domingo, 24 de abril de 2011

EQUILÍBRIO

EQUILÍBRIO


A bondade consta de não desejar o mal a ninguém. Significa que você deve desejar que seu inimigo ganhe na mega-sena e sozinho. Que ele viva tantos dias quanto os de Matusalém. Que ele seja sempre bem sucedido, mesmo, que às custas da desonestidade. Deve recebê-lo de bom grado dentro de sua casa e fazer-lhe sala. Deve ficar orgulhoso dele participar dos mesmo eventos sociais e, se sua filha se interessar pelo malandro do filho dele, você deve aceitar e, inclusive, dar-lhe a maior força.

É claro que você não concorda com isso, muito menos eu. Mas muita gente pensa exatamente assim. Ouvi demais, quando participei de uma comunidade evangélica na qual descobri ser o pastor um pedófilo, ladrão, dissimulado que, sequer, tinha segundo grau, quanto mais o curso de teologia. Ao desmascará-lo, os irmãos diziam, com benevolência, estarem orando e Deus tomaria de conta dele. Ora, pois entendo eu, sermos nós, muitas vezes, os instrumentos da vontade divina. Que negar-se a ver a tirania explícita e imposta ao mais fraco, tal negação deveria ser pecado mortal. No entanto, temos por ai uma legião deles a explorar o bolso de quem não tem capacidade de fazer qualquer crítica. E ninguém faz nada. é terreno por demais delicado, minado. É religião e não se deve intrometer. Francamente! Sei que muitos nada fazem por pura covardia ou mesmo pelo conforto de não envolver-se. Ou seja, o próximo que se f...!

Tempos atrás prendi o neto que surrupiava a própria avó. Ela recebia uma baita aposentadoria mas estava esclerosada. O bandido deu, de uma tacada só, 16 mil Reais a Igreja. Sim, aquela mesma. Aquela da corrente da rosa amarela, do sal, dos empresários, etc... Nenhum escrúpulo em arrancar o dinheiro daquela velhinha esclerozada. Tanto da parte do neto quanto dos falsos pastores.

Na Índia tem os Janistas. Os adeptos de tal religião andam em cadeiras de rodas, empurrados por gente de casta mais abaixo. Sabe porque? Ele não querem ser responsáveis por matar uma barata, uma formiga ou mesmo, a grama. Os mesmo ainda usam uma mascara cirúrgica no rosto. Assim eles evitam que moscas e mosquitos sejam engolidos por eles num momento de descuido. Justifica-se o receio ante a quantidade de moscas e mosquitos no fétido país. Mas fico pensando que em nosso corpo existem milhões de bactérias, vírus e outros. Toda vez que tomo banho imagino que se vão pelo ralo uma quantidade enorme deles, bem como, quando escovo os dentes, lavo as mãos, etc... A ciência já provou que tais seres são vivos. Portanto... também estão sendo mortos. Excesso de bondade neste caso.

Fico pensando no planeta terra e que somos virus nele. Logo o mataremos, podes crer!

Há o princípio budista que diz que o equilíbrio está no meio. Sim senhor! Todos devemos assumir que, na nossa essência está a bondade e a maldade. Não estaria certo desenvolver uma delas apenas. Nem mal demais, nem bom demais. Entendeu? Ser mal na medida certa. Ser bom na medida certa. Fazer o bem olhando a quem. Sacou? Equilíbrio demais pode ser desequilíbrio.

Aliás, acho linda uma lenda de Buda que conta que ele passou não sei quantos anos debaixo de uma árvore. Naquela posição de todo Buda, posição de yoga. Dizem que ali debaixo daquela árvore ele repetia os mantras, fazia jejum e se concentrava na tentativa de atingir o nirvana. O nirvana, pra quem não sabe, é aquele estado de total equilíbrio, ou seja, um estado paradisíaco em vida. Ele insistia em seu objetivo com muita disciplina e o seu jejum chegou a constar de um único caroço de arroz por dia. Ele ficou tão magro que podia tocar sua coluna com a ponta do dedo ao apertar a própria barriga. Depois de anos e anos insistindo, desistiu sem atingir o seu objetivo, ou seja, o nirvana.

