domingo, 7 de abril de 2019

Cegueira Feliz

Assim que terminei de subir a velha ladeira, já a dobrar no beco de casinhas rebocadas e mal pintadas, de janelas tortas, lá no fim dele, ela me acenou e caminhei rápido já que lá embaixo, olhares furtivos e curiosos me miravam a buscar motivos para a boa fofoca.

A casinha era das mais humildes daquele beco pobre e estava recuada e protegida por uma cerca de madeiras irregulares. Era caprichosa a humilde anfitriã. O teto do casebre era baixo e tinha sido improvisado com velhas telhas de amianto e, nas paredes constavam alguns remendos de  tábuas em compensado encardido. Mas estava limpinha e arrumada para receber visita.

Sentado em falso num tamborete de madeira fiquei a olhar porta á fora as flores aleatórias de onze-horas, de bem-me-queres e margaridas que nasciam sem vergonha no pequeno terreiro em frente. O chão estava ainda com as mascas da vassoura riscadas no chão.  Estava a fazer muito calor e ela vestia um vestidinho estampado em flores minusculas e calçava só umas havaianas velhas e zeladas caprichosamente. O cheiro do café era de pó barato e foi servido em copo americano mesmo.  E, de todo, não estava de sabor ruim. Ela não demonstrava qualquer acanhamento e parecia resignada e ereta como quem se recusava a ver a realidade. A velha máquina de costura servia para unir os milhares de pedaços de tecidos doados por alguma ONG e com os quais fazia tapetes coloridos com muito esmero e que fez questão de me presentear com um.

Era educada e falava em bom português. Era morena quase branca e cabelos meio encaracolados e num coque de evangélica que não era. Havia rigidez de valores em seu caráter e isso se percebia ante seus posicionamentos relacionados à vida. A vida a impunha aquela pobreza, talvez por algum castigo divino. E se a divindade castiga alguém, não sei e duvido. Mas, a vida lhe obrigara aquela realidade e ela parecia saber que era o momento zero de onde pior não poderia fica e que era apenas um momento. Não reclamava de nada a pobre mulher.

Quando voltei a casinha estava já de paredes de tijolo e toda rebocada, mas ainda sem pintura e isso deixava tudo marrom triste. No lugar da cerca agora um muro baixo que lhe dava até certo encanto e poesia. As flores pareciam multiplicadas e agora tinham também vasinhos em terracotas com crisântemos, rosas, marias-sem-vergonha e cravos. Ela continuava limpíssima e a usar a mesma sandalinha surrada, mas muito limpinha. E pegou o par que lhe levei e apertou forte nos peitos enquanto abria sorriso de orelha a orelha como se tivesse recebido uma barra de ouro. Estava mais magra, entretanto a pele e os olhos estavam mais brilhantes. A cara era de saúde e felicidade. Ela, como sempre, de nada me reclamou todas as vezes que lhe visitei e aceitava minha ajuda de bom grado e repetia feliz - amanhã vou comer carne. 

Hoje a casinha tem tom esverdeado triste e ela contraiu diabetes e ficou cega. Faz-lhe companhia o velho e fiel cão a quem chama de Moisés.

- E Moisés lá  é nome de cachorro? - perguntei eu em tom de brincadeira.

Alem do cão fiel, diz ela, faz-lhe companhia os anjos que a protegem e, segundo ela, não são poucos. A casa continua limpa e além das flores agora tem a chão coberto de pedrinhas brancas lavadas que combinam com seu sorriso largo, de orelha a orelha. Continua pobrezinha e a receber minha ajuda aqui e ali. De nada reclama, sequer da cegueira. E desde aqui fico ouvi-la dizer: Oba! Amanhã vai ter carne!


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