terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A TATUAGEM DO ARANHA


A TATUAGEM DO ARANHA

Depois de anos, me decidi, criei coragem e entrei no Studio de tatoos. Eu escolhi uma enorme, colorida, linda. Uns três meses pesquisando um bom desenho. Algo que fosse marcante, significativo e do qual não me arrependesse jamais.

Achei que seria dolorido, mas nunca imaginei que suaria tanto, que sentiria febre e calafrios no mesmo dia e que se seguiriam por uma semana inteira. Não imaginei que as agulhas eram tão salientes e assustadoras ao serem instaladas no aparelho.

O tatuador, evangélico. Isso mesmo, por mais incoerente que parecesse, aquele moço barbudo e cabelos degringolados, todo tatuado, o tipo maconheiro, era evangélico. E nada tenho contra os maconheiros ou evangélicos. Considera-se “o cara“, “o melhor do planeta“, segundo ele mesmo me informou. Disse-me que falava línguas estranhas quando, em transe, antes do seu dia trabalho, se reunia no mesmo Studio para orar com sua galera. O som foi ligado em bom volume e um rock paulera era o que se ouvia. Decidi registrar tudo em fotos. O tatuador fez pose de roqueiro, botou a língua pra fora, com as mãos fez o sinal do rock e, numa pose só dele, registrou o primeiro momento. A foto registrou a empolgação do tatuador com o motivo do desenho escolhido.

Quando sua mão desceu em direção à batata da minha perna eu espera uma picada de abelha, uma mordida de formiga. Jesus! Lembrei-me de quando meu pai marcava o gado com a sua marca desenhada em ferro que era levada ao fogo e quando estava bem vermelha, fumegando, com a rês amarrada, muito bem presa, queimava-se a pele do animal, geralmente na polpa. A vaca dava coices e esperneava com a dor do ferro quente lhe queimando a camada adiposa. Ouvia-se um chiado da pele queimando e uma fumaça de churrasco evaporava. Quando solta, a rês saia em desabalada carreira, dando coices e balançando a cabeça. A sensação que sentia era a de ferro em brasa queimando minha perna.

A minha dor era tamanha que pedi um maço de papel toalha e mordi com força para não gritar feito uma mulher parindo. Ademais, não dava mais pra voltar atrás. Só pedi a Deus que aquela sessão de tortura acabasse em meia hora no máximo. Eu não podia me mexer, ao contrário, se mexesse, a tatuagem podia desandar, borrar e o resultado poderia ser desastroso e para o resto da vida. Tinha de agüentar até o fim.

Muitas as vezes agarrei o braço de meu amigo, fiel escudeiro, que se ofereceu para assistir à sessão. Ainda bem, eu podia aproveitar para fazer piadas sem graça e pedir-lhe que rezasse. Meus gritos, mesmo presos, podiam ser ouvidos muito além daquela sala. Suava às bicas e sentia calafrios. O tatuador continuava concentradíssimo, num transe sem frenesi. Ansioso, vez por outra, eu pedia para levantar a perna e conseguia ver a tatoo tomando forma, linda e assustadora. Era grande, vermelha e negra.

Duas horas e meia de pura tortura e ele concluiu. Já passara das duas horas da tarde e ele nada comera. Outra tatoo já o aguardava. Ele estava esgotado e disse que iria recusar a próxima, que o cliente teria de entender a remarcação.

Saí da sala como quem acabou de tomar uma besetassil, uma penicilina. Quem já tomou sabe que dói tanto quanto o coice de um jumento. A agulha assusta pela grossura. O líquido amarelado e denso. A dor não é apenas da agulha entrando no músculo, mas também da carne da bunda rasgando para dar espaço ao liquido. Aliás, certa vez me dirigi a um posto de saúde para tomar a bendita. Lá chegando me atendeu uma senhora de certa idade, cara de paraíba. Sim, paraíba tem cara, e você sabe bem qual a cara de um paraiba. Assim como o maranhão, o ceará e todos os demais têm. Eles têm a cabeça chata e enfiada nos ombros, são ancudos e têm sotaque típico. E não falo por preconceito, afinal, sou um deles. Mas a senhora enfermeira paraíba não me causou boa impressão logo de início, e não foi por ser paraibana. A mão era grande demais, a cara era de carranca e o andar de hipopótamo. A dita cuja falava sem parar e avisou:

- Dói mesmo, dói muito. Quem diz que não dói, está mentindo.

Bunda pra cima, constrangedoramente. Não sei se ela também não foi com a minha cara mas deve ter mirado minha nádega enquanto franzia as sobrancelhas. Deve ter levantado a mão em 180 graus, fechado os olhos, descido a injeção com toda a força da mulher paraibana. Deve ter imaginado que estava a quebrar um muro de concreto e que tinha em sua mão uma marreta de alguns quilos. Deve ter pensado que desceria a mão com seu imenso martelo em direção ao bloco de concreto. Me fez sentir a sensação de desmaio. Em seguida, de uma só vez, sem qualquer delicadesa ou preocupação, apertou a injeção. Isso mesmo, de uma tacada só, despejou todo o conteúdo da ampola. Eu mordi a língua para não xingá-la, para não chamá-la de “jumenta". Eu não conseguia me mexer, levantar as calças, me vestir. Fiquei ali, imóvel, esperando que as estrelas desaparecessem. A jumenta ficou falando feito uma arara chumbada. Eu com a bunda pra cima, punhos cerrados, olhos fechados, mordendo o indicador, esperei voltar do inferno. Eu estava desarmado, ainda bem, senão, teria cometido um homicídio. Manquei por uma semana e nunca mais voltei ao posto para tomar sequer um anador.

A dor da tatoo era menor mas havia a sensação de que ela não ia acabar. Um suplício. Tive febre, dor de cabeça, noites seguidas. Seguiu-se uma semana de pomadas, filme de PVC, uma dieta específica e doses diárias de vitamina C para ajudar a sarar.

Mas valeu muito a pena. O resultado superou as expectativas. O tatuador se superou e acho que sabe disso. Olhou orgulhoso o resultado de sua arte. Saí de lá convencido que ele era mesmo “o cara”.