sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O meu Torrão

A poeira naquele torrão de terra era algo com o qual ela já deveria ter se acostumado. Afinal, ali nascera e não conhecia lugar diferente daquele. Com exceção dos dias de raras chuvas, a poeira era uma constante naquela paisagem insólita, assim como o sol que tudo secava e não deixava a horta vingar. Tudo era malnascido, não crescia, pecava. O caruncho atacava as bananeiras e os pés de manga. Dali jamais saíra.

O lugar era para carcarás, para lagartos e animais peçonhentos acostumados a se esconder do sol nas tocas cavadas na ribanceira. A vida existente estava condenada aos espinhos de mandacarus, cactos, tucuns e unhas-de-gato. As árvores eram retorcidas e de verde, muitas vezes, só o pé de pequi.

Ela ficava admirando o pequizeiro por horas. Ele lhe dava sombra e frutos amarelos que eram cozidos junto com o arroz. O fruto tinha de ser mordido com cuidado, pois, dentro do caroço, uma quantidade infinita de espinhos poderiam entrar na língua do apressado e, de tão finos, dificilmente seriam retirados. Perpétua se perguntava de onde aquela árvore buscava água para manter-se verde ante tanta seca. Todo o resto da vegetação era cinzenta. O pequizeiro, além de sempre verde, ainda, produzia frutos.

A água era escassa. A cacimba secava muitas vezes e, por meses a fio, era obrigada a buscar água e encher os potes na lagoa dos Oliveira, lá pra bandas do Centro Velho.

Para adiante de si,  donde o sol nascia, por detrás de sua casa, desde a janela, o que ela via era o horizonte a queimar sob o sol, como se para além existisse apenas o fim do mundo; mesmo porque Perpétua nunca quis ir além dos seus limites. Era longe por demais e sempre lhe disseram que a paisagem para além do horizonte era exatamente igual à que havia visto por toda a vida. Para o outro lado da casa está o Centro Velho.

Para a direita estava a fazenda da viúva Carosina, mulher de poucos amigos e conhecida pela mesquinharia. Dizia-se que era mulher rica por demais e que guardava ouro escondido em potes enterrados no chão, em locais desconhecidos. Não dava nada a ninguém e escorraçava a tiros quem se atrevesse a colher uma manga em sua fazenda. As frutas apodreciam debaixo dos pés. Perpétua não a conhecia e a fazenda ficava a léguas da sua casa.

Para o lado esquerdo, seguia-se por uma estrada pouco mais larga que uma vereda e por onde, raras vezes, passava algum carro de boi. Por esta estrada, a exatas sete léguas, estava o povoado do Clemente. Tratava-se de uma currutela onde seus pais compravam açúcar, sal, soda cáustica e outros gêneros. Quando não tinham dinheiro praticavam o escambo.

A época de derrubar a caatinga, encoivarar os gravetos já queimados, queimar as coivaras, plantar os grãos de arroz, milho, fava, feijão e outros, era-lhe por demais trabalhosa. Não se lembra exatamente da idade em que começou a ajudar o pai e a mãe com aquela labuta. Lembra-se, no entanto, de receber a tarefa de roçar o arroz, extirpando apenas a erva daninha, deixando a moitinha verde e frágil que cresceria e daria pendões, cachos amarelos como o ouro, que seriam, habilidosamente, colhidos por mãos que seguravam uma faca amolada entre os dedos, para cortar o cacho que era jogado no cofo amarrado à cintura. Era a época em que tinha certa fartura e havia algum verde. De resto era seca esturricante.

A roça era plantada quando se aproximava a estação das chuvas. Chamava a atenção a insistência de seus pais em procurar um pedaço de terra, todos os anos, e derrubar a mata, queimar tudo, depois encoivarar e queimar de novo. Tanto trabalho para tão pouca colheita. A melancia era pequena e sem gosto. O arroz plantado, muitas vezes, não era suficiente para abastecer a casa até a próxima estação. O feijão murchava e, não raras vezes, se perdia.

Não havia dúvida, entretanto, que esta era a época em que havia algum verde na paisagem. Tinham algo para se comer. Ela adorava comer as favas úmidas do feijão ainda verde, quando colhidas diretamente da rama. Comia os brotos azedos de cajá que, na época das chuvas, aqui ou ali, se podia achá-los nos tocos do pé que fora cortado. O tucum dava um palmito delicioso, mas, até cortá-lo no meio da moita espinhenta da palmeira, era tarefa difícil e Perpétua não dava conta. Dependia do irmão que, a golpes de facão ou de catana, cortava a toceira espinhenta e limpava o palmito que comiam in natura.

