quinta-feira, 13 de maio de 2010

PERUS, MAÇONS E NAZIREUS


Religião. Sim, senhor! O tema deveria ser ameno e unir os homens num diálogo rico, equilibrado, racional e focado no crescimento espiritual, filosófico, etc... Entretanto, o que vemos são guerras, massacres, genocídios e tantas outras barbaridades entre os que pensam de forma diferente, todos querendo fazer valer o seu deus.

Deus virou uma ótima fonte de renda. Qualquer um se intitula líder espiritual, pastor evangélico, vidente, macumbeiro. Um bando de incautos logo passa a segui-lo e pagar seus dízimos, oferendas, ofertas. Mesmo analfabeto, ex-presidiário, desdentado, falidos, prostitutas, estelionatários... Enfim, qualquer um pode receber o tal “chamado” e arregimentar o número suficiente de fiéis para manter-lhe a sobrevivência ou uma vida de luxos. Tudo depende de boa lábia. Nesse ramo, com raras exceções, quanto menos caráter, mais bem sucedido você será.

Os nomes das tais entidades são um capítulo à parte. As evangélicas merecem um compêndio. Esses dias passei em frente à Igreja Assembléia Ministério de Perus. Fiquei atônito, não entendi nada. Não era possível que o Deus todo poderoso estaria interessado nessas criaturas, os perus. Não que eles não tenham a sua importância ante a natureza. Creio que são tão importantes quando o mico-leão-dourado ou as tartarugas do projeto TAMAR. E todos sabemos o quanto os referidos animais tem conseguido arrecadar da legião de ecológicos país a fora. Porém, que eu saiba, o peru é prato servido como principal nas mesas natalinas. No meu trabalho, uma colega, faz um caldeirão de pescoço de peru semanalmente. Cada caldeirada deve levar uns cem pescoços. Cada pescoço é igual a um peru, certo? Alíás, o sabor exótico do animal não me desce. Portanto, nada contra os tais perus.

Só na caldeirada semanal da minha colega, matou-se cem perus, mas, ao menos que eu saiba, os perus não estão em extinção nem gozam do status das tartarugas do TAMAR ou do Mico-leão-dourado para terem uma multidão a preocupar-se com sua existência. Mas, voltando ao Ministério de Perus. Ainda bem que um colega de trabalho, evangélico, estava comigo e me trouxe a lógica da coisa. É que as igrejas Assembléias têm suas ramificações denominadas Ministérios. Uma se denomina Ministério Madureira e tal se deve ao famoso bairro do Rio de Janeiro. Perus a mesma coisa. Perus nada mais é que um bairro da capital paulista. Agora, e se eu não tivesse o meu amigo para esclarecer?

Fiquei pensando que o peru podia ser até a genitália masculina e que ali se reuniam tarados e taradas para adorar o tal membro, assim como, em alguns cultos pagãos antigos. Mas “DEUS”? Assembléia de Deus? Meus pensamentos eram heréticos e, que bom, não há mais a fogueira para me queimar.

Maradona virou "deus" na Argentina. E aqui eu me recuso a tratá-lo com o "d" maiúsculo. A Igreja Maradonista o adora de joelhos e ele elevar as suas preces. Rezam uma ladainha enfadonha e e idiota. Mas não são poucos os templos da referida igreja no país de "los hermanos". Eu posso imaginar os fiéis entrando em transe depois de usar determinado pó do qual, dizem, seu "deus" é adepto.

Eu não professo nenhuma religião e nem pretendo perder meu tempo com isso. A minha eu a faço por mim mesmo. Busco apenas o equilíbrio e a tolerância. E como é difícil!

Chegou ao meu bureau, dias atrás, um caso interessantíssimo. De início, pensei ser uma bobagem. Depois achei que seria melhor despachá-lo a um dos meus subordinados, porém, com a certeza de que iria ficar no fundo da gaveta, pois, ninguém mais ia levar a sério a briga entre duas igrejas. Qualquer um saberia se tratar de barraco, história sem fim, testemunhas mil, acusações múltiplas, etc...

Ocorre que o tal expediente ainda se encontrava em minha mesa quando compareceu um colega de outro bureau, diga-se, evangélico, acompanhado do Pastor vitimado, me pedindo ajuda na apuração do caso. O Pastor me convenceu e comecei a me interessar pelo caso. Me comprometi a encontrar a pessoa que distribuia em outras comunidades evangélicas e a fiéis mil, um jornaleco apócrifo, anônimo, que dizia ser a igreja deste, coisa do capeta.

O jornaleco informava que o pastor que comigo estava era maçom, bem como, sua igreja. Que haviam símbolos satânicos expostos no altar e outras besteiras. O jornaleco tinha quatro páginas mal impressas. O conteúdo era mais pobre ainda. A leitura era difícil e enfadonha. Fiquei pensando no nível dos que se davam ao trabalho de ler aquilo por prazer.

Comecei ouvindo as testemunhas, pessoas que haviam recebido o jornaleco. Todos afirmavam tê-lo recebido das mãos de um pastor de uma igreja de nome tão esquisito quanto a do Ministério de Perus. Prefiro não citar o nome da dita cuja, mas, a tal comunidade funcionava num “cafofo”, um subsolo de uma padaria, nos cafundós do Setor “O”. Isso mesmo, Setor “O” é nome de um bairro da capital federal, apenas isso. Não fique divagando como eu no caso dos perus.

Essa comunidade era pequena, de poucos membros e alguns deles se organizavam numa debandada para a igreja do Pastor ofendido. A igreja ofendida era enorme, seu culto muito atraente e o Pastor tinha o carisma dos verdadeiros cristãos. Discurso potente e hipnotizante. Já sabia também que o pastor da igrejinha havia dado estudos sobre a falsidade da igreja ofendida e, ali, havia ensinado que o pastor dela era maçom e que usava símbolos satânicos nos seus cultos. Já sabia também que o pastorzinho havia enviado o coitado de um dos seus fiéis na igreja ofendida para tirar as fotos a serem impressas no jornaleco.

