quinta-feira, 19 de maio de 2016

As Orelhas de Clarice

A fazer orelhas na Clarice, a Lispector. Ocorre que o único marcador de livros, aquela papeleta à qual marcamos a página para voltar à leitura posteriormente e que era facilmente encontrada em qualquer livraria e que, inclusive, era brinde distribuído até à quem nada comprasse e que, agora, já não mais se ver, virou produto escasso mesmo à quem queira comprar. Quero crer que a crise leva à esse extremo.  E quem sofre as consequências, ao menos nesse momento, é a Clarice. Sou obrigado a dobrar os cantos superiores das páginas, ou "fazer orelhas". É livro de tamanho robusto e de leitura despretensiosa e sem pressa para acabar. Levo-o debaixo do braço para tudo que é lugar, para cima e para baixo, no metrô, no ônibus, à pé, de bicicleta. Faça chuva ou faça sol. E confesso que sinto certo receio de esquecê-la numa mesa de um café qualquer, na cesta da bicicleta. E já a esqueci algumas vezes, porém, volto correndo, desesperado para achá-la onde a esqueci. Até agora ela sempre ficou ali, me esperando o retorno. Mas, por ser ela uma dama, sinto-me culpado com meu desleixo. Peço desculpas e prometo: farei um marcador, mesmo que por minhas próprias mãos só para não lhe fazer mais orelhas, Clarice! Mas, mesmo sem fazer as tais dobras a ação do tempo e o manuseio, por mais que fosse cuidadoso, é implacável. O que era bonito, viçoso e vistoso, começa a ficar opaco e amarronzado. Mas, já está guardado numa gaveta especial de minha memória todas as nossas viagens. 

E a Clarice vai ficando velha, assim como eu. Mas, sempre que lhe folheio as páginas sinto certo “frisson”. É que ouso me achar parecido com ela. Sinto minha pele perder o viço e enrugar-se como papel molhado depois que seca. Mas, percebo que a expressão fica mais fácil e que quem ler páginas velha, amarrotadas e enrugadas, geralmente é quem já percebeu que "livro não se julga pela capa". E o livro se sente renovado como um cachorro de rua todo acabrunhado e que depois de adotado, alimentado e limpo mostra toda a sua alegria e pujança. Eu me conheço já um pouco mais e ao ler a Lispector eu também já a conheço. Tornamo-nos íntimos.


Wanderley Lucena

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Quinze Minutos

Busca frenética dentro da pequena bolsa tiracolo. A chave está lá no fundo. Apenas o tato para encontrar a chave que está junto com óculos, carteiras, fio dental, outra chave, agenda, etc... Encontra a chave, finalmente.  Apertado pra ir ao banheiro. Enfia na fechadura. Abre porta. Fecha porta. O shitsu a abanar o rabo e a esperar o carinho. Carinho feito. Caminha dois metros até a cama. Senta na cama. Desata sapatos. Tira meias. Tira sapatos. Tira roupa toda. Vai em direção ao banheiro. Ufa! Que alívio. Pelado como está, vai para a cozinha. Chaleira a coletar água da torneira. Acende a boca do fogão. Põe chaleira no fogo. Abre torneira. Põe sabão na esponja. Lava toda a louça que nem era muita mas que estava ali desde o almoço. Abre armário. Papel coador de café e suporte para sustentá-lo são postos sobre a pia. Fecha armário. Abre geladeira e apanha o depósito de café. Fecha a geladeira. Abre o depósito com o café. Três colheres são postas no coador. Deixa tudo preparado. A água que não ferve. Vai para a sala com pano na mão e tira a poeira aparente da TV e do móvel que a sustenta. Faz a mesma coisa com o computador e com a mesa sob ele. Volta para a frente do fogão. Coador posto no suporte sobre a garrafa térmica. A água fervente é derramada sobre o café e volta para o fogo para manter a temperatura enquanto o coador escorre a primeira leva. Abre armário. Pega os pães. fecha armário. Põe sobre o balcão. Abre geladeira. Pega a manteiga que também vai para o balcão. Fecha geladeira. Chaleira novamente é derramada sobre o coador. Café pronto. Tampa a garrafa. Pega o copo. Pega o adoçante. Três gotas apenas no copo. Copo vai enchendo de café até pouco acima da metade. Liga a TV e assiste filme brasileiro na Seção da Tarde. Vai para o balcão. Pega o pão e corta com a faca de serra. Uma generosa quantidade de manteiga nas fatias do pão. Saboreia o café fresco. Saboreia o pão. Saboreia a manteiga. Come outro pão. Toma bastante café. Vai para o computador e decide escrever... escrever... escrever isto. Tudo em quinze minutos.


Wanderley Lucena

terça-feira, 17 de maio de 2016

O Monstro

E eu aqui a refletir que minhas preocupações na vida, ou a maior parte delas, sempre foram relacionadas a contas a pagar. Mas, sempre me alimentei com a regularidade de, ao menos, três refeições ao dia. O café da manhã era tomado na certeza de que o almoço estaria na mesa e, em seguida, logo mais à noite, um jantar ou ceia que podia ser só um pão com manteiga e café. Mas, algum alimento estaria à mesa. E essa certeza trazia conforto e tempo para poder preocupar-me com outras coisas, inclusive, com as contas às quais, se fiz, as fiz porque as podia.

