terça-feira, 10 de maio de 2011

A ORIGEM

Ela sentia necessidade de banhar-se em água corrente e abundante. Estava farta de banhos de cuia e de lavar-se com apenas uma lata d'água. Pensava em voltar ao Flores. Desejava reencontrar a negra Maria. Talvez, ensaboar-se com seu sabonete cheiroso. Conversar com ela. Ouvir-lhe a voz a cantar alguma cantiga de roda. Sentir o abraço caloroso dos braços gordos daquela negra de coração tão bom.

Ainda era dia, quando ela, acabrunhada, com medo da reação negativa de Zé Bento, falou a ele, escolhendo as palavras, para perguntar se podia ir ao Flores. Nervosa e com as mãos geladas fez força para que a voz saísse na entonação certa.

- Amanhã vou ao Flores, lavar a roupa suja.

Surpreendeu-se ao ouvir a própria voz. Soou como um comunicado. O tom era imperativo. Imaginou que as suas sobrancelhas estivessem franzidas e que isso pioraria a sua imagem de autoritária. Torceu para que Zé Bento não lhe maltratasse com uma resposta ríspida e que não a impedisse daquele intento.

Ele comia um pedaço de cana. Cuspiu o bagaço e, sem olhar para ela, perguntou-lhe com a voz mansa e suave:

- Você tem certeza?

- Tenho sim. Não tem perigo nenhum. Sei o caminho. Vou de manhãzinha e volto no final do dia. Lavo a roupa e trago as cabaças cheias. 
 
Respondeu ela, torcendo para que ele não obstasse.

- Pois então vá. Eu tenho que trabalhar na roça. Não posso estar contigo, mas saímos juntos e lhe deixo no porto.
 
Informou-a Zé Bento, já que ia passar a semana trabalhando para os Oliveira.

Ela nunca fora de rezar, mas naquela noite ela se pegou pedindo a Deus, que a ajudasse naquela empreitada. Que Ele fizesse com que a negra também fosse lavar a roupa e que a pudesse encontrar.

Ela preparou o frito ainda naquela mesma noite. Quebrou os ovos e os fritou em azeite de coco babaçu. Misturou com a farinha de puba e botou em uma velha panela, a qual envolveu com um pano que lhe segurava a tampa e impedia que o frito derramasse. Pôs tudo nos jacás, a roupa suja, uma faca peixeira, o caniço para pescar, a cabaça d’água e tudo o mais.

O sol ainda não tinha raiado quando ela pegou a estrada, sentada na cangalha. O jumento ia rápido como se nada levasse em suas costas. Os dois jacás não levavam quase nada mesmo e Perpétua era coro e ossos. As mutucas, uma peste, às centenas, insistiam em sugar o sangue nas pernas do animal, fazendo-o surrar-se com o próprio rabo em chicotadas frenéticas.

Durante todo o trajeto ela desejou, ardentemente, por benção de Deus, ver a negra Maria. Sabia, no entanto, que a possibilidade de tal encontro era por demais remota e, se a visse, era mesmo por puro milagre.

O porto ao qual se dirigia, ainda bem, não era o das Oliveira. Não queria reencontrá-las jamais. Além disso, não era sábado aquele dia. Ao menos que ela ainda se lembrasse vagamente, aquele dia devia ser segunda-feira. Não encontraria as Oliveira. Não era o dia que elas lavavam as roupas e, mesmo que fosse, não se aproximaria do porto delas. Iria agir com a maior discrição. Bateria a roupa devagar, sem tanto barulho.

Depois de umas duas horas de caminhada, a vegetação começou a ficar mais verde e o ar foi se tornando mais úmido. Apenas mais alguns minutos e ela estaria no porto, lavando a roupa. Iria tomar um bom banho, iria tentar pegar uns piaus cabeça-gorda para almoçar e, ainda, levaria alguns para casa.

Ao descer a ladeira em direção ao porto, olhava esperançosa, intentando ver Maria, no entanto, nada viu ou ouviu, a não ser os macacos-prego nos galhos das árvores. Se Maria ali estivesse, estaria do outro lado do rio e, certamente, já teria ouvido a sua cantiga. Sua esperança se esvaía. Mas se visse Maria, pensou ela, com certeza atravessaria o Flores de um pulo só. Queria fazer muitas perguntas à negra. Tinha vontade de contar-lhe tudo. Sobre sua vida, sobre sua saga, seus segredos. A negra lhe ofereceria gentilmente o sabonete que cheirava a flores e ela tomaria um banho cheiroso.

