quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O Cão Imaginário e os Ensacolados

A locomover-me à pé pelo Setor Comercial Sul, local bastante movimentado, principalmente na hora do almoço na capital federal e em companhia de meu grande amigo Beto, decidimos almoçar por ali, num restaurante de comida de sabor incrível. Meu amigo tem gosto apurado e o restaurante gostoso nem era tão caro. Mas, ao dirigir-nos desde o seu trabalho até o restaurante, um trajeto de não mais que 100 metros, duas cenas inéditas me chamaram a atenção.

Senti cheiro de marijuana e vi rapazes e moças sentados no chão, em rodas, aos montes, a fumar a erva já quase legalizada, ante todos que por ali passavam. Tinha muito mais cena a acontecer e que eu não dei conta de apreender e aqui postar. Mas, meu amigo chamou-me a atenção, sabedor que tudo aquilo era-me material de escrita para publicação neste blog.

Mas, o que me chamou a atenção mesmo foi um indivíduo com cabelo amarrado sobre a cabeça, no estilo lutador de sumô, com uma fita vermelho intenso de uns quase seis metros de comprimento amarrada no antebraço e um conjunto de favas de não sei o que, amarrada na ponta que se arrastava ao chão como se conduzisse ele um cão de estimação. A fita vermelha devia ser de seda e as favas eram de alguma árvore nativa do cerrado. Paramos, eu e meu amigo, e ficamos a observar a cena enquanto o moço nos passava. De andar empertigado, olhar no horizonte, altivo, puxava as favas que faziam um barulho como que de um instrumento de percussão. Não sei se nos percebeu a mirar-lhe, mas, de tão excêntrico, devia sentir-se artista a impor seu comportamento. Ou seria algum louco? Não sei até agora. Mas, se era artista,  ganhou nossa atenção. E é isso que todo artista busca afinal. Gostaria de rever o espetáculo. Voltarei por ali com certeza e espero ver o espetáculo desse artista anônimo.

A outra cena veio a seguir. Causou-me estranheza ver algumas dezenas de pessoas bem vestidas, talvez, executivos que por ali laboravam, com sacolas de papel reciclado enfiadas nas cabeças. As sacolas eram todas exatamente iguais e estavam furadas nos lugares dos olhos e nariz. Eu fiquei curioso. Não sei do que se tratava. Eles andavam para lá e para cá sem nenhuma outra manifestação. Não havia um grito de ordem nem alguém com algum megafone a fazer algum discurso.  Não entendi, assim como o rapaz com visual de lutador de sumô a carregar o cão imaginário por sua rica fita de seda vermelha, se tratava-se de manifestação artística, protesto ou loucura. Quaiquer das opções, gostei do que vi. Senti a pulsação e o frescor da metrópole e sua gente e senti-me parte dela. Voltei para a estação do metrô com alegria e em estado de contemplação.

Wanderley Lucena

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Mar do Francês

Adeus mar do Francês!
Ficas um pouco mais salgado ante minhas lágrimas derramadas 
Lágrimas que agora fazem parte de ti
Guarda-as com carinho e não as percas
Obrigado por teu calor e por teu abraço que me submergiu e ressuscitou tantas vezes
Tuas ondas me abasteceram de energia e donde percebi parte de ti
Mergulhar em tuas águas mornas e cristalinas
Voltar a ser, de novo, feto em placenta
Protegido e envolvido
Eu e tu
Nós apenas
Tu me acolhestes e me ouvistes
Mas, não chores, querido mar
Logo nos encontraremos novamente em tua outra margem
Sei que tuas águas serão frias e que te temerei o contato
Mas, sem dúvida, num dia de muito sol, de novo me envolverás 
Não quero mais deixar-te lágrimas grossas e de dor
Que elas sejam benditas e agradecidas
Adeus meu querido mar!

Wanderley Lucena

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Baldiação

Vendi meu carro e não pretendo comprar outro tão cedo, haja vista, os custos de manutenção altíssimos neste país. A gasolina com preços estratosféricos, por si só, já justificaria minha atitude. Mas, existem os famigerados IPVA, lincenciamentos, etc... E, ainda, pneus, lavagem, estacionamentos, etc... etc...

Hoje, depois de não sei quantos anos a andar de carro, fui pegar um ônibus. Queria chegar até um shopping no centro da cidade, porém, teria que pegar, não um, mas dois ônibus, ou seja, teria que fazer uma "baldiação", na lingua local.

Minha saga começou por volta das 9h quando o sol já está à pino - e aqui o sol está à pino desde muito mais cedo. O sol aqui, às 5h já está nascido e bem alto. Em compesação, `s 17h30min já é noite escura, de meter dedo no olho. A parada do ônibus era marcada apenas por uma placa azul com a figura de um onibus colada num poste torto de iluminação pública. Já suado e incomodado com o calor, tentei me enquadrar à esquálida sombra que me dava o poste. Exercício hercúleo já que sempre me ficava alguma parte do corpo a torrar no sol.

Enfim, uma minivan, atende ao meu aceno. Ao entrar senti como que a baforada de um caldeirão nos infernos. O interior estava abafado e fedorento. As janelas eram pequenas e mal abriam. O transporte público por aqui, seja ele qual for, nunca contará com um ar condicionado. Suando às bicas, recepcionou-me o cobrador. Um verdadeiro vampiro. Tinha ele apenas dois dentes, os caninos. Fiquei com a piada na cabeça: um deve ser pra abrir cerveja e outro, côco.