Compareceu ao meu bureau, na data marcada, o assecla que tirara as tais fotos. O mesmo compareceu acompanhado de advogado. O tal advogado parecia um pavão de empáfia. Lhe ofereci uma cadeira para sentar-se, porém, o mesmo preferiu ficar em pé, andando de uma lado ao outro da sala me incomodando com o “poc-poc” do seu sapato. Mais interessante ainda era a criatura a ser ouvida. Tratava-se de um “NAZIREU”. Isso mesmo, um nazireu.

Tudo bem. Eu também não sabia o que diabos era isso. Mas o rapaz me explicou que tratava-se de um voto. Que se encontra na Biblia, no livro de Números, capítulo 6, versículos 6 - 21. Peguei minha bíblia logo ali e fui ver do que se tratava. A minha curiosidade se justificava pelo fato de a criatura ali na minha frente ser um típico hipie. Cabelos rastafári enormes e parafinados em cachos empinados que lhe pareciam grandes pregos enfiados na cabeça, já que os cachos não caiam sobre os ombros, mas eram trabalhados de forma a ficarem em pé. A barba lhe descia quase até a altura do peito. Tudo justificado pelo voto do nazireu. Quem faz o voto do nazireu não pode mais cortar o cabelo, a barba, ou qualquer pelo. Pensou na genitália, não é mesmo? Eu também, de imediato.

O rapaz insistia em me tratar de “véi”. Eu o repreendi diversas vezes. Li a ele romanos 13. Trata-se de passagem bíblica que ensina ser toda autoridade instituída por Deus e que todos devem temê-la. A leitura tinha a intenção de fazer o rapazinho me falar a verdade. Não adiantou, pois, mentiu mais que o homem da cobra e negou ser o fotógrafo das imagens impressas no jornaleco e que, sequer, conhecia a igreja dita maçônica. Porém, quando lhe informei que haviam testemunhas que o viram tirando as tais fotos, titubeou e assumiu que estivera na igreja difamada, mas que não tinha máquina fotográfica para fazer as imagens. Perguntei se seu celular tinha câmera e o mesmo respondeu afirmativamente, baixando os olhos para não me encarar.

No dia posterior compareceu o pastor da igrejinha. A estória que ele me contou era tão ingênua que me fez parecer estar com alguém de QI infantil. Disse que o material não era de sua autoria, mas que o mesmo se encontrava em uma “pen drive” de sua propriedade. Que perdera a “pen drive” e que, inclusive, registrara o seu extravio. Ao verificar a data da comunicação do extravio percebi que era posterior ao inicio das minhas investigações. Disse que registrou o extravio por orientação de seu advogado. Em seguida, disse que levara um dos jornalecos a outro pastor para que este o fizesse chegar ao pastor da igreja dita maçônica. Que um bloco de cerca de oitenta jornalecos foi colocado por baixo da porta de sua igrejinha. Que nada tinha contra maçons, maçonaria, satanás etc...

Logo depois, começaram a aparecer outros pastores que receberam o mesmo material de suas mãos. Um deles compareceu à minha sala e foi contundente. Ficara indignado com o conteúdo do panfleto e, quase perdera a compostura quando o pastor difamador, sabedor que este iria ser ouvido, compareceu sua casa e lhe pediu que mentisse quando das suas declarações a mim. Que me dissesse que não recebera de suas mão o jornaleco. Pronto! Agora eu não tinha mais dúvidas. Eu já sabia quem era o autor por trás das difamações. Mas aquele pastor que ali se apresentava como testemunha dos fatos me impressionara. Roupas simples, meio descuidado, mas falava de forma convincente e segura.

Depois de ouvi-lo o liberei, porém, o mesmo disse que não sairia da minha sala até que cumprisse a missão que lhe fora dada por Deus. Vixe! O moço disse que Deus o mandava orar por mim. Meio assustado com a cena vista na minha imaginação, perguntei-lhe se faria aquilo de forma discreta. Imaginei o pastor de joelhos no meio da minha sala, ao gritos, falando alguma língua estranha, sob os olhares arregalados de meus colegas. Ele me disse que o faria de forma discreta e o pedi que me acompanhasse a uma sala ao lado. Pedi que os colegas saíssem. Ele se sentou, pegou em minha mão e fez sua oração, me abençoando no final. Eu não seria grosseiro de dizer um não, ainda mais, a alguém que se dizia enviado por Deus. Prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Eu já tinha a conclusão do meu trabalho quando recebi uma visita do Pastor difamado que me agradecia e me convidava a almoçar em sua casa em data vindoura quando se despedirá do Brasil para morar em Israel. Fez questão de pegar meu email para me mandar notícias de lá e disse que afinal, muito ganhara com a estória toda. Ganhara um amigo. E acho, sinceramente, que o meu novo amigo está entre as raras exceções nesse meio. Tem caráter, parece ser honesto e, pastor bem sucedido.

Nunca defendi que os profissionais religiosos tenham que viver em pobreza, mas, acho, sinceramente, que devem viver da graça divina, em total fé. Que Deus lhes provenha os seus sustentos. O que vejo é o contrário. Arrancam até o último centavo da viúva.

Certo é que nada acontece por acaso. Agora, toda vez que chega um suicida, um drogado pedindo recuperação, um endemoninhado... chamo um dos pastores. Eles oram pela alma da criatura, ajudam-na de todas as formas e cumprem o mandamento cristão e a sua função de resgate.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

TUDO CERTINHO

Não acho que fomos precipitados não
Será que estou?
Não sei
Sim, estou
Mas, sabe...

