sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O MORRO DA CRUZ


O MORRO DA CRUZ

Sentada na cangalha dura ela se vai no lombo do jegue. Doía-lhe a bunda magra na dureza dos galhos de catingueira que compunham a cangalha improvisada. Doía na carne de quem via. Doía na espinha, nas costelas e no vazio do jegue feinho. Ela magra tísica no jegue mais magro ainda. Canelas se confundindo com costelas de jegue, se diferenciando apenas pela cor da pele clara. Tudo sabia o quanto doía. Subia e descia ladeira com as patas do animal a tropeçar nas pedras e nas raízes secas. Mordia os lábios. Fechava os olhos.

Antes aquela barriga fosse d’água. Antes morressem, ela e aquele que trazia e que a fazia ter a certeza de um futuro ainda mais miserável que o seu presente, além de ser o responsável por enjôos insuportáveis embora de barriga vazia. Seus pés estavam rachados em carne viva. A barriga lhe tirava o fôlego, a fala, a vontade.

E se morresse? Seria tão bom. O descanso eterno. Queria que morressem juntos, ela e aquele que logo seria um sofredor naquele torrão de fim de mundo. Que alívio seria não nascer. Muitas foram as vezes em que, a pensar, imaginava o quanto a natureza fora injusta por ter-lhe deixado nascer. Tantos nasciam mortos, outros morriam ao nascer, outros eram abortados naturalmente ou não. Nascer era uma sentença que, se pudesse, não imporia a ninguém. Se sentia culpada e o peso da barriga era menor que o de sua consciência.

Aquela viagem não tinha fim. Sua visão à frente era turva pela fraqueza. Via a mesma figura de sempre, raquítica e incapaz, a puxar o jegue pelo cabresto. Ele era o culpado por aquela situação. O odiava em silencio. Sabia que ele a odiava em silencio. Nunca o quis. Ele nunca a quis. A vida os obrigou a estarem juntos naquele inferno. O bafo mal cheiroso, os dentes podres, os cabelos fedorentos do sabão de banha de porco e soda cáustica que ela mesma fazia. Foi com repulsa e ânsia de vômito que o recebeu naquela noite quente e seca. Ele veio e lhe possuiu sobre esteiras de palha. O coito foi rápido, bruto, como tinha de ser. Sentiu-se suja, cheia. Sabia que era tarde. Mas era assim que tinha de ser. Nada podia fazer. Não podia rejeitá-lo simplesmente. A entrega foi muda e resignada. O recebeu dentro de si, resoluta, depois de quase um ano de casamento que só ali se consumava. Se manteve calada, morta, dura. Nenhum afeto, nenhum gesto, nenhum suspiro ou gemido.

Ela nunca o quis, ele nunca a quis. Mas, numa provocação à vida, para desafiar a monotonia daquelas noites abafadas, se casaram sabendo que morreriam se odiando. Entretanto, sabia que ele lhe cuidaria. Ele também o sabia. Só tinham a si.

Ela sempre olhou o morro desde sua casa e nunca imaginou que lhe ultrapassaria os seus limites. Não queria ir além. O morro estava para os fundos de sua casa e era o que se via de mais elevado desde lá da sua janela. O que se via além disso, para todos os lados, era o horizonte, o fim das vistas. Nada que valesse a pena. Olhava o céu e não via qualquer beleza, poesia, nuvens. A única coisa que nele via era o sol escaldante que a tudo queimava e lhe sugava a água do solo, a coragem e a esperança.

Não sabia o que esperava, se menino, se menina ou se ambos. A barriga era imponente como o Morro da Cruz avistado desde seu casebre de palha e pau-a-pique. Nunca ultrapassara os limites do morro, mas, subira até o seu cume uma única vez. Olhou a paisagem abaixo enquanto subia. Desde o ponto mais alto olhou em todas as direções. Para trás esta a sua casa, seu mundo, a aridez, sua vida paupérrima. Adiante, para o outro lado do morro, viu a vista. Era exatamente igual ao que já vira até onde a vista dava. Voltou para casa por caminho diferente daquele ao qual subira, porém, ficou intrigada com o fato de não ter encontrado nenhuma cruz. Não tinha cruz no Morro da Cruz.

A gestação foi difícil desde o momento em que se deitou com ele. Não dormia mais. Pensava na sua vida com a barriga, na criança sem futuro, cheia de lombrigas e nos olhos remelentos e famintos a lhe pedir peito. Ela seca e morta de fome sendo sugada por um fruto pecado. Quando a barriga apareceu ela teve de buscar nova posição para dormir. Gostava de dormir de bruços. As demais posições faziam com que seus ossos lhe imprensassem as poucas carnes, o que lhe era dolorido por demais, encima da esteira sobre o chão batido.