Voltava para casa triste, descrente e decepcionado. Entretanto, quando atravessava uma pequena pinguela no seu caminho de retorno, deparou-se com uma cena que lhe chamou a atenção. Às margens do caudaloso riacho abaixo da pinguela, um mestre ensinava um discípulo a tocar um instrumento de cordas. Quiçá uma cítara, haja vista, naquele tempo ainda não terem inventado o violão. O mestre dizia ao seu discípulo:

- Vamos afinar o instrumento. Não aperte demais a corda, pois ela poderá se romper. Mas não deixe a corda frouxa demais, pois, dessa forma ela não dará som algum.

Ao ouvir tal ensinamento, Buda que ainda não era Buda, mas um reles mortal, se iluminou. Ele entendeu que o equilíbrio que buscara anos a fio em seu sacrifício de jejum e orações, constava tão somente de encontrar o meio. Isso mesmo, o equilíbrio está no meio. Nem tanto aos céus, nem tanto à terra. Bondade demais é desequilíbrio. Assim como maldade demais, da mesma forma. Seca demais o é, chuva demais também. E assim em todos os antagonismos. Foi ali naquela pinguela, ao observar aquela cena, que ele se tornou Buda, o Iluminado.

Apareceu aqui na porta da minha casa, dias atrás, uma senhora enorme e forte, aparentando muito boa saúde. Tinha no máximo uns trinta anos. Se fazia acompanhar de três meninos que deveriam estar no colégio. Ela estava com um saco enorme de mantimentos e interfonava a todos os apartamentos pedindo um quilo de qualquer coisa para alimentar os seus filhos. Quando passava por ela ela me estendeu a mão e fez cara de fome. Me pedia um quilo de arroz ou uns trocados. Eu respondi que nada tinha naquele momento a não ser uma boa trouxa de roupa que, se ela quisesse lavar, eu a recompensaria monetariamente. Ela me olhou de cima a baixo, puta da vida, com as mãos nas cadeiras e batendo um dos pés freneticamente, e me perguntou se teria ela cara de lavadeira. Ficou ofendidíssima, acredita? Claro que eu quis mesmo provocá-la apenas. Mas fiquei ainda mais indignado ao olhar nos prédios da vizinhança e ver outras senhoras de mesma aparência. Enormes sacos de mantimentos já haviam arrecadado. Cada uma se fazia acompanhar de duas ou três crianças remelentas. Em um estacionamento próximo, às escondidas, estava estacionado um veiculo do tipo perua, quase arrastando no chão com tanto peso do que elas arrecadavam.

Nada pode ser feito contra tais criaturas. Seria maldade, entende? Entendo ser maldade não ver as crianças exploradas e, ainda, alimentar esse tipo de máfia. A ingenuidade cega da bondade é que alimenta tal acinte. É a mesma que nos faz dar um trocado ao craqueiro que diz ter guardado o nosso carro. Em seguida ele se dirige ao submundo para comprar a pedra e fumá-la. Detalhe: depois de viciado ele vai arrombar o seu carro, a sua casa, no desespero para satisfazer o seu vício.

São melhores os que sentem a dor da morte ao esmagar uma formiga ou que se levantam contra a injustiça e botam na cadeia os malfeitores de todos os tipos?

Equilibrado é quem sai de "fininho", sem barraco, sem dar escândalo. Ou será que trata-se tal indivíduo de um covarde, um egoísta que não liga se o seu próximo precisava da sua defesa veemente? Agradeço a todos os que se posicionaram ao meu lado quando, em algum momento, sofri alguma injustiça. A inércia ante a injustiça, sua ou do próximo, é algo que me ferve, me causa náuseas.

É verdade que só ladrão de galinhas é que vai pra cadeia. Confesso que já sonhei com a utopia de um grupo de extermínio que, justiceiramente, mataria sem dó muitos corruptos, ladrões do erário público, entre outros tantos.

Confesso: queria mesmo era jogar uma pá de cal na cara de alguns indivíduos quando do seu enterro. Sim, eu sei que posso bater as botas antes deles. Mas isso não muda o fato de que sou capaz das maiores bondades e das piores maldades. E sabe... Sinto-me humano. Humano e apenas isso. Não tenho nenhuma pretensão de ser beatificado mesmo. ão serei um Buda tupiniquim. Não tenho tanta pretensão assim.