Já tive pessoas que nada me acrescentaram
e pessoas que me diminuíram
poucos me acrescentaram
falo, amorosamente
hoje, espero alguém que me surpreenda
não quero apenas beleza
mas vida inteligente
sem soberba
sem ganância
mas com ganas de vencer
por seu suor
com minha ajuda se eu puder
ou que me ajude
se puder

Gosto de café feito na hora
dos que sabem amar
gosto de leite caramelado
da boa música
das expressões nas caras dos desconhecidos
Gosto da rotina
de quebrar rotinas
de festas
de ficar só
e acompanhado
de dormir pelado
de casar.

Não gosto de descasar
mediocridades
de quem não sabe amar
mal humor
de quem se acha
preguiçosos

Tudo no seu lugar certinho.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

MORTE BENDITA

Hoje, mais uma vez, me peguei pensando em minha morte. Vejo tantas pessoas contraírem cânceres mortais e morrerem de repente. Acidentes fatais ocorrendo a todo instante. Fico ouvindo as pessoas que eram amigas do morto contando das suas lembranças com o ente que partiu. São tantas as estórias. Todas ressaltando as qualidades do morto quando em vida e os momentos felizes vividos com ele. Todos declarando a dor e perda irreparável. Parece que as pessoas boas morrem mais e geralmente com muito sofrimento ou em desastres. Os maus morrem de velhice mesmo, com algumas exceções.

Fiquei pensando naqueles que morrem e deixam cartas de despedidas. Pensei na mensagem a ser escrita no meu túmulo. Vi epitáfios, túmulos, cruzes, coroas de flores, cortejos fúnebres, mausoléus, gente vestida de preto, óculos escuros gigantes e choro, muito choro e dor.

Há os que desejam ser cremados e as cinzas jogadas nas águas de um rio ou lago. A mãe de um amigo pediu para ser cremada e jogada no Gangis. O viúvo guarda as cinzas numa urna até hoje. Nunca pode ir à India. Mas há os que nada desejam para além túmulo. Os que não querem morrer de jeito nenhum e a simples idéia da morte batendo á suas portas os deixa estarrecidos de pavor.

No meu velório, se pudesse, pediria que colocassem músicas alegres. Que se servisse uma bebida boa, biscoitos, café bom, geléias finas e tanta coisa mais. Que as pessoas dançassem. Deixaria um rol de convidados especiais. Deixaria um rol de “personas non gratas“, impedidas de desfrutar da festa. Pediria para ser cremado e que minhas cinzas fossem jogadas embaixo de uma árvore frutífera qualquer.

Mas acho que não morrerei tão cedo. E não é que eu seja uma pessoa ruim ou má. Acho mesmo que sou um cara bacana, de bom coração. Sinceramente... não quero mesmo morrer tão cedo. Quero mais é viver, gozar, rir, cantar, correr, sol, lua, mar, futebol, gente, beleza. Mas, é engraçado como a gente vai se acostumando com idéia da morte depois da meia idade, digo, depois dos 40. Não tenho medo dela, da morte. Tenho medo de sofrer. A velhice e os impedimentos que ela nos impõe. Eu fico me imaginando velhinho, sem parente, nem aderente. Sim, porque não tenho filhos e nem os terei. Ademais, eles não são garantia alguma. Vejo filhos jogarem os pais em asilos e nunca mais procurá-los. Vejo idosos abandonados, agredidos e até mortos por aqueles que deveriam cuidar deles. Fico me imaginando todo cagado numa cama, sem forças pra chegar ao banheiro. A ânsia de vômito e o desespero. Pedir pela morte e ela não atender.

Aqui do meu condomínio observo, há anos, uma senhora de idade bem avançada. Ela tem dificuldades para se locomover, suas mãos estão entrevadas e seus dedos deformados por algum tipo de reumatismo. Mora no quarto andar e o prédio não tem elevador. Vez por outra é vista com manchas roxas, negras, pelo rosto que ela tenta esconder com óculos escuros e chapéus. Parece que bateu com o rosto na parede ou algo assim. Ela me disse que era por causa de uma medicação que lhe dilatava os vasos sanguíneos. Eu sei que não é nada disso. Fiquei sabendo que, numa madrugada dessas, os vizinhos foram acordados com seus gritos. A porta teve de ser arrombada e a encontraram se debatendo no chão. Relataram que ela adquirira força fenomenal e não era possível segurá-la e que a mesma gritava coisas desconexas. O Corpo de Bombeiros foi chamado e a conduziram ao hospital. Ela é extremamente reservada e desconfiada. Não quer contato com ninguém, muito menos com parentes. Segundo ela mesma já informou, os tais só querem se aproveitar da sua aposentadoria.

A Cindi, minha cadelinha, me acompanhou por doze anos. Ficou velhinha e não agüentava mais subir as escadas. Respirava com dificuldades e não queria comer. Se comia vomitava em seguida. A levei à clínica e lá fiquei sabendo que o coração, os rins e o fígado iam mal. Que ela não ia mais ficar boa e que precisaria ficar internada. Que, se não morresse, voltaria para casa um pouco melhor e que, pouco tempo depois, iria ter de internar novamente e assim seria até o momento que morreria finalmente. Quanto sofrimento! Eu fiquei triste de saber que ela iria sofrer tanto e decidi sacrificá-la. Fiquei observando ela ali deitada, respirando com dificuldade enquanto a médica achava a sua veia. Deu-lhe uma anestesia e fez a bichinha dormir. Em seguida aplicou outra seringa, dessa vez mortal. Ela parou de respirar e tive de me conter pra não chorar a perda da minha companheira de anos. Eu a enterrei embaixo de uma árvore em um área ecológica da cidade. Mas fiquei pensando sobre a eutanásia. Uma pena que não seja permitida no país. Eu iria declarar em documento assinado e registrado que me fosse praticada quando não mais fosse capaz de me cuidar, de me locomover. Acho uma morte digna. Nada a ver com suicídio. Eu não me suicidaria por nada.

