sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Banguelas de Marechal

A umildade do ambiente, por si só, já era demasiada. Porém, restavam os enfeites de mau gosto de alguma comemoração que de dizia respeito ao outubro rosa. No teto baixo, pregados mau e porcamente, faixas de papel crepom que se cruzavam de um lado ao outro da sala e laços desingonçados roçavam as cabeças e entrelaçavam nos pecoços dos menos baixos que por ali se encontravam. 

Fotos impressas em papel ofício foram coladas ao longo das paredes em alusão à alegria da festividade passada. Um ventildor ajudava a manter a temperatura um pouco mais amena. 

A maioria da clientela era de mulheres. Havia cerva de umas vinte e alguns homens. Quase todos buscavam arrancar algum dente que incomodava. Aqui ninguém gosta de recuperar dentes por meio de obturação. Pra obturar se vai estragar de novo? Para quê manter dente na boca que vai doer depois? Melhor é extrair logo. Quase todos que entravam á sala do consultório saíam com um tufo enorme de algodão na boca a conter o sangramento da extração. 

Crianças melequentas e remelentas disputavam as poucas cadeiras com os adultos, e gritavam, e choravam, e riam, e corriam sem parar. Havia cerca de vinte a serem atendidos antes de mim. Mulheres grávidas ou gordas, simplesmente, e faladeiras, passavam receitas de bolo em altura bem acima do que se estou eu acostumado. As crianças passaram a comer sacos de pipoca industrializada que, certa vez, experimentei e garanto, isopor tem bem mais sabor. A pipoca esparramou-se desleixadamente por todo o salão e um chiqueiro estaria bem mais limpo desde então. As mães em nada se incomodaram e contiuaram sua laquera horrorosa. Vez por outra o dentista mandava sair um ao qual não podia atender por não ter se dado ao trabalho de escovar os dentes antes do atendimento ou por ter enchido as panelas com tais pipocas de isopor.

Levantei da cadeira de plástico branco apenas para pegar água em filtro bem ao meu lado. Quando voltei-me para sentar-me quase sentei-me no colo de uma menina-capeta com um pirulito na boca a alimentar as cáries. Olhei-a com olhar fusilante. Elha me olhou de baixo para cima mas não se intimidou. Ficou ali, sentada, com bunda grudada na cadeira. Olhei para a mãe dela que não esboçou reação. Eu tirei do fundo do peito todo o ar que me restava e a mandei levantar-se da minha cadeira. Ela saiu correndo pela porta do posto com um cachorro a correr atrás dela. Voltou algum tempo depois e sentou-se no colo da desleixada mãe.

Um cachorro vadio insistia em ficar deitado de barriga para cima, displicentemente, a brincar com a dona e a lamber-lhe as enormes rachaduras dos pés ressecados. Ela aceitava a lambeção sem reclamar. Passei quase três horas no posto e o cachorro ficou ali o tempo todo sem que a dona com ele ralhasse. Era o cachorro a lamber-lhe os pés e ela a falar igual uma arara "chumbada". Ao menos três receitas de bolo eu acompanhei, mesmo que sem querer, enquanto as outras a ouviam atentas. Confesso que não me atreverei a experimentar fazer nenhuma das tais receitas ante as lembranças infernais que podem vir a torturar-me. 

Um rapaz entrou com a cara que mais parecia uma meia-lua. Não questionei os motivos de tantos ferimentos e machucaduras. Pensei ter sido um acidente de moto ou uma briga comum entre os vizinhos daqui. O braço direito estava devidamente imobilizado por um gesso que lhe descia do pescoço até a cintura como se fora um grande colete branco. Arranhões enormes que lhe marcavam desde a testa até o pesocço e o inchaço na região do maxilar. O lado afetado estava duas vezes maior que o outro.

A "mucissoca-soca-soca" era a trilha musical adequada para a cena e vinha de um telefone escondido no bolso da bermuda do pai das crianças de dentes careados. Eu não sabia que o som de celular podia ser tão alto. Entretanto, dado momento, percebi que a ele faltavam ao menos quatro dentes bem na frente do sorriso.

Uma criança começou a berrar dentro do consultório. Com os gritos, o irmãozinho que estava na sala de espera começou a chorar sozinho. O menininho de, no máximo cinco, anos chorava aos berros e batia desesperado na porta do dentista. Eu fui até ele e o abraçei enquanto via seu dentinhos todos careados, verdadeiras panelas, em sua boca. Sentei-o em minha cadeira e tentei distraí-lo. Cerca de dez minutos depois saiu a sua irmão com o tufo de algodão na boca e um dente a menos na boca. Dentro do consultório permaneceu sua mãe que, algum tempo depois, saiu, também com um tufo de algodão na boca e um dente a menos na boca.