CALMA! Falo utopicamente. O justiceiro logo estaria corrompido. Estamos fadados a uma eternidade de mesmice injusta. Creia-me!

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O CENTRO VELHO DOS OLIVEIRA

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No Centro Velho era todo mundo protestante. Gente branca como ela, porém tinham uma beleza que lhes era própria. A gente de lá era diferente, tinha posses e falava de forma bem pronunciada e usava palavras que jamais ouvira. A pele deles era macia e os olhos eram brilhantes e vívidos. Os cabelos eram bem alinhados pareciam reluzir ao sol. As unhas limpas e aparadas, em pés que não eram rachados e caroçudos como os seus. Os rostos rechonchudos e sem manchas, dos meninos da sua idade, demonstravam que comiam bem.

O rio estava há poucas léguas do lugarejo e, caso a lagoa deles secasse, poderiam saciar a sede, inclusive a dos animais, com facilidade, bastando para isso que se deslocassem até o caudaloso Flores. É verdade que o dito rio não era dos mais abundantes, aliás, secou determinada feita, mas era de boa pescaria e o piau que lá se pescava, assado em folha de bananeira, tinha sabor inigualável. A água era transparente, limpa e muito boa para se beber.
 
Quando sua família ia ao Rio Flores, era obrigada a passar, obrigatoriamente, pelas terras dos Oliveira e, implicitamente, a mendigar o favor de lavar as roupas e pegar a água que lhes faltava, quando o verão secava suas cacimbas.

Bem pertinho da vila que compunha o Centro dos Oliveira, uma Lagoa fornecia água potável ao lugarejo e, no final do dia, os homens para ela se dirigiam. Eles enchiam as latas d’água e iam tomar banho para tirar o suor do dia de labuta. Ninguém entrava na Lagoa, afinal era de lá que tiravam a água para beber. Toda a Lagoa estava cercada devidamente e era assim que se evitava que animais urinassem ou deixassem nela o seu estrume. Por todo o espelho da d’água um imenso manto de mururus a protegia do sol e evitava que evaporasse. A água era fria e escura.

Quando os Oliveira iam botar o tingui nas águas do Flores era uma festa. O tingui é planta venenosa que batida e esmagada era jogada no leito do rio e deixava os peixes embriagados. O povo ficava abaixo e, com cofos, jacás e redes recolhiam o cardume. Naquela época não se falava em crime ambiental.

Foi um dos filhos do Oliveira, o Zaqueu, que chamou o pai de Perpétua para participar do tingui.
Ela jamais saíra do do torrão onde nascera. Os preparativos para a viagem rumo ao Flores começaram no dia anterior e Perpétua, ansiosíssima, passou a imaginar a água do rio que até então não conhecia. Imaginou a nova paisagem que veria ao longo de toda a viagem e as descobertas que faria. Era tão menina que não sabia direito do que se tratava. Não entendia e não lhe fora informado o motivo daquela viagem, mas ouvira os adultos, pai e mãe, enquanto arrumavam o frito, falando do tingui que os Oliveira iriam botar no Flores. Certo é que cada minuto parecia infinito. O dia não acabava. A noite inteira pela frente. Era muito tempo para a ansiosa Perpétua.

A noite de véspera foi longa para ela. A ansiedade não a deixava dormir. O dia não amanhecia. Levantou-se diversas vezes e, na ponta dos pés, foi até a porta do quarto dos pais para ver se já se levantavam. Tentou dormir insistentemente, porém não parava de pensar que dali a pouco estaria vendo os Oliveira, o Rio Flores, a vegetação verde e que brincaria feliz e faceira com os meninos da sua idade. Brincaria de roda e aprenderia cantigas lindas. Iria ser aceita sem distinção e faria uma amiga, uma confidente à qual contaria segredos.