A fome  é monstro que não morre ante a saciedade da barriga cheia. O monstro dorme enquanto a digestão é feita. Mas, ele sempre virá com boca enorme e dentes afiados logo depois dela. E a certeza de que o monstro virá de maneira feroz e que não outra arma que usar senão alimentá-lo, é apavorante! É mesmo triste e terrível a incerteza da saciedade ante a fome que virá. O monstro que nos matará, com certeza, se não lhe fizermos a oferenda do pão todas as vezes que ele nos ameaçar com sua bocarra.

E concluo com uma triste questão que me é como um enorme chute na boca do meu estômago: Quantos milhares de pessoas no brasil... quantos milhões de pessoas no planeta... nesse exato momento, estão sem saber se comerão, e o que comerão, na próxima refeição e a que custo?  E pior: quantos estão nesse momento exato, buscando e não encontrando, apenas um pão que lhes amenize a dor de um estômago vazio? Deus tenha misericórdia de cada um de nós e que nunca nos deixe faltar comida na mesa!


Wanderley Lucena

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Amor Condicional

Hoje me senti exalando algum tipo de sentimento, talvez amor, no meio da multidão. Parece que todos podiam perceber o meu sentimento como se sentissem um bom perfume ao qual se precisa cheirar pelo máximo de tempo possível. E percebi pessoas me olhando fixamente como se fora eu algum tipo de pessoa importante. Parece que havia algum magnetismo em mim ou neles. Ao mesmo tempo que me olhavam eu também os olhava. 

Eu me arrumei como sempre e não estava com nenhuma melancia na cabeça. Eu vestia uma bermuda e uma polo acompanhados de um tênis qualquer. Tinha também os óculos espelhados que trazem algum charme, não vou negar. Mas, senti que o que fazia as pessoas  me olharem de alguma maneira que chegou a convencer de certo incômodo. Mas pensei: hoje amo a todos indistintamente e na mesma medida que eles também. Ledo engano!

Já no metrô pedi licença à uma moça feia para sentar ao seu lado. Ela olhou-me fixamente com olhar de doida que me incomodou. Sentei-me ao seu lado e percebi seu braço roçando o meu. Senti como se um mandacaru estivesse a me fazer algum carinho e a me seduzir. Recolhi meu braço de supetão e me diminui o suficiente para que se formasse um muro entre eu e ela. Ela se mexia e respirava alto. Eu grudei meu olhar num cartaz do outro lado do vagão e que tinha alguma coisa escrita mas que não a li. Levantei-me, aliviado, para descer na próxima estação. Susto ao perceber que ela se levantou junto. Pensei: joguei pedra na cruz? Fui para uma porta diferente da que ela sairia e desci sem olhar para os lados. Não a vi mais.

Amor é sentimento que, por causa de nossa humanidade, não se distribui a quem não o desejamos. É uma limitação minha e de muitos. Quem perde tal limitação ganha a santidade. E como eu queria ter essa predisposição para a santidade! Mas, não a tenho. Acho também que no reator da atração termina-se por atrair todos os tipos, inclusive, os inconvenientes. Voltei para casa meio frustrado de saber que meu amor é condicional.

Wanderley Lucena

Escadas Rolantes

A larga e alta escada de granito estava ladeada por duas outras, só que rolantes. As rolantes, tanto a que descia quanto a que subia, estavam lotadas de gente de todas as idades. Solitário subia pela larga a escada de granito aquele senhorzinho fidalgo, magro e ligeiro. Chegou ao ápice antes daqueles que ficaram parados na rolante a subir confortavelmente enquanto liam seus celulares, fugidos à tudo ao derredor.

Nas escadas rolantes os semblantes eram preguiçosos e alguns indivíduos “cheinhos” ou gordos mórbidos. Havia qualquer coisa de mal humor em quase todos. Havia, ainda, qualquer desalinho de quem saiu de casa sem se dar ao trabalho de uma toalete bem elaborada e digna dos mais preciosistas. As roupas eram desalinhadas e até sujas. Ficavam ali paradas na escada que subia automaticamente e, algumas delas, de tão distraídas, tropeçavam ao fim dela.

O Senhorzinho subiu, rapidamente as dezenas de degraus e chegou ao topo antes de qualquer outro que estavam nas rolantes. Aquele sexagenário estava com toda a vitalidade da vida estampada em sua cara alegre e altiva. Os músculos lhe respondiam ao anseio da vida e dos que não se rendem às facilidades e confortos que em nada contribuem para a boa saúde, mas, servem para engordar os indivíduos e a trazer tantas doenças derivadas do ostracismo. Ele subiu mais um vão de escadas e desapareceu em meio à paisagem. Se foi e me deixou a cena bem vivida.

Eu que já era adepto de subir escadas por saber o bem que faz, desde essa cena, só piso numa escada rolante se com muita pressa e, mesmo assim, a escada rola enquanto eu a subo degrau por degrau e com as minhas próprias pernas. 

Na vida quem muito anda chega ao longe, diz o ditado. E eu que tanto quero fazer o "caminho" mesmo que o de Santiado de Compostela, já estou a treinar-me. E não se esqueça que, como diz a frase postada num dado momento desse camminho: "Camiñante, el camino de hace al andar".


Wanderley Lucena