Absorta em seu pesadelo, voltou a si depois de um solavanco do jegue ao trupicar das pernas. Ao ver o precipício à sua direita, lá em baixo, muito longe, na vastidão da caatinga seca, ardendo sob o sol, o imenso pé de tamarindo da roça dos Rocha. Viu a casa caiada da viúva Firmina. Tentou ver sua casa, porém, não conseguiu fixar as pupilas. Olhou o precipício abaixo e desejou que o jegue tropeçasse e a jogasse Morro da Cruz abaixo.

O jegue começou a descer a ladeira íngreme rumando para o pé do morro, lado oposto ao via da sua casa. Nunca havia passado dali. Nunca teve vontade de ir além. Ir para aonde? Fazer o quê? Não. Sua sina era ali. Sabia que estava presa àquele lugar maldito. Na miséria nascera, na miséria morreria. Por aquela mesma vereda voltaria depois que a parteira lhe liberasse.

Eles não iam conseguir chegar a tempo. Aqueles solavancos e retrancas iam fazê-la expulsar antes da hora. Sentia as dores e o líquido já lhe escorria pelas pernas.

Para não cair, segurava firme no cabeçote da cangalha. O jegue parou. Ele estava parado de frente para ela e ao jegue. De início não entendeu nada. Viu o rosto surgindo aos poucos por baixo da aba do chapéu de palha furado. Aquele olhar lhe revelou tudo. A expressão era de quem sentia dor maior que a sua. Graças a Deus! Pensou. O dedo polegar no gatilho da espingarda “por fora” com a qual o marido caçava pebas, avuaçãs, juritis, nambus, cobras e lagartos. O polegar puxou o cão da arma e viu a espoleta dourada.

Ele sempre fora tímido, calado, assim como ela. Sabia que tinham a mesma natureza. Gostava de pensar que eram gêmeos que se odiavam. Sozinhos no mundo eram obrigados a conviverem e se cuidarem. Não sentiu medo. Sentiu gratidão. Nunca achou seria grata a ele por alguma coisa. Mas naquele momento queria abraçá-lo antes da partida. Não percebeu outro senão o mesmo homem que a acompanhara por pouco mais de dois anos e com o qual se deitou uma única vez naquela aridez dos infernos. Mas percebeu-se igual a ele. O tiro seria de misericórdia. Não era a hora para qualquer reflexão, preferia não pensar. Mas seu coração bateu feito um bumbo e sentiu amor. Momento feliz aquele em que descobrira o amor. Sentiu-se verde. Esqueceu todo o sofrimento. Aquele homem a amava. Sim, ele a amava. Amou-o. O momento do coito lhe veio à mente em questão de segundos. Dessa vez não sentia nojo. Em seu delírio desejou entregar-se a ele, dessa vez com desejo e ardor.

Voltou do seu delírio ao ouvi-lo dizer:

- Vou logo após de vocês.

Mais nada foi dito. Viu a espingarda sendo levantada pelos braços franzinos e suados. O olho fazendo a mira. O cano colocado tão próximo da sua cabeça que podia desviá-lo com a mão. Se manteve intacta, agradecida. Olhos abertos esperando ver a pólvora sendo queimada e o chumbo grosso saindo de dentro do cano da velha espingarda. O jegue respirava ofegante e ela torceu para que não atrapalhasse a mira. Ouviu o estampido e se foi.

Conta-se que no velho Morro da Cruz foram encontradas quatro ossadas, três delas com marcas de chumbo nos rostos. Agora existem quatro cruzes no Morro da Cruz. Ninguém em carne sabe exatamente o que ocorreu, mas, todo mundo concorda que o jegue também merecia a sua cruz.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

DOR SEM DÓ




Dor Sem Dó


Ele chora lágrimas
nunca vistas,
não contidas,
escuras,
suas.
Só o seu coração,
a sua lágrima.
Desce quente, rolando...
deixando o caminho quente.
Cai só,
com nariz arrebitado,
sem soluço para acompanhar.
Provocada com dor pela dor sem dó,
com e sem nó.
Só ele sabia o porquê da dor,
da lágrima.
Não queria colo, interferência,
não queria compartilhar.
Só, ele só queria chorar.