A pesar de tudo, naquele lugar seco existia vida. Muitas delas totalmente adaptadas à seca que podia durar anos. Ali colhia-se a macaúba e dela se fazia o mocororó. A calda daquele coquinho amarelado se soltava depois de ser socada no pilão. Depois era adoçada com raspa de rapadura e enriquecida com a farinha de puba.

A estação da seca durava quase o ano todo. Chovia por cerca de dois meses e, quando os céus eram generosos, três meses. As chuvas, mesmo assim, eram fracas e esparsas. No ano inteiro se colhiam o tucum, a macaúba, o coco babaçu, o mandacaru e a palma. O tucum era colhido com cuidado, dentro da moita espinhenta. O coquinho do tucum podia ser quebrado e comido e a sua castanha branca não era de todo ruim.

O babaçu era a principal fonte de riqueza e era colhido na terra dos Oliveira. Lá havia um coqueiral e lhes era permitida a cata dos cocos que caiam no chão. Os cofos cheios eram despejados nos jacás que o jumento levaria nas costas, subindo a ladeira e, a seguir, o estirão até chegar à sua casa. Muitas vezes, Perpétua acompanhou a mãe a catar o babaçu. Aprendeu, ainda menina, a escanchar no cabo do machado e, com o macete à mão, acertar o babaçu que se abria e mostrava sua amêndoa, com a qual se fazia óleo comestível que substituía a banha do porco, quando esta faltava. Ovo frito em óleo de coco babaçu, servido no velho prato de esmalte, onde já se encontrava o arroz e a fava, era algo que ela muito apreciava.

Tinha a farinha seca e a de puba. A diferença de uma para a outra é grande. Ela sempre preferiu a de puba. Caroçuda e amarelinha. Depois de colocada na boca, tinha-se que esperar os caroços umedecerem com a saliva. Não era para ser mordida. Quem não soubesse da técnica poderia ficar sem um dente ou ficaria entalado com os caroços secos a arranharem a goela, mas era ótima companhia à banana murici, ao cafezinho ralo passado no saco, ao caldo de tatu e a uma nambu assada.

A farinha seca era mais simples, fina e branca. Alguns a preferiam. Ela ficava admirada com a técnica de seu pai ao jogar com a mão a farinha fininha na boca, sem que nada se perdesse no vento. Era questão de pontaria a olhos vendados. A farinha seca era mesmo ótima quando virava angu, no caldo de qualquer cozido. No chambaril, com costela cozida, com galinha e tantos outros.

Engana-se, todavia, quem pensa que havia caldo todo dia, para Perpétua. A galinha só ia para a panela em datas especiais ou quando alguém adoecia. Costela, chambaril... Vixe Maria! Era mais difícil ainda. Só quando seu pai ia ao Clemente, uma vez na vida, e por lá trocava uma dúzia de ovos por meio quilo de osso, quando dava sorte de por lá terem abatido uma vaca magra.

A casa era coberta com palha de coco babaçu e tinha paredes de pau a pique, à custa do barro massapê. O chão era batido e os poucos móveis eram um baú, quatro cadeiras tipo tamborete, cobertos de couro de gado, uma mesa mal talhada, um fogão de lenha, duas forquilhas que seguravam dois potes d’água, a cama velha de seus pais e o velho pilão.

Acima, enganchado nos paus que compunham o teto da choupana, o paiol guardava o arroz ainda sem pilar, o feijão, a farinha de puba, a fava e o milho. O paiol era depósito que logo se esvaziava, depois da colheita da roça, e muitas vezes seu pai foi obrigado a mendigar sementes com os Oliveira, para poder plantar a roça.

Nada vingava direito. O fruto, quando vingava, não era doce. A bagem que segurava os grãos, muitas vezes, era atacada por pragas de gafanhotos, caruncho ou outra praga qualquer. A espiga de milho era pequena e falhada. O caruncho tudo empretejava. O sol logo evaporava a água da chuva e a poeira levantava-se no meio da roça, espalhando-se na palha do arroz e do milho.

Os animais eram magrelos e as crias, quando escapavam da mordida de cobra, eram presas das raposas ou se perdiam no meio da catingueira e nunca mais voltavam. Quando se ia a achá-las já haviam virado carniça, muitas vezes, já carcomida pelos insetos que se alimentavam das carnes depois que os urubus haviam feito sua parte. As pragas de carrapatos, pulgas e pichilingas sugavam tudo o que tinha sangue, inclusive as galinhas.