Eu só queria morrer com alguma dignidade. Talvez, sem sofrimento, dormindo. Seria ótimo dormir e não mais acordar. Seria esta uma morte bendita?

segunda-feira, 15 de março de 2010

SILVIO SANTOS X CALDAS NOVAS

Mais uma vez, por motivos maiores, dirigi de Brasília a Caldas Novas no estado de Goiás. Nunca gostei de lá. Mas peguei meu carro, coloquei a Marisa Monte e dirigi por mais de três horas. Logo na entrada da cidade, à esquerda, uma estrutura gigantesca inspirada nos castelos medievais, vende souvenires de todos os tipos. Tem potes de pequi, pedaços de madeira imitando animais em seus ninhos, araras coloridas tão artificiais quanto as flores em madeira. Á frente, bem à frente de quem chega, duas imensas cascatas, também artificiais, caem de pedras gigantescas, enfeitando a entrada de um dos inúmeros clubes termais do balneário. São exatamente iguais as duas cascatas.

Obrigatoriamente virei á direita e procurei a pousada que reservara. Fui instruído por telefone que se localizava a quinhentos metros das tais cascatas, seguindo reto. Desci por uma alameda e dei de cara com um “queijinho”, ou seja, uma rotatória me deixou sem direção. Não localizei a pousada e tive de ser guiado pelo celular pelo pessoal da pousada. Na entrada, o porteiro me saudou com um “noite”.

Uma seriema de metal colorido e calçada com botas humanas amarelas me deu a idéia do restante da minha estada ali. A cama de solteiro nada tinha a ver com a imensa king size que vi nas fotos do site. A imensa floresta tropical não passava de arbustos que ladeavam os paralelepípedos.

Depois de tomar um banho com um sabonete minúsculo e sem espuma, decidi que sairia para jantar. Queria comer bem. Numa praça de espirros de fontes dançantes, vi um casarão com vidros fumê e os garçons bem uniformizados. As mesas bem postas e o ambiente era iluminado agradavelmente. Taças e talheres ricamente colocados sobre toalhas fartas que desciam até o chão. Era ali que eu ia saborear um bom prato.

Decepção total. Um garçom imenso me lembrou o Pavarotti - e não foi por causa da voz. Suando igual uma panela, me trouxe o cardápio. Escolhi uma “galinha da vovó”. Ao molho e com polenta, o cardápio informava ser uma das especiarias da casa, além de prato tradicionalíssimo goiano. Fiz o pedido e comecei a babar enquanto imaginava o sabor. Pedi um chop e me pus a observar a cena na praça. As fontes espirravam num balé frenético. Um rapaz de cabelos rastafári apresentava seu show pirotécnico enquanto outros pintavam em pedaços de papel, paisagens do cosmos com seus jatos de tinta spray. As mulheres peladas da oficina têm mais valor artístico, com certeza. O chop acabou e fiquei um bom tempo tentando fazer com que o garçon percebesse que queria mais um, embora o restaurante estivesse vazio.

Muito tempo depois, me é servido um prato de arroz com pedaços de frango, gueiroba, pequi, etc... nada de molho, nada de polenta. Chamei o garçom e lhe pedi o menu para conferi se eu estava doido ou aquele prato ali não a tal “galinha da vovó”. Confirmado. O prato estava errado. Tive de esperar mais meia hora o prato correto e tomei mais dois chops tentando me acalmar. A “galinha da vovó” chegou e foi colocada à minha frente. Senti um cheiro enorme de camarão. Galinha cheirando a camarão. Fiquei refletindo se aquele era mesmo o sabor do prato servido. Não era só ocheiro que era de camarão, o sabor era todo camarão. Horrível! Chamei o garçom e lhe perguntei se aquilo era daquele jeito mesmo. Ele disse que não e a galinha deveria ter mesmo o sabor de galinha. Se propôs a trocar novamente o prato. Me neguei e renegadamente comi a galinha com sabor de camarão. Ao final, fui convidado a almoçar no dia posterior no dito restaurante. Claro que não. Nunca mais ponho os pés no ambiente, quiçá, em Caldas Novas.

Pela manhã fui saborear o café da manhã da pousada. A propaganda no site mostrava guloseimas, pães finos, geléias de cores variadas, café servido numa porcelana linda sob uma varanda que dava para um jardim tropical enorme com arvores imensas. Encontrei sapos de cerâmica pintados em verde-cana com olhos esbugalhados e lábios pintados em rosa-choque e cílios enormes me lembraram em muito uma drag queen que vi certa vez. Jandaias de madeira, tartarugas de barro terracota, peixes coloridos dependurados pelas paredes e outros apetrechos de cordas cabim. Tudo escolhido por alguém que não tinha a menor noção estética e que pretendia reforçar a cafonice local. Casais em lua-de-mel eram a maioria dos hóspedes. Um rapaz pançudo, usando um short apertado, furado e manchado, num arroubo de romantismo, informa à sua amada que ia “ponhar” o seu café. Definitivamente, era a hora de ir embora. Até porque, um cuco carnavalesco entrava e saia de sua gaiola informando as horas freneticamente.

Logo após o café voltei para casa decidido a assistir o Silvio Santos no domingo. Programa melhor, com certeza.

Wanderley Lucena

Foto: Wanderley Lucena

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A TATUAGEM DO ARANHA


A TATUAGEM DO ARANHA

Depois de anos, me decidi, criei coragem e entrei no Studio de tatoos. Eu escolhi uma enorme, colorida, linda. Uns três meses pesquisando um bom desenho. Algo que fosse marcante, significativo e do qual não me arrependesse jamais.