Deus não ouvira suas preces. Zé se foi e ela ficou sozinha. O porto estava mesmo sem viv'alma. Desceu a carga do jumento e o amarrou às margens do rio. Ele logo passou a pastar depois de beber muito nas águas correntes. O capim ali era verde e era manjar para ele, com certeza. A carga já havia sido arriada. Tirou a pouca roupa e a ensaboou num tronco que usou como tábua.

Ouviu barulho de pedregulhos rolando ladeira abaixo na outra margem do rio. Ouviu passos de cavalo. Seu coração acelerou-se ao pensar que Maria estava chegando. Ela se surpreendeu, ao ver o cachorro que chegara primeiro do que aquele outro que descia a ladeira por trás dos arbustos. Ela conhecia aquele cachorro. O seu cão Fiel, que a acompanhara, saltou dentro da agua do rio e o atravessou para ir lamber o outro que acabara de chegar. O cão abanava o rabo em frenesi de alegria por ver o seu companheiro.

O coração de Perpétua, no entanto, se empretejou. Uma imensa nuvem negra se lhe abateu. Ela conhecia aquele cachorro que chegara antes que seu dono. Era o Fiel. Um vira-latas misturado com pequinês. Ela virou-se de costas para quem chegava. Não dava mais tempo de correr e esconder-se. Não tinha tempo para arrumar a carga toda e evadir-se dali.

Os cachorros pararam de se lamber e vieram-lhe ao encontro, depois atravessarem as águas rasas do Flores. O cachorro veio lamber-lhes as mãos, feliz por reconhecer-lhe. Perpétua passou-lhe a mão na cabeça, fazendo-lhe um carinho em retribuição.

De costas para a outra margem do rio, não sabia quem tinha chegado. Se sua mãe, se seu pai, ou se ambos. Ficou parada por alguns minutos, torcendo para que aquele parente se fosse para o porto das Oliveira sem sequer lhe falar uma única palavra. Ouviu, no entanto, o barulho da água sendo rasgada com força por pernas que a atravessavam. Perpétua continuou imóvel. Agora, sabia que era sua mãe que vinha em sua direção... e o sabia pelas passadas nervosas na água. Seu pai seria mais discreto, não faria aquele barulho todo só para atravessar aquele rio raso.

- Sai daqui, miséria! 
 
 Ralhou sua mãe com o cachorro.

O cachorro se afastou e se aquietou a alguns metros, a observar como se estivesse com pena dela.

- Quem diria? Aqui estamos. Muito que bem! Sua infeliz! Eu pensei que nunca mais ia te ver nessa vida, mas tu tá aqui... e viva, né mesmo? 
 
Espraguejou, irritada, sua mãe.

Perpétua continuava cabisbaixa, vendo-a apenas da cintura para baixo. Queria morrer naquele momento. Era uma sensação mil vezes pior do que o dia em aquela mulher a humilhara ante as Oliveira. Não achava forças nem coragem para levantar a cabeça e olhar sua mãe nas fuças.

Continuou imóvel, sentada no tronco do qual fizera tábua de lavar roupa. A garganta secara e parecia que havia engolido um punhado de terra seca ou uma mão cheia de farinha-de-puba, sem antes umidecê-la com a saliva. A respiração não lhe obedecia e o coração batia descompassado.

- Tu fugiu com aquele assassino, não foi? Sua desavergonhada! Pensa que eu achei ruim? Achei foi bom!
 
 Disse sua mãe, demonstrando júbilo e alívio, enquanto batia forte no peito.

- Só não pensei que tu tivesse tanta coragem. Sempre te achei uma pomba morta, uma lerda, uma lesada.
 
Continuou sua mãe.

Ela continuava paralisada, sem nada dizer. Seu juízo agora lhe trazia a sensação de desmaio. Sua cabeça parecia rodar.

Perpétua resignou-se e se empertigou. Respirou fundo e buscou forças onde não tinha. Levantou a cabeça com dificuldade. Viu ódio e satisfação na cara de sua mãe.

Tentou a todo custo não demonstrar o seu pavor e nervosismo.

- Continue. Fale tudo o que tem a dizer!
 
Conseguiu falar a trêmula Perpétua.

- Você sempre me foi um fardo, sua lazarenta! Eu nunca te quis. Sempre te reneguei desde o momento em percebi que tava buchuda de ti. Tomei todo tipo de beberagem venenosa para te expulsar de minha barriga. Queria, com todas as minhas forças, que tu tivesse nascido morta. Quando tu nasceu, nem parteira eu procurei. Eu mesma quebrei o cordão com as mãos. Nunca te amamentei. Tua papa era de água com pó de banana seca com água e açúcar. Nem araruta eu quis te dar. Era muito trabalho ter de plantar para te fazer um gomoso diferente. Eu te tive de pé, se quer saber. Nem me deitar me deitei pra te ter. Tua cabeça bateu no chão quando te expeli. Desejei que tu morresse. Mesmo assim tu não morreu.
 
