoas de inteligência acima da média. Ai, ai! Foi ela quem disse isso. Mas, o pior da ironia é quando o outro não a entende. É irritante, estressante e aborrecido. A minha ironia me causa arrilia.

O amor. Esse não chega mais da mesma forma. Chega chegando. Não arrebata. Ele vai se instalando aos poucos. E se o amor é pura paixão, logo percebemos e, desapegamente, deixamos o outro ir-se. Mas quando ele se instala... ahhh!!! É dialogado, paciente, desapegado. Não tomamos posse do outro. Ele continua livre. Mas é por demais prazeiroso perceber que o outro se prende a nós por vontade própria. É prazeiroso perceber que os atrativos da juventude, a viçosidade da carne se esvai, mas, que outras formas de atração aparecem. O equilíbrio, o argumento razoável, o calar-se, o expressar-se com certa eloquência. Olha, acho que hoje chove mais na minha horta do que quando eu tinha meus 20 anos, um corpo lindo e uma cabeça cheia de cáca. Não troco os meus 45 pelos meus 20 nem a pau Juvenal!

Aos 45 uso o mínimo de máscaras possível. Reconheço que elas são essenciais e temos de usá-las em diversas ocasiões. Mas, já não mais me importo com quase nada que pensem ou falem a meu respeito. Tudo fica mais fácil. É verdade que causo impacto por causa de minha autenticidade e excesso de franqueza. Eu tenho de pedir desculpas em vários momentos. É verdade que às vezes não há como arrumar o estrago. Mas, ao contabilizar, percebo que a conta paga é menor do que o da falsidade da máscara desnecessária. Ademais, não suporto fazer sala para uma pessoa achando trata-se de alguém de sangue azul e depois descobrir que se tratava de rampeira.

O que importa é qualidade de vida. Isso acho que consegui. Tenho poucos amigos, mas são verdadeiros. Como bem, visto bem, bebo bem, viajo e... sexo não falta.

QUE A VIDA SEJA PLENA!

sábado, 28 de agosto de 2010

RELICÁRIO



RELICÁRIO

Eu também posso lhe sentir daqui de onde estou
Nós continuaremos ligados por algum tempo
Ouço seu lamento e suas orações me cortam a alma
Estou do seu lado e você ainda pode me sentir
Posso soprar ao seu ouvido e esvoaçar os seus cabelos
Mas não posso impedir que o tempo nos crie novas oportunidades
Não podemos parar o tempo
Temos de seguir adiante
Inevitavelmente nos sentiremos cada vez mais distantes
A intensidade da lembranças diminuirá
A lágrima secará e você se lembrará de mim quando recorrer ao relicário
Ao olhar as nossas fotos, as cartas e a medalha
Todas as promessas se voltarão vivas e pulsantes em seu coração
Neste momento você chorará
Eu também chorarei
O vazio deixado nunca será preenchido totalmente
Ninguém amará você da mesma forma
Mas um dia no universo, sem que esperemos, nos veremos novamente
Toda a intensidade voltará
Como da primeira vez, nossos corações baterão como bumbos
A cores da aurora terão de nos sedar
Nunca mais nos separaremos
Nunca mais...
Nunca...