Achei que seria dolorido, mas nunca imaginei que suaria tanto, que sentiria febre e calafrios no mesmo dia e que se seguiriam por uma semana inteira. Não imaginei que as agulhas eram tão salientes e assustadoras ao serem instaladas no aparelho.

O tatuador, evangélico. Isso mesmo, por mais incoerente que parecesse, aquele moço barbudo e cabelos degringolados, todo tatuado, o tipo maconheiro, era evangélico. E nada tenho contra os maconheiros ou evangélicos. Considera-se “o cara“, “o melhor do planeta“, segundo ele mesmo me informou. Disse-me que falava línguas estranhas quando, em transe, antes do seu dia trabalho, se reunia no mesmo Studio para orar com sua galera. O som foi ligado em bom volume e um rock paulera era o que se ouvia. Decidi registrar tudo em fotos. O tatuador fez pose de roqueiro, botou a língua pra fora, com as mãos fez o sinal do rock e, numa pose só dele, registrou o primeiro momento. A foto registrou a empolgação do tatuador com o motivo do desenho escolhido.

Quando sua mão desceu em direção à batata da minha perna eu espera uma picada de abelha, uma mordida de formiga. Jesus! Lembrei-me de quando meu pai marcava o gado com a sua marca desenhada em ferro que era levada ao fogo e quando estava bem vermelha, fumegando, com a rês amarrada, muito bem presa, queimava-se a pele do animal, geralmente na polpa. A vaca dava coices e esperneava com a dor do ferro quente lhe queimando a camada adiposa. Ouvia-se um chiado da pele queimando e uma fumaça de churrasco evaporava. Quando solta, a rês saia em desabalada carreira, dando coices e balançando a cabeça. A sensação que sentia era a de ferro em brasa queimando minha perna.

A minha dor era tamanha que pedi um maço de papel toalha e mordi com força para não gritar feito uma mulher parindo. Ademais, não dava mais pra voltar atrás. Só pedi a Deus que aquela sessão de tortura acabasse em meia hora no máximo. Eu não podia me mexer, ao contrário, se mexesse, a tatuagem podia desandar, borrar e o resultado poderia ser desastroso e para o resto da vida. Tinha de agüentar até o fim.

Muitas as vezes agarrei o braço de meu amigo, fiel escudeiro, que se ofereceu para assistir à sessão. Ainda bem, eu podia aproveitar para fazer piadas sem graça e pedir-lhe que rezasse. Meus gritos, mesmo presos, podiam ser ouvidos muito além daquela sala. Suava às bicas e sentia calafrios. O tatuador continuava concentradíssimo, num transe sem frenesi. Ansioso, vez por outra, eu pedia para levantar a perna e conseguia ver a tatoo tomando forma, linda e assustadora. Era grande, vermelha e negra.

Duas horas e meia de pura tortura e ele concluiu. Já passara das duas horas da tarde e ele nada comera. Outra tatoo já o aguardava. Ele estava esgotado e disse que iria recusar a próxima, que o cliente teria de entender a remarcação.

Saí da sala como quem acabou de tomar uma besetassil, uma penicilina. Quem já tomou sabe que dói tanto quanto o coice de um jumento. A agulha assusta pela grossura. O líquido amarelado e denso. A dor não é apenas da agulha entrando no músculo, mas também da carne da bunda rasgando para dar espaço ao liquido. Aliás, certa vez me dirigi a um posto de saúde para tomar a bendita. Lá chegando me atendeu uma senhora de certa idade, cara de paraíba. Sim, paraíba tem cara, e você sabe bem qual a cara de um paraiba. Assim como o maranhão, o ceará e todos os demais têm. Eles têm a cabeça chata e enfiada nos ombros, são ancudos e têm sotaque típico. E não falo por preconceito, afinal, sou um deles. Mas a senhora enfermeira paraíba não me causou boa impressão logo de início, e não foi por ser paraibana. A mão era grande demais, a cara era de carranca e o andar de hipopótamo. A dita cuja falava sem parar e avisou:

- Dói mesmo, dói muito. Quem diz que não dói, está mentindo.

Bunda pra cima, constrangedoramente. Não sei se ela também não foi com a minha cara mas deve ter mirado minha nádega enquanto franzia as sobrancelhas. Deve ter levantado a mão em 180 graus, fechado os olhos, descido a injeção com toda a força da mulher paraibana. Deve ter imaginado que estava a quebrar um muro de concreto e que tinha em sua mão uma marreta de alguns quilos. Deve ter pensado que desceria a mão com seu imenso martelo em direção ao bloco de concreto. Me fez sentir a sensação de desmaio. Em seguida, de uma só vez, sem qualquer delicadesa ou preocupação, apertou a injeção. Isso mesmo, de uma tacada só, despejou todo o conteúdo da ampola. Eu mordi a língua para não xingá-la, para não chamá-la de “jumenta". Eu não conseguia me mexer, levantar as calças, me vestir. Fiquei ali, imóvel, esperando que as estrelas desaparecessem. A jumenta ficou falando feito uma arara chumbada. Eu com a bunda pra cima, punhos cerrados, olhos fechados, mordendo o indicador, esperei voltar do inferno. Eu estava desarmado, ainda bem, senão, teria cometido um homicídio. Manquei por uma semana e nunca mais voltei ao posto para tomar sequer um anador.

A dor da tatoo era menor mas havia a sensação de que ela não ia acabar. Um suplício. Tive febre, dor de cabeça, noites seguidas. Seguiu-se uma semana de pomadas, filme de PVC, uma dieta específica e doses diárias de vitamina C para ajudar a sarar.