O galo cantou finalmente. Ela pulou da rede e esperou que sua mãe viesse acender o fogão de lenha e preparar o quebra-jejum. Cada minuto parecia-lhe uma eternidade. Se fosse por ela, dispensava o café da manhã e já ia estrada afora. O pai, no entanto, ainda foi arrear o jumento e o irmão foi alimentar os animais no chiqueiro e no galinheiro. Ela ficou abanando freneticamente o fogo que sua mãe acendera. A fumaça subiu e uma labareda apareceu entre a lenha. Pronto! Agora era pôr a panela com a água e quando fervesse, duas colheres de café seriam jogadas. Depois, três colheres de açúcar ou, se este faltasse, umas cinco de rapadura raspada. Depois passar no velho pano de coar. A farinha de puba seria o pão que ela jamais comera, sequer vira.

Saíram todos ainda na madrugada. O sol estava alto quando chegaram às margens do Flores. As famílias dos Oliveira foram chegando. As mulheres desciam suas cargas dos cavalos de ancas gordas e de pelos macios e brilhosos. A roupa suja era tirada dos jacás e cada uma se sentava numa das tábuas já instaladas na beira do rio. A roupa era ensaboada com sabão que elas próprias faziam. Era feito da mesma forma que o de sua mãe, ou seja, com tripas de porco que iam ao fogo e viravam sabão, depois que a soda cáustica era misturada na panela. O sabão daquelas mulheres, entretanto, era cheiroso, branquinho e as barras eram cortadas de forma uniforme. O sabão que sua mãe fazia era cinza, indo para o preto. Os pedaços grandes, tinham tamanhos diferentes e era difícil de segurar para esfregar nas roupas. Além do mais, sentia-se o cheiro claro do fato do porco e da soda cáustica.

Ela achava que tinha chegado no paraíso. Era a primeira vez que entrava em água corrente de rio. O banho em sua casa era de caneca, por trás das bananeiras do quintal. Sentou-se numa tábua de lavar roupas que não estava sendo usada por nenhuma das mulheres e meteu as pernas n’água. A água veio aos poucos por sobre a tábua e lhe molhou as nádegas. A sensação era de carícia. Fechou os olhos e sentiu o cheiro da vegetação, das flores silvestres e do sabão perfumado das mulheres dos Oliveira. Viu abelhas amareladas que colhiam o pólen das flores. Outras, negras e sem ferrão, sobrevoavam os montes de roupas ensaboadas. Com as pernas branquelas a balançar dentro d’água, ficou com o olhar perdido a visualizar a cena.

As mulheres batiam roupa e tagarelavam. Os meninos, de bodoques e baladeiras em punho, se punham a caçar rolinhas, juritis e nambus. Os maiores empunhavam espingardas “por fora” e, de vez em quando, se ouvia o estampido de uma delas a matar uma caça qualquer. As meninas auxiliavam as mães com trouxas de roupa ou cuidavam dos burros, jumentos e cavalos usados na viagem.

Para cima do rio, se ouvia a algazarra do homens a preparar o tingui a ser despejado no rio. As mulheres se apressavam a lavar a roupa para que pudessem ajudar na pescaria que começaria logo.

Perpétua percebeu que a olhavam com curiosidade desmedida e com desprezo. Era menina mirrada e todos a achavam tísica e doente. Pareceu-lhe que tinham receio de que ela lhes transmitisse alguma doença contagiosa. Nenhum dos meninos a chamou para brincar ou para uma conversa curiosa. Nenhuma menina se interessou em cumprimentá-la. Ela, por sua vez, não ousava incomodar ninguém. Seu olhar era fundo e sem brilho. Não era de esboçar emoções e era de pouco sorriso. Falava pouco e não quis explorar nada. Não faria amigos ali, mas ao ver as brincadeiras dos meninos nas margens dos Flores, sentiu inveja deles e, no seu íntimo quis com eles brincar. Não se esquecia dos olhares para si. O olhar era discriminatório ou o de quem olhava para um leproso. Ela se sentia nua ante todos. Queria voltar para casa. Nada mais lhe interessava.

Chegaram a perguntar se era ela tísica ou tuberculosa. Sua mãe respondeu apenas que seu mal era ruindade mesmo. Que era uma “sem futuro“. Que tinha fastio e nada queria comer. Que era assim desde nascença. Desejou, então, que o chão se abrisse e ela sumisse dentro do abismo. Desejou ter ficado em casa.