Depois de quase três horas de suplício, sem pedir licença, uma senhora sem qualquer uniforme ou identificação, desligou o ventilador e ficamos a escaldar. Eu, de imediato, perguntei à mal educada senhora se ela poderia religar o bendito ventilador. Ela, sem responder nada, com cara de entojo, voltoou a ligar o bendito. Em seguida, deu alguns gritos que quase estouravam meus ouvidos, com uma colega que se encontrava em sala fechada. Depois disso, montou numa bicicleta velha e empoeirada e se foi desaparecendo pela rua pobre.

Já saia para ir embora quando olhei, mais uma vez, a enorme foto mal emoldurada e pensa, pregada na parece suja que um dia já foi braca. O Prefeito local em sorriso colgate e cabelo aprtido ao meio olhava a cena. Eu tive vontade de dizer-lhe alguns impropérios mesmo que só para a foto. Mas, iam rir-me e dizer que estava louco. Mas, o prefeito ria na foto. Nada mais apropriado. E o sorriso era mesmo de deboche.

Eu levei um livro e aproveitei para ler alguns capítulos. Mas, a cena que ali se apresentava era por demais rica e não passei alheio à ela. Fui o último a ser atendido. Sai com medo de ter contraido algum virus ou bactéria. Porém, já que estou na chuva tenho de me molhar. Plano de saúde nesse lugar é pior que saúde pública. Tudo é dificil e desorganizado. A cena descrita, embora tenha acontecido num posto de saúde pública umilde, de uma comunidade humilde, de uma cidade humilde que se chama Marechal Deodoro, em Alagoas, Brasil, bem poderia ter acontecido no melhor hospital da capital e com personagens bem mais abastadas e que estiveram nas melhores escolas.

Mas, é certo que essa gente tem seu valor e ele não pequeno. São guerreiros e guerreiras que, mesmo sem saber, estão a buscar o que lhes resta das migalhas dos altos impostos que são pagos por todos nós. Essa gente umilde que, sequer sabe ler ou escrever e que não passa de massa manobrada e necessária aos políticos que para justificar a precária assistência precisam de muitas verbas federais ás quais deviam aos seus próprios bolsos.

Os desdentados de Marechal continuarão a se reproduzir e, sem educação, seus meninos remelentos contiuarão a frequentar o umilde posto de saúde.

Wanderley Lucena



sábado, 17 de outubro de 2015

Pavonices

Apressei o passo na rua de pouca luz. O flash explodiu e clareou a noite. Olhei para todas as direções e não sabia o que se passara, de onde viera o tal flash. Pensei ser uma lâmpada a estourar ou um problema na fiação elétrica. Porém, apenas o silêncio imperou.

No outro dia me chega um amigo e mostra minha foto, de costas, que já percorria o mundo virtual por meio do aplicativo, quase maldito, watssap. De início fiquei assustado. Sou eu tão importante ao ponto de ter um paparazzi a me seguir? Quem se daria ao trabalho de fotografar-me às tantas da noite em rua de pouco movimento e se daria ao trabalho de espalhar uma besteira dessas na internet? Seria mesmo muita falta do que fazer ou coisa de meninos. Sim, a segunda opção. Era apenas um menino quase hacker que me sacara a foto. Menos mal! Mas, fiquei com a sensação de ser alguma celebridade local.

E ontem, no bar "inferninho" desse lugar - diga-se: adoro os "inferninhos"! - quando fui ao caixa, fui então informado que a minha conta já havia sido paga. 

- Quê? Como? - Perguntei eu estupefacto ante a situação também inusitada. Jamis alguém me pagara a conta e, ademais, não percebia nos frequentadores presentes, ninguém que pudesse ser suspeito de tão boa ação. Insisti com o rapaz que estava no caixa e quis saber quem pagara a minha conta.

- Andreas - Foi a sua resposta depois de eu muito insistir.

Mas, Andreas é um italiano jove, jogador provicional de futebol em seu país. Nós nos cumprimentamos todas as vezes que nos vemos, mas, não sabia eu que gozava de tanto prestígio junto ao moço.

Voltei para casa sem ter entendido direito, mas, na primeira oportunidade, além de agradecer a Andreas, eu lhe serei mais atencioso e, também, retribuirei a gentileza.