Mas valeu muito a pena. O resultado superou as expectativas. O tatuador se superou e acho que sabe disso. Olhou orgulhoso o resultado de sua arte. Saí de lá convencido que ele era mesmo “o cara”.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O MORRO DA CRUZ


O MORRO DA CRUZ

Sentada na cangalha dura ela se vai no lombo do jegue. Doía-lhe a bunda magra na dureza dos galhos de catingueira que compunham a cangalha improvisada. Doía na carne de quem via. Doía na espinha, nas costelas e no vazio do jegue feinho. Ela magra tísica no jegue mais magro ainda. Canelas se confundindo com costelas de jegue, se diferenciando apenas pela cor da pele clara. Tudo sabia o quanto doía. Subia e descia ladeira com as patas do animal a tropeçar nas pedras e nas raízes secas. Mordia os lábios. Fechava os olhos.

Antes aquela barriga fosse d’água. Antes morressem, ela e aquele que trazia e que a fazia ter a certeza de um futuro ainda mais miserável que o seu presente, além de ser o responsável por enjôos insuportáveis embora de barriga vazia. Seus pés estavam rachados em carne viva. A barriga lhe tirava o fôlego, a fala, a vontade.

E se morresse? Seria tão bom. O descanso eterno. Queria que morressem juntos, ela e aquele que logo seria um sofredor naquele torrão de fim de mundo. Que alívio seria não nascer. Muitas foram as vezes em que, a pensar, imaginava o quanto a natureza fora injusta por ter-lhe deixado nascer. Tantos nasciam mortos, outros morriam ao nascer, outros eram abortados naturalmente ou não. Nascer era uma sentença que, se pudesse, não imporia a ninguém. Se sentia culpada e o peso da barriga era menor que o de sua consciência.

Aquela viagem não tinha fim. Sua visão à frente era turva pela fraqueza. Via a mesma figura de sempre, raquítica e incapaz, a puxar o jegue pelo cabresto. Ele era o culpado por aquela situação. O odiava em silencio. Sabia que ele a odiava em silencio. Nunca o quis. Ele nunca a quis. A vida os obrigou a estarem juntos naquele inferno. O bafo mal cheiroso, os dentes podres, os cabelos fedorentos do sabão de banha de porco e soda cáustica que ela mesma fazia. Foi com repulsa e ânsia de vômito que o recebeu naquela noite quente e seca. Ele veio e lhe possuiu sobre esteiras de palha. O coito foi rápido, bruto, como tinha de ser. Sentiu-se suja, cheia. Sabia que era tarde. Mas era assim que tinha de ser. Nada podia fazer. Não podia rejeitá-lo simplesmente. A entrega foi muda e resignada. O recebeu dentro de si, resoluta, depois de quase um ano de casamento que só ali se consumava. Se manteve calada, morta, dura. Nenhum afeto, nenhum gesto, nenhum suspiro ou gemido.

Ela nunca o quis, ele nunca a quis. Mas, numa provocação à vida, para desafiar a monotonia daquelas noites abafadas, se casaram sabendo que morreriam se odiando. Entretanto, sabia que ele lhe cuidaria. Ele também o sabia. Só tinham a si.

Ela sempre olhou o morro desde sua casa e nunca imaginou que lhe ultrapassaria os seus limites. Não queria ir além. O morro estava para os fundos de sua casa e era o que se via de mais elevado desde lá da sua janela. O que se via além disso, para todos os lados, era o horizonte, o fim das vistas. Nada que valesse a pena. Olhava o céu e não via qualquer beleza, poesia, nuvens. A única coisa que nele via era o sol escaldante que a tudo queimava e lhe sugava a água do solo, a coragem e a esperança.

Não sabia o que esperava, se menino, se menina ou se ambos. A barriga era imponente como o Morro da Cruz avistado desde seu casebre de palha e pau-a-pique. Nunca ultrapassara os limites do morro, mas, subira até o seu cume uma única vez. Olhou a paisagem abaixo enquanto subia. Desde o ponto mais alto olhou em todas as direções. Para trás esta a sua casa, seu mundo, a aridez, sua vida paupérrima. Adiante, para o outro lado do morro, viu a vista. Era exatamente igual ao que já vira até onde a vista dava. Voltou para casa por caminho diferente daquele ao qual subira, porém, ficou intrigada com o fato de não ter encontrado nenhuma cruz. Não tinha cruz no Morro da Cruz.

A gestação foi difícil desde o momento em que se deitou com ele. Não dormia mais. Pensava na sua vida com a barriga, na criança sem futuro, cheia de lombrigas e nos olhos remelentos e famintos a lhe pedir peito. Ela seca e morta de fome sendo sugada por um fruto pecado. Quando a barriga apareceu ela teve de buscar nova posição para dormir. Gostava de dormir de bruços. As demais posições faziam com que seus ossos lhe imprensassem as poucas carnes, o que lhe era dolorido por demais, encima da esteira sobre o chão batido.

Absorta em seu pesadelo, voltou a si depois de um solavanco do jegue ao trupicar das pernas. Ao ver o precipício à sua direita, lá em baixo, muito longe, na vastidão da caatinga seca, ardendo sob o sol, o imenso pé de tamarindo da roça dos Rocha. Viu a casa caiada da viúva Firmina. Tentou ver sua casa, porém, não conseguiu fixar as pupilas. Olhou o precipício abaixo e desejou que o jegue tropeçasse e a jogasse Morro da Cruz abaixo.

O jegue começou a descer a ladeira íngreme rumando para o pé do morro, lado oposto ao via da sua casa. Nunca havia passado dali. Nunca teve vontade de ir além. Ir para aonde? Fazer o quê? Não. Sua sina era ali. Sabia que estava presa àquele lugar maldito. Na miséria nascera, na miséria morreria. Por aquela mesma vereda voltaria depois que a parteira lhe liberasse.