As mulheres dos Oliveira, coradas e robustas, logo deram o diagnóstico de Perpétua. Era verme, lombriga. Só podia ser. Se nunca tivera impaludismo, se não era dada a comer barro, então eram as lombrigas que estavam a lhe sugar o sangue e a fazer a sua barriga crescer. A barriga de Perpétua estaria cheia de vermes que lhe roubavam as forças e vontades. A seguir, ensinaram beberagens e lavagens às quais sua mãe podia lançar mão e curá-la.

A coitada ficou apavorada ao ouvir sobre uma lavagem intestinal. Por seu ânus seria introduzido o bico de uma bomba plástica cheia de líquido quente. O líquido era para lavar as suas vísceras. Perpétua se imaginou completamente imobilizada por quatro mulheres, cada uma a lhe segurar pernas e braços e, uma quinta, a introduzir-lhe o bico da bomba no ânus, e o líquido sendo injetado.

Sua boca seria tapada para abafar-lhe os gritos. De olhos arregalados e com a vergonha de quem foi pego cometendo o pior dos pecados, Perpétua seria lavada por dentro. Seus excrementos seriam expelidos e as mulheres virariam a cara. Imaginou as caretas de nojo e as mãos sendo levadas ao nariz. Imaginou lombrigas enormes a rastejarem dentro de uma bacia de alumínio que serviria de penico.

Enquanto pensava na cena Perpétua teve vertigens e entrou na água do rio com cuidado, segurando firme na tábua, pois não sabia nadar. Mergulhou e sentiu a água fria a encobrir-lhe a cabeça. Ela ficou ali imersa com respiração presa por alguns segundos e desejou ficar assim até que aquela conversa tivesse acabado. Não queria botar a cabeça fora d’água, nunca mais. Não queria ver ninguém. Não queria ouvir nada.

Ao voltar à tona, ouviu gargalhadas e frases sem nexo. Pensou que riam dela e novamente submergiu. Queria morrer. Queria que a mãe morresse. Arrependeu-se amargamente de ter passado a noite sem dormir, ansiosa por estar ali. Não entendia o desprezo que sua mãe demonstrava. O que a levava a agir daquela forma contra si. Odiou-a com toda a intensidade de sua alma infantil e torceu para que a mãe estivesse apenas querendo a aceitação das Oliveira. Que nunca a obrigasse a tal lavagem. Ficou emergindo e submergindo assim, até que percebeu que todos se arregimentavam para entrar no rio. Começava o tingui.

Todos de cofos nas mãos. As redes de pesca estavam armadas. Os meninos que brincavam nos arredores correram para dentro do rio e, juntamente com os adultos, fizeram uma fileira de uma margem à outra do Flores. O rio não era tão profundo e os homens formados ficaram mais para o meio. As mulheres ficaram do lado de fora a esperar os cofos cheios de peixe. Cardumes inteiros começaram a debater-se ante a barreira de gente. Os cofos já cheios de peixe começaram a ser recebidos pelas mulheres que os despejavam em jacás e já os devolviam. Depois, as redes que se encontravam pouco abaixo foram retiradas, também cheias de peixes bêbados do tingui.

Pouco tempo depois todos estavam a tratar e a salgar os peixes. Tinha pacu, piau cabeça-de-cachorro, piau cabeça-gorda, piabas, traíras, surubins, mandis, carás e cascudos. Estes últimos eram descartados. Ante à tanta fartura, eles não se faziam necessários.

Felizes eram os Oliveira. Tinham o Flores, as roças fartas, cavalos gordos, rebanhos de vacas e pomár de frutas que davam mangas, atas, carambolas, carnaúbas, laranjas, tangerinas tamarindos e muito mais. Tinham casa de farinha e mandioca que chegava a se perder na roça, por não haver necessidade de colhê-la. Perpétua não entendia porque aquela gente dos Oliveira tinha tanto tão fácil, enquanto a sua gente padecia na pobreza total.

Chegou a fantasiar que, quando moça, um dos Oliveira se interessaria por ela e iriam morar às margens do Flores. Seria amada e danaria a falar o que todos queriam ouvir. Nunca seria rejeitada e sua pele adquiriria a maciez das mulheres daquela família. Falaria o que quisesse sem medo. Seria uma Oliveira.