W. Lucena

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A MOÇA FEIA DO IORGUT


Eu me aproximei curioso do balcão. O estabelecimento era meio sem graça mas era novo aquele balcão ali. A galeria se impunha e não era de vender qualquer porcaria. Confiei e fui. Uma moça feia veio me atender.

Eu lhe perguntei:

- O que se vende aqui?

Ela me repondeu:

- Iorgut.


Isso mesmo, a moça me respondeu iorgut. Mas não foi iorgut, foi I-O-R-G-U-T. Bem pronunciado assim. Orgulhosamente bem pronunciado. Ocorre que em meus ouvidos aquilo soou como um sino rachado. Ocorre que a vibração daquele sino rachado me causou tal ímpeto que não pude resisti e ousei corrigir a moça feia, haja vista, ser vendedora de IOGURT. Peguei o cardápio e lhe mostrei a palavra escrita: IOGURT. Informei-lhe que o seu R estava na sílaba errada. O tempo fechou na cara da feia. Rugas sisudas entre as sobrancelhas surgiram de repente e vi as suas costas quase que simultaneamente. Eu não me deixei intimidar e lasquei outra pergunta, mesmo que a dita me estivesse de costas.

- Você não gostou de lhe ter corrigido, certo?

A moça virou-se e agora, quase que por entre os dentes, diga-se, feios, me respondeu:

- Não gostei mesmo. É que eu odeio ser corrigida, aliás, eu odeio quem me corrige!

Acredita? Assim mesmo. Foi assim que ela me respondeu. Eu tentei me conter mas não resisti e sorri. Sorri e sorri. A moça virou-me novamente as costas. Eu me retirei sem consumir o seu iorgut.

Afinal a moça não era apenas feia nas fuças. Afinal eu também sou nenhum craque no bom e velho português. Afinal não sou mais nenhum belo. Mas, afinal, onde vamos parar se a moça fala iorgut e ainda é feia? Se a moça fosse bonita, afinal! Mas não, ela era mesmo feia. Sim, porque as moças bonitas podem tudo, essa é a regra. Moças bonitas chegam onde quiserem. Muitas vezes elas nem querem, mas chegam a algum bom lugar. Não importa quão vazias elas sejam. Dão pra quem quiserem. As moças feias, geralmente são decentes e se orgulham de sua virgindade. Depois de casadas, quando casam, ainda anunciam aos quatro ventos: Eu casei virgem! No fundo não passam de bruacas mal amadas, fulas da vida por não terem nascido loiras e com aquela bunda de tanajura e não terem dado mais que paca da mão branca. Paca-da-mão-branca, isso mesmo. Porque? Bem, dizem que as pacas dão muito. Muito mais que as ratas. No entanto se a paca tiver a mão branca, naturalmente branca, meu amigo... Ela dará mais que as demais pacas. Pelo menos é o que dizem. Quem diz? Sei lá!

Acho que a moça feia nunca mais falou iorgut. Nunca experimentei o iorgut da moça feia. Mas passei na frente do balcão algumas vezes. Nunca mais vi a tal moça. Deve ter se demitido ou foi demitida a bem a língua. Será? Certo é que eu agora, toda vez que vou tomar iorgut, me lembro da moça feia.

O CAFÉ DO JACU

Sai com ares de novo rico pela cidade e decidi comer um risoto em um restaurante bacaninha, da moda. Os pratos do estabelecimento levam a assinatura de uma chef famosa e, não sei se por causa disso, o risoto é mesmo uma delícia. A musica é agradável e a mesa é bem posta. Simples, mas, bem posta.

A mesa era baixa, quase na altura do chão mesmo. As poltronas em couro marrom, eram grandes e profundas, de pernas pequenas, nos fazendo ficar com os joelhos nos ombros, quase de cócoras, porém, imponentemente convidativas. O garçom era jovem e esguio e, muito simpático. A musica era boa aos ouvidos e da janela grande de vidro podíamos ver a movimentação na rua e quem entrava e saia do local já que estávamos no andar superior.

Um vinho espanhol bem que podia ser melhor, haja vista, o preço. Uma água com gás intervalava os goles e fui tomado de uma alegria sem sentido, dessas que se vão quando o teor alcoólico baixa. Passageira como toda alegria o é. Não que eu seja infeliz. Não é isso. Sou até bem feliz, mas a alegria não é eterna. A felicidade sim, pode até ser. Mesmo que você não esteja alegre você pode se perceber feliz. A felicidade é algo mais profundo e duradouro. É aquela sensação de está melhor que ontem. É reconhecer que a tristeza é momentânea, como a alegria também. Mas fica aquela certeza do auto-conhecer-se.

O risoto