Eles não iam conseguir chegar a tempo. Aqueles solavancos e retrancas iam fazê-la expulsar antes da hora. Sentia as dores e o líquido já lhe escorria pelas pernas.

Para não cair, segurava firme no cabeçote da cangalha. O jegue parou. Ele estava parado de frente para ela e ao jegue. De início não entendeu nada. Viu o rosto surgindo aos poucos por baixo da aba do chapéu de palha furado. Aquele olhar lhe revelou tudo. A expressão era de quem sentia dor maior que a sua. Graças a Deus! Pensou. O dedo polegar no gatilho da espingarda “por fora” com a qual o marido caçava pebas, avuaçãs, juritis, nambus, cobras e lagartos. O polegar puxou o cão da arma e viu a espoleta dourada.

Ele sempre fora tímido, calado, assim como ela. Sabia que tinham a mesma natureza. Gostava de pensar que eram gêmeos que se odiavam. Sozinhos no mundo eram obrigados a conviverem e se cuidarem. Não sentiu medo. Sentiu gratidão. Nunca achou seria grata a ele por alguma coisa. Mas naquele momento queria abraçá-lo antes da partida. Não percebeu outro senão o mesmo homem que a acompanhara por pouco mais de dois anos e com o qual se deitou uma única vez naquela aridez dos infernos. Mas percebeu-se igual a ele. O tiro seria de misericórdia. Não era a hora para qualquer reflexão, preferia não pensar. Mas seu coração bateu feito um bumbo e sentiu amor. Momento feliz aquele em que descobrira o amor. Sentiu-se verde. Esqueceu todo o sofrimento. Aquele homem a amava. Sim, ele a amava. Amou-o. O momento do coito lhe veio à mente em questão de segundos. Dessa vez não sentia nojo. Em seu delírio desejou entregar-se a ele, dessa vez com desejo e ardor.

Voltou do seu delírio ao ouvi-lo dizer:

- Vou logo após de vocês.

Mais nada foi dito. Viu a espingarda sendo levantada pelos braços franzinos e suados. O olho fazendo a mira. O cano colocado tão próximo da sua cabeça que podia desviá-lo com a mão. Se manteve intacta, agradecida. Olhos abertos esperando ver a pólvora sendo queimada e o chumbo grosso saindo de dentro do cano da velha espingarda. O jegue respirava ofegante e ela torceu para que não atrapalhasse a mira. Ouviu o estampido e se foi.

Conta-se que no velho Morro da Cruz foram encontradas quatro ossadas, três delas com marcas de chumbo nos rostos. Agora existem quatro cruzes no Morro da Cruz. Ninguém em carne sabe exatamente o que ocorreu, mas, todo mundo concorda que o jegue também merecia a sua cruz.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

DOR SEM DÓ




Dor Sem Dó


Ele chora lágrimas
nunca vistas,
não contidas,
escuras,
suas.
Só o seu coração,
a sua lágrima.
Desce quente, rolando...
deixando o caminho quente.
Cai só,
com nariz arrebitado,
sem soluço para acompanhar.
Provocada com dor pela dor sem dó,
com e sem nó.
Só ele sabia o porquê da dor,
da lágrima.
Não queria colo, interferência,
não queria compartilhar.
Só, ele só queria chorar.


W. Lucena

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A MOÇA FEIA DO IORGUT


Eu me aproximei curioso do balcão. O estabelecimento era meio sem graça mas era novo aquele balcão ali. A galeria se impunha e não era de vender qualquer porcaria. Confiei e fui. Uma moça feia veio me atender.

Eu lhe perguntei:

- O que se vende aqui?

Ela me repondeu:

- Iorgut.


Isso mesmo, a moça me respondeu iorgut. Mas não foi iorgut, foi I-O-R-G-U-T. Bem pronunciado assim. Orgulhosamente bem pronunciado. Ocorre que em meus ouvidos aquilo soou como um sino rachado. Ocorre que a vibração daquele sino rachado me causou tal ímpeto que não pude resisti e ousei corrigir a moça feia, haja vista, ser vendedora de IOGURT. Peguei o cardápio e lhe mostrei a palavra escrita: IOGURT. Informei-lhe que o seu R estava na sílaba errada. O tempo fechou na cara da feia. Rugas sisudas entre as sobrancelhas surgiram de repente e vi as suas costas quase que simultaneamente. Eu não me deixei intimidar e lasquei outra pergunta, mesmo que a dita me estivesse de costas.

- Você não gostou de lhe ter corrigido, certo?

A moça virou-se e agora, quase que por entre os dentes, diga-se, feios, me respondeu:

- Não gostei mesmo. É que eu odeio ser corrigida, aliás, eu odeio quem me corrige!

Acredita? Assim mesmo. Foi assim que ela me respondeu. Eu tentei me conter mas não resisti e sorri. Sorri e sorri. A moça virou-me novamente as costas. Eu me retirei sem consumir o seu iorgut.

Afinal a moça não era apenas feia nas fuças. Afinal eu também sou nenhum craque no bom e velho português. Afinal não sou mais nenhum belo. Mas, afinal, onde vamos parar se a moça fala iorgut e ainda é feia? Se a moça fosse bonita, afinal! Mas não, ela era mesmo feia. Sim, porque as moças bonitas podem tudo, essa é a regra. Moças bonitas chegam onde quiserem. Muitas vezes elas nem querem, mas chegam a algum bom lugar. Não importa quão vazias elas sejam. Dão pra quem quiserem. As moças feias, geralmente são decentes e se orgulham de sua virgindade. Depois de casadas, quando casam, ainda anunciam aos quatro ventos: Eu casei virgem! No fundo não passam de bruacas mal amadas, fulas da vida por não terem nascido loiras e com aquela bunda de tanajura e não terem dado mais que paca da mão branca. Paca-da-mão-branca, isso mesmo. Porque? Bem, dizem que as pacas dão muito. Muito mais que as ratas. No entanto se a paca tiver a mão branca, naturalmente branca, meu amigo... Ela dará mais que as demais pacas. Pelo menos é o que dizem. Quem diz? Sei lá!

