sexta-feira, 24 de março de 2017

A Lavadeira

A menina feia e remelenta, toda lambuzada de catarro, brincava com a boneca sem braços enquanto a mãe lavava mais uma trouxa de roupa de alguma madame das redondezas. Era visível a pressa da mulher que batia a roupa na tábua à beira do rio. Ao lado dela mais duas trouxas, enormes, aguardavam as suas mão ligeiras. Bacias grandes de alumínio enormes estavam com várias peças no molho de sabão. Outras várias peças quaravam ao sol a amolecer a sujeira mais impregnada. O sabão em barra a mulher mesmo era quem o fazia à partir de fato de porco e soda cáustica. Era um bom sabão que ela sabia fazer como sua mãe lhe ensinara. Cortava pedaços enormes e irregulares que quase não cabiam na mão. O sabão tinha cor quase branca que contrastava com suas mãos morenas, quase negras. Batia as peças mais pesadas com as duas mãos. O tecido molhado batia na tábua e, de novo e com força, em movimentos circulares e rapidos para trás e puxado em direção à tábua, passando por sobre sua cabeça e batia sobre a tábua repetidas vezes. O som da roupa molhada a bater na tábua era lindo. A menina nem tinha a percepção do catarro que lhe descia pelo nariz e lhe chegava à boca quando chupava o velho pipo amarrotado. Borboletas amarelas, aos montões, aos milhares pousavam e levantavam vôo numa poça d'água bem ali adiante. As libélulas faziam um balé ao tocarem as águas do rio num remanso ao lado e pousavam nos juncos do rio a observar a cena da mulher lavadeira. As piabas em cardume roçavam as pernas e lhe pareciam querer fazer carinho. Uma abelha negra e sem ferrão insistia em querer assentar sobre sua cabeça e a se desviar dos tapas que ela lhe tentava acertar. As lavadeiras, passarinhos lindos em branco e preto, bicavam entre as pedras. Diz a lenda que tais passarinhos lavaram as roupas de Jesus. Claro que é só uma lenda, mas não sei se por ela, tais passarinhos trazem qualquer aura, qualquer energia de paz e de amor inexplicáveis. Voavam com muita destreza e riscavam o espelho d'água do rio. A menina sentada ali sobre as rudias de panos grossos e velhos ficava a observar as lavadeiras e esquecia de sua mãe lavadeira. Um belo espetáculo ao qual  as duas percebiam de maneira e intensidade bem diferentes. A mula pastava ali por perto amarrada por um longo cabresto. O sol já ia longe quando ela pôs a menina no meio da cangalha que segurava os dois jacás pesados com a roupa molhada. A menina já estava asseada e com o velho pipo na boca. A mulher pobre sabia da sua dignidade e contava com a ajuda dos Céus, de Deus, para uma guinada em sua vida. Lá no fundo do seu coração aflito sabia, a vida lhe sorriria um dia. A menina cambaleava no lombo da velha mula. Levariam umas duas horas até chegarem em casa. A mulher, pra piorar, ainda levava com destreza, uma bacia grande de alumínio na cabeça cheia de murtas que abundavam à beira do rio. O marido as aguardava na porteira quando o sol já se escondia. A menina, já nos braços do pai, quase desmaiada de tanto sono, foi levada para rede atada bem baixo, quase arrastando ao chão. Caso ela caísse não se machucaria. Tudo agora estava bem, estavam protegidos pelo teto de palha de côco babaçu e pelas paredes de taipa. O cachorro dava as boas vindas à lavadeira e lhe abanava o rabo e lhe lambia os pés. Dormiu sob céu estrelado sem poder admirá-lo. O sono lhe veio e ela, que nem pedra, adormeceu. E a menina que agora já nem era mais feia não podia se dá conta que, logo mais a frente, um dia, sem que a sorte lhe sorrisse, também seria lavadeira.

Wanderley Lucena

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