Bradava-lhe sua mãe, aos berros e com os punhos fechados.

- E por que mesmo, Dona Nilde? 
 
Perguntou Perpétua, estarrecida com o que ouvia.

- Pensa que é filha de teu pai? Não é não! O Nonato é que era teu pai - continuou sua mãe.

- Nonato? 
 
Perguntou-se Perpétua, intimamente. 
 
- Nonato? Será? 
 
A única pessoa que sabia chamar-se Nonato era o finado marido da viúva Carosina. Perguntou-se ela, sem deixar que sua mãe percebesse as perguntas que se fazia.

- Isso mesmo! Aquele cão sarnento do finado marido da Carosina me enganou. Me ludibriou, me iludiu e me desvirginou, dizendo que me daria mundos e fundos, mas quando ficou sabendo que eu tava buchuda de ti, me procurou e me disse que ia me matar se tu nascesse. Bem que eu tentei, mas tu insistia em crescer na minha barriga.
 
Gritava sua mãe, agora curvada e a dois palmos do seu ouvido.

Perpétua desejou ter forças e coragem para partir para cima de sua mãe e matá-la, ali mesmo. Foi contida, porém, por um lampejo de razão. Se assim procedesse, jamais saberia o resto da sua história. Ademais, não mataria mesmo, por mais que a estivesse odiando, naquele momento infeliz.

- Quem matou o Nonato foi teu pai. Quer dizer, aquele que tu pensava que era teu pai. O Nonato se aproveitou que estávamos trabalhando na roça dele e quis me matar. Foi quando fui salva pelo teu pai, que matou o miserável a facãozadas. Fugi com teu pai no mesmo instante e fomos parar naquele torrão de terra seco dos infernos. Nunca mais passei nem perto da fazendo da viúva.
 
Esclareceu sua mãe.

A cabeça de Perpétua estava com um torvelinho. Agora, porém, tudo lhe fazia sentido. O desprezo da sua sua mãe por toda a sua vida. Morarem naquele lugar seco e longe de tudo. Tudo parecia fazer sentido.

- Você é a culpada de tudo, sua infeliz! 
 
Decretou sua mãe, agarrando-a pelo cabelo e levantando a sua cabeça.

Os braços de Perpétua continuavam imóveis. Ela se mantinha passiva. Agora, não tinha a menor vontade de defender-se.

- Tomara que você morra de vez!
 
Gritou sua mãe por entre os dentes cerrados e soltando-a com desprezo.

Nada mais foi dito. Ela permaneceu sentada sobre o tronco, enquanto Enilde atravessou o rio para a outra margem. Um imenso grito se acumulava em seu peito. Uma quantidade tão grande de revolta que parecia que ela iria explodir. Ela fez um esforço descomunal para se conter. Não queria que sua mãe lhe ouvisse em prantos. A cabeça se curvou e o queixo chegou a tocar-lhe o colo. Lágrimas jorravam de seus olhos e o peito resfolegava. Fez concha com as mãos, colheu as águas do Flores e as levou ao rosto para lavar as lágrimas que lhe corriam.

Ela não conseguia mais bater a roupa. Apenas as enxaguou rapidamente e foi botar a cangalha no jumento. Nunca teve tanta dificuldade de colocá-la nas costas do jumento. Olhou, então, para o outro lado do Flores e percebeu que sua mãe não se encontrava mais ali. Sentiu-se aliviada. O segundo cachorro, Fiel, ali permaneceu abanando o rabo. Ela passou a mão na cabeça do cão e ele se deitou de barriga para cima, mexendo as patas no ar, alheio ao que ali se passara.

O sol já ia alto quando ela subiu a ladeira e deixou o Flores para trás. Nada pescou, sequer pôs algum mingongo como isca no anzol do caniço. Queria ir embora dali. Apenas isso. O coração estava pesado e lhe enchia o peito num incômodo descomunal. Já não mais chorava. Os cachorros a seguiam, latindo de vez em quando.

Ela já se encontrava próxima da sua casa, passando ao lado das terras da viúva Carosina. Podia sentir uma energia ruim. Um bafo de receios e pressentimentos. Estava próxima demais da viúva afamada pela maldade e pela mesquinharia. Jamais a vira. Talvez jamais a veria. Poucos tiveram tal desventura.

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