Tudo estimulava a sua angustia. Pérpetua não falava quase nada. Na sua cabeça, o tormento era constante. As perguntas lhe soavam em alto e bom som. A sua observação era apurada. O futuro seria exatamente igual ou pior que o seu presente, e isto ela sentia na alma. A sua mágoa lhe pesava o coração. Mágoa ante Deus, ante o universo. Não aceitava o fato de ter nascido. Chorava sem que se deixasse perceber.

Nos momentos de maior reflexão, sentia que o ar que lhe entrava narinas a dentro, queimando-lhe o peito oco, como a fumaça do fogão de lenha de sua mãe. O ato de inspirar e expirar o ar chegava-lhe ao ouvido, ressonando alto.

Havia noites em que, no terreiro à frente da sua casa, se deitava no chão, cheio de seixos, de papo pro ar. O contato das pedras a machucavam, na carne das costas, contra as costelas e lhe causavam dor, mas se sentia viva e tocada. Era assim que podia abrir e fechar o olhos ante o firmamento acima de si. Ali ficava observando as estrelas, o Carreirão de São Tiago, a lua de São Jorge e até estrelas cadentes.

O TORRÃO DE TERRA (continuação)

Certa vez, percebeu que uma estrela se movia lenta no céu. Apareceu em um lado do firmamento e seguiu reto para o outro, depois desapareceu. Na outra noite ela a viu novamente. Agora, olhando melhor, via uma outra aqui e acolá. Era difícil de achá-las no meio de milhões de outras, mas, quando as achava, ficava observando por horas a fio até que a estrelinha desaparecesse. Ao perguntar ao pai sobre tal mistério, ouviu que se tratavam de satélites. Nunca tinha ouvido tal palavra e seu pai lhe explicou que eram geringonças que os homens lançavam desde a terra... e mais não sabia ele.

Ante o céu estrelado, permanecia com sua agonia, sua dor, o desgosto pela vida e por tudo que a rodeava. Seus presságios lhe atravessavam a alma como facas incandescentes. Tinha medo do futuro e não suportava seu presente. Sabia que as coisas piorariam para si. Disso tinha certeza. Sabia que estava condenada. Não sabia qual crime cometera ante os homens e qual pecado ante Deus. As lágrimas rolavam pesadas no seu rosto infantil.

A lua, quando cheia, impedia que ela observasse as estrelas, mas a hipnotizava da mesma forma. Ficava imaginando o que seria aquela imensa bola lá no céu. De que se compunha e quem lá moraria. A imagem de São Jorge a matar o dragão nunca a convenceu. Sabia que aquilo era fantasia humana. Queria tocar a lua e achar nela Deus. Iria lhe fazer muitas perguntas e lhe pedir colo. Ia pedir que o tempo voltasse até o momento em que fora gerada. Deus, em gesto magnânimo, impediria que óvulo e espermatozóide se fundissem e ela não seria gerada, jamais estaria ali.

Ela era sensível demais. Mil reflexões se passavam, enquanto observava qualquer cena. Que fosse o observar do firmamento, de uma doninha ou a da miséria em que nascera; sem que esperasse, lá estava na sua mente uma imensa interrogação, que piorava por demais as coisas. Algumas ficavam anos a fio, noite após noite, dia após dia, repetindo-se em sua cachola, sem perceber qualquer resposta. Sentia a alma e o coração inquietos, ante os presságios que lhe advinham.

Tinha dores de estômago terríveis e noites em que não achava o sono. Olheiras se lhe surgiam no rosto e, durante o dia, tinha de encarar todos os seus afazeres. Ninguém a percebia. Nada lhe era perguntado. Ninguém se importava. Ela tinha a nítida impressão de que se sumisse daquela casa, sua ausência não seria sentida tão cedo. Perpétua não reclamava nem pedia ajuda.

Todos já dormiam em suas redes, quando ela voltava para a casa depois de ficar absorta, a olhar o firmamento, a chorar, a pensar e a ter presságios horríveis sobre si mesma. Na sua rede, porém, nada de o sono chegar. Virava de um lado para o outro, pelejava pra dormir, e nada. Na verdade, queria dormir o sonho eterno. Sentia-se só. Era como uma estranha naquela casa, naquela família. Não era uma esquecida, mas uma rejeitada.

Sua mãe fazia questão de demonstrar sua insatisfação para com ela. Por algum motivo desconhecido, ela era odiada por aquela que lhe dera a vida. Seu pai parecia alheio a tudo e era como se ela lhe fosse invisível. O irmão era sarcástico e apenas reproduzia a atitude da mãe. Ele sempre ficava com a melhor parte de tudo. Dava-lhe cascudos, toda vez que ela se recusava a fazer-lhe alguma vontade. Ninguém ia em sua defesa. Jamais teve a piedade de ninguém.