Certo é que, por motivo de fofoca ou  não, cá estou a ser alguém para "alguéns". E quando pensamos que o viço já nos se esvai, de alguma maneira, totalmente nova, a natureza insiste a informar-nos que o pavão sempre será pavão, não importa onde esteja nem quantos dias já lhe imprimiu a vida.

Wanderley Lucena

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Cotidiano

Sem mais nem menos voltei para casa já meio bêbado e, melhor, acompanhado de duas criaturas incríveis. Ela de Brasília e a passar alguns dias por aqui a aproveitar a praia. Ele nativo, porém, de tiradas inteligentes e marcantes. Falastrão, ousado, sem papas na lingua, chegando quase ao tosco, porém, de beleza igual ou superior à da moça à qual demonstrava todo o poder da testosterona. 

A conversa, ainda no bar, girava sobre temas banais, porém, agradabilíssima para todos que ali estávamos. Eu os convidei a tomar um Casal Garcia, vinho de muito boa qualidade, dizem, já que não sou nenhum somelier. Mas, a proposta foi aceita com efusividade e rumamos para minha humilde residência, a poucos metros do bar. 

A casa estava um pardieiro e eu ruborizei-me ao pedir-lhes desculpas. A cozinha tinha louça suja na pia e já vai pra uma semana que não chamo a empregada a fazer a faxina. Não me lembrei de colocar a música e a conversa foi aumentando de volume que eu, a todo instante, pedia para decermos a tom mais ameno, haja vista, a vizinhança implicante que cobra silêncio sepulcral como se isso aqui fosse lugar que não merece gente feliz. 

Já era madrugada quando abri o Casal Garcia. Com as glândulas palatais inchadas ante o sabor seco tenso do vinho, ríamos e gesticulávamos em conversas exaltadas que iam desde à crítica à cultura local até às viagens marcantes que fizéramos.

A noite tinha que acabar e ambos se foram, dessa vez, com ela sentada na garupa da bicicleta do moço. Não sei o que aconteceu até que ele a deixasse na porta de sua casa. Mas, espero que tenham aproveitado a vida, a noite, o minuto. Porque desta vida pode ser que não levemos nada, nem as lembranças. Mas, que em vida gozemos toda intensidade da humanidade divina que habita em cada um de nós!

Wanderley Lucena

domingo, 11 de outubro de 2015

Feliz Aniversário

O universo insiste em fazer-me surpresas. Aqui ou acolá encontro alguém, alguma coisa, tem brilho diferente e me atrai a curiá-lo. Os óculos fundo de garrafa, tipo nerd inveterado, contrasta com a idade. O jovenzinho magro esguio, de cabelo bem aparado, fala com desenvoltura e conhecimento e de quase todos os assuntos e o faz com segurança. Seus planos podem parecer mirabolantes. Quer ir-se para o exterior e ganhar muito dinheiro em pouco tempo. Quer casar-se com sua amada e com ela ter filhos.

Os olhos verdes prendem a atenção de quem por ele é mirado. Fotos foram sacadas e a admiração ante a beleza ocular surpreendeu até mesmo o próprio dono. Há sinceridade no tom da voz e na postura. Falante, eloquente e dono da situação não fica desagradável quando se percebe a artimanha da manipulação ao tentar reter alguém que insiste em não querer ficar na roda.

A surpresa foi quando pediu-me um livro como presente de aniversário. Sério? Um livro? Sim, senhor! Um livro. Fui ao meu pequeno acervo, ao qual doarei em breve, e escolhi dois títulos. Um Nietzche e um José Saramago.

O Nietzsche está em linguagem para principiante. Já o José Saramago em O Evangelho segundo Jesus Cristo é pancada das boas e espero que o jovem consiga lê-lo bravamente e que sua reflexão seja para toda a vida.

Que a leitura lhe seja prazeirosa e que seus anos sejam longos! Que a terra lhe ofereça frutos e que sua mesa seja farta! Que seu caminho lhe seja suave e que o sol brilhe cálido em sua fronte - como diria o Druida.

Wanderley Lucena

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Pausa e o Silêncio

E você está ai?
Aonde?
Que silêncio!  
Sepulcral
Pausa dramática
Eu ouço o silêncio
Sepulcral
Morremos agora?
Ou só no próximo ato?
Molière diz que são três atos
Estamos no segundo?
Primeiro?
Terceiro
Não quero morrer agora
Tá tão gostoso!
Vou dormir
Aos braços de Morfeu e avante!
Vai
Valeu!
Vendo o quê?
Nada
Percebi!
Comporte-se!
Valeu, coroa!
Coroa é o...
Boa noite!

Wanderley Lucena