Acho que a moça feia nunca mais falou iorgut. Nunca experimentei o iorgut da moça feia. Mas passei na frente do balcão algumas vezes. Nunca mais vi a tal moça. Deve ter se demitido ou foi demitida a bem a língua. Será? Certo é que eu agora, toda vez que vou tomar iorgut, me lembro da moça feia.

O CAFÉ DO JACU

Sai com ares de novo rico pela cidade e decidi comer um risoto em um restaurante bacaninha, da moda. Os pratos do estabelecimento levam a assinatura de uma chef famosa e, não sei se por causa disso, o risoto é mesmo uma delícia. A musica é agradável e a mesa é bem posta. Simples, mas, bem posta.

A mesa era baixa, quase na altura do chão mesmo. As poltronas em couro marrom, eram grandes e profundas, de pernas pequenas, nos fazendo ficar com os joelhos nos ombros, quase de cócoras, porém, imponentemente convidativas. O garçom era jovem e esguio e, muito simpático. A musica era boa aos ouvidos e da janela grande de vidro podíamos ver a movimentação na rua e quem entrava e saia do local já que estávamos no andar superior.

Um vinho espanhol bem que podia ser melhor, haja vista, o preço. Uma água com gás intervalava os goles e fui tomado de uma alegria sem sentido, dessas que se vão quando o teor alcoólico baixa. Passageira como toda alegria o é. Não que eu seja infeliz. Não é isso. Sou até bem feliz, mas a alegria não é eterna. A felicidade sim, pode até ser. Mesmo que você não esteja alegre você pode se perceber feliz. A felicidade é algo mais profundo e duradouro. É aquela sensação de está melhor que ontem. É reconhecer que a tristeza é momentânea, como a alegria também. Mas fica aquela certeza do auto-conhecer-se.

O risoto chegou em prato enfeitado sem exageros. Um ramo de verdura por sobre o arroz marrom, quase preto, por causa do funghi, creio eu. O cheiro subiu às narinas e o estômago pediu pressa. Cada colherada foi muito bem saboreada e o palato se inchava quando era lavado com o vinho tinto encorpado.

A conversa estava agradável, de bom nível, porém, falávamos de frugalidades. Acho que melhor do que as frugalidades, só mesmo falar dos outros. Mas não falávamos de ninguém. Mas concordo com quem disse que melhor que falar dos outros, só falar mal dos outros.

Percebi que a cabeça estava meio zonza, mas nada que me tirasse o sentido de direção. Mesmo assim, terminada a refeição e o vinho, decidi pedir ao simpático garçom, um café. Um cafezinho expresso é o meu vício assumido. Não sei se quero outro vício, mas agora que estou na meia idade, a idade do lobo, penso que preciso de emoções mais fortes. Experimentar mais. Ousar mais. Mas não quero me viciar. Não quero ser dominado por uma substancia. Mas não vou me precipitar. Vou aposentar antes.

O garçom me informou que o estabelecimento estava trabalhando com uma nova espécie de café e me perguntou se eu não gostaria de experimentar. Achei fantástica a idéia. Café é o meu fraco e experimentar um café de qualidade naquele momento era ideal para fechar bem aquela agradável noite. Me informou que se tratava da espécie jacu board. Eu heim? Jacu board? Isso mesmo! Jacu board era o nome do café. Pedi logo dois, um para mim e outro para meu amigo. O moço se ausentou para providenciar o tal café e fiquei especulando com meu amigo. Jacu é ave e eu conheço. É pouco menor que uma galinha, mas sabe voar. É comestível. Eu comi muito jacu quando menino. Calma que eu explico. Nasci na roça. Meu pai era caçador. Matava tatu, cotia, viado, nambu, caititu, paca, e muito mais. Naquela época nem se ouvia falar em ecologia. Jacu a gente comia assado, frito, cozido... pra deixar bem claro.

Eu já tinha ouvido falar de uma espécie de café que era comido por uma espécie de esquilo... Australiano? O bicho comia o grão do café e as fezes eram catadas e depois de processados, tinha-se um dos melhores cafés do planeta. Me lembrei vagamente dessas informações e, me lembrei que ouvira também que tratava-se de um café caríssimo. Imaginei que o processo seria o mesmo, porém, o animal a digerir o grão seria o jacu.
Ao retornar com os cafés, solicitei que o garçom me informasse o porquê de tal nome. Ele explicou exatamente o que eu já suspeitava. Era isso mesmo. Em Minas Gerais o jacu come o grão do café e ao digeri-lo, toda a acidez do grão é retirada pelo suco gástrico do papo do bicho. Quando defecados, os grãos são recolhidos e processados. Informou que se tratava de um dos melhores e mais apreciados cafés do país. A ficha começou a cair. Nada que seja tão especial custaria o preço de um expresso normal. Disse que o estabelecimento estava a vender o tal jacu board. Ao me informar o preço do pacote de meio quilo quase caí de costas.

O cafezinho que me descia garganta abaixo me parecia ter o mesmo gosto de um bom expresso, porém, nada além disso. Com sorriso amarelo perguntei qual o valor daquele cafezinho que tomávamos. Jesus! Não podia imaginar que uma xícara de cafezinho pudesse valer tanto quanto ouro. Mas já era tarde. Eu já estava com a xícara quase vazia. Mantive a pose e disfarcei o meu embaraço. Fui para casa satisfeito. Paguei, mesmo que no cartão de crédito, o café jacu board. Não é todo dia que se toma café de merda de jacu.

Wanderley Lucena