Naquele momento, todavia, só queria ser criança igual a todos os que lá vira, e vira que brincavam de roda e cantavam músicas de melodia agradável. Muitas das quais aprendeu sem que as tivesse cantado, pois na ciranda não brincou com os demais. Viu que os meninos usavam bodoques e estilingues. Alguns poucos, os maiores, usavam espingardas de espoleta e caçavam todo tipo de pássaros e caças.

Tudo nos Oliveira era mais intenso. Até os animais domésticos tinham aspecto melhor. Os cavalos, jumentos e mulas tinham costas largas e boas para se sentar e cavalgar. O pelo dos animais pareciam penteados e brilhavam como se lhes tivessem aplicado gordura de porco. O olhos vivos, arregalados, brilhantes mostravam quão bem alimentados estavam.

Os poucos animais que pertenciam a seus pais eram magros, e nas costas do jumento aparecia o espinhaço, nas laterais, as costelas debaixo da pele sem carne. Era desconfortável sentar naquele espinhaço seco e, o pior, sentia bastante dó do bichinho fraco a carregar mais o seu peso. Ainda tinha as mutucas que insistiam em sugar o sangue do coitado, enquanto ele abanava o rabo desesperado com as ferroadas. Mesmo assim, o danado aproveitava para mastigar sem parar o capim da beira da estrada. Deveria saber o jumento, por instinto, que para onde voltava, uma vez por dia, teria de encarar a bacia de palmas e mascá-las sem vontade.

Ao votarem do Flores e já na casa dos Oliveira, ouviu, encantada, o som mecânico de um rádio jabuti caramelo, postado por sobre um armário petisqueiro, lotado de louças, as quais ficou imaginando para que serviam. Na frente do rádio, várias réguas sobrepostas. Nelas, vários números e pontinhos coloridos. Dois botões amarelos, um de cada lado do rádio, podiam ser girados. Com um se localizava a rádio a ser ouvida, com o outro se aumentava e diminuía o volume.

  À frente da imensa casa do Sr. Oliveira, um imenso pé de pitomba fazia sombra. A pitombeira estava cheia de cachos e um quibano foi enchido de cachos da frutinha travosa. De pouca carne, mas deliciosa ao paladar. O caroço era sempre gêmeo de outro. A casca era facilmente quebrada com os dedos e, na boca, o gosto era meio azedo, meio travoso - uma delícia nas papilas da pobre Perpétua. A pitomba, porém, não era fruta que matasse a fome. Talvez a enganasse. Funcionava melhor para uma merenda ou para comer sem nenhuma pretensão.

Ninguém fumava, como na sua casa, o velho cigarro de palha ou os cachimbos fedidos. Invejava os meninos saudáveis a brincar de roda e a cantar músicas de ciranda, tão agradáveis aos seus ouvidos quanto o cantar do sabiá, que ouvia nas madrugadas, da sua casa.

Jantou sentada no chão, sobre uma esteira de palha de coco babaçu. Comeu peixe assado, arroz com farinha de puba e fava temperada com cheiro-verde. O sabor era diferente e lhe parecia um manjar. Pensou nos vermes e lombrigas de que as mulheres afirmavam sua barriga estava cheia. Um banquete para eles também. Viu os meninos todos, dos Oliveira, a se alimentarem a certa distância com garfos e facas em mãos habilidosas que não lhes deixavam enfiar as pontas do talher nas bochechas. Quis estar entre eles, porém sua timidez e inferioridade a empurraram em direção ao prato de alumínio, entre suas pernas ao chão, e a impediam de levantar os olhos para ver exatamente todo o desprezo que imaginava que demonstravam por si.

Odiou a estada com aquela gente e se arrependeu amargamente da noite que passara sem dormir, ansiosa pra que o dia amanhecesse e pudesse estar na companhia de gente que não fosse sua família. Sentia-se inferiorizada e ridicularizada. Era um trapo imundo e indigno de merecer atenção por parte de quem quer que fosse daquele lugar. Era como portasse uma doença contagiosa e não pudesse se aproximar deles nem brincar com as outras crianças.