Pra variar, lotadíssima, a van disparou á toda velocidade fazendo curvas e passando por quebra-molas como se fora um fiapo de areia no chão. Ante o meu deslocamento, o simpático vampiro-cobrador desceu uma espécie de tabuleta-banco pregada na parede de minivan. Havia uma lixeira cheia no piso e a tabuleta desceu sobre ela. O cobrador-vampiro apontou-me, gentilmente, a inusitada cadeira à qual não me fiz de rogado e assentei-me, resignado. Peguei a Clarice debaixo do sovaco e folheei em vão. Os solvancos faziam minha mão subir quase ao teto e em seguida ao piso. Fechei-a e fiquei atento à cena ao meu redor, já sabedor que minhas impressões não seriam as melhores. Mas, desafiador que sou, permaneci a observar.


Vi casinhas humildes e sujas; vi lixo espalhado na rua, nas praias e nas ruas; vi mil ambulantes a vender desde caldo de cana a calcinhas eróticas; vi muito mais. Chegamos na Praça da Cadeia onde se daria a tal "baldiação". A praça sob sol escaldante e poucas árvores, estava tomada por todo o tipo de ambulantes que vendiam as mesmas bugingangas, pra variar. Vi num ônibus que vinha, a placa que indicava o nome do shopping ao qual eu ia e dei sinal. Sentei numa cadeira de plástico amarela sem acochoamento e do lado do corredor e não da janela. Péssima escolha a minha. A última cadeira vazia era, justo, aquela ao meu lado e... uma raínha Momo, imensa, uma jamanta de tão grande, decidiu sentar-se nela. Eu fui expulso de meu assento, ou pelo menos metade de minhas nádegas que ficaram no corredor. A gorda era evangélica e danou a cantar hinos que o capeta teria dificuldades de ouvir. Bravamente, permaneci encostado na sua imensa bunda, pedindo aos deuses que me permitissem o bom senso de não me meter com ela numa discussão qualquer. 

Olhei pela janela lambuzada pela maresia de anos e assisti ao ápice da minha ópera, do meu drama: o Salgadinho. Vi e senti o mal cheiro do esgoto que ele virou. Um rio que já teve águas cristalinas, potáveis e caudalosas e que virou um imenso esgoto à céu aberto. Um cavalo quase explodindo com os  gases da putrefação com um enxame de moscas varejeiras a lhe sobrevoar boiava em suas águas a descer lentamente, levado pela força da correnteza preguiçosa em direção ao mar azul e cristalino do mar de Maceió.  O Salgadinho já foi rio de águas límpidas, cristalinas e potáveis - dizem os locais. Pois, foi ele transformado nessa "coisa" que leva desde sofás velhos e podres a animais mortos variados, inclusive, gente. É o progresso! Diriam alguns. Eu acho que é pura falta de educação e consciência ambiental mesmo.

E as boas impressões deste lugar? Dessa viagem tão curta e tão longa? Tentarei achá-las posteriormente, porém, injustamente, não as contarei. Prefiro a tragédia!

O shopping chegou e eu desci aliviado com a sensação de que aquele era um ônibus fantasma. Depois... voltei para casa de táxi mesmo sabendo da facada que me custaria. Mas, dessa vez sem "baldiação". 

Wanderley Lucena

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Gaveta do Esquecimento

Você tem muita sorte de ter ressuscitado para mim - ou seria azar? - Sou mesmo bastante rancoroso e não estou aqui a me punir por isso. Quando utilizo-me de matar alguém - morte simbólica, por favor, me entenda - o faço depois de perceber ser a única opção ante quem me agride. E ai... adiós muchacho! 

Sei que o perdão deve ser usado com frequência e que a vida fica mais suave quando o rancor não pesa no coração. Mas, percebo que o perdão, ao menos para mim, fica numa gaveta de algum móvel empoeirado no meio de vários outros. E por mais que o busque não me lembro qual a gaveta o pus. Mas, por vezes, até o encontro. Em alguns casos tranco a gaveta e jogo a chave fora.

Mas, evito esse ato extremado de jogar alguém no limbo do esquecimento. São poucas as pessoas ás quais consedero mortas. E é verdade que por vezes eles intentam ressuscitar e, a depender, jogo mais cal sobre o túmulo. Com a idade fui ficando pior para alguns casos e mais complacentes para outros. 

Eu sei que esse papo é brabo, pesado. Mas, não negue! Todos temos nossas mágoas. Tá bom! Tem algumas excessões - talvez, o Dalai Lama. Mas, não sou o Dalai. Bem que eu gostaria, mas, não o sou. Fazer o quê?

Eu acho que perdoar é louvável. Porém, algumas pessoas, mesmo que perdoadas, voltam a reinscidir. E nesses casos não sei perdoar a mim próprio. E ai fico dias, meses, anos a remoer-me. Quando aniquilo o indívíduo sinto-me realizado por ter feito a coisa certa. E durmo em paz depois de ter tomado um vinho para relaxar e - porque não? - comemorar. É beber o sangue o morto, como diz o adágio popular.

Um dia vou fazer uma visita ao Dalai e pedir-lhe que me ajude na busca do perdão. Por enquanto fico com minha peixeira na mão a proteger-me e a proteger-te. Sim, porque eu sou contra qualquer injustiça, inclusive, contra o próximo. E, se preciso for, me manifesto e entro na frente de quem está a ser agredido. Mas, bom mesmo, é viver em paz e sem agressões de quem quer que seja. 


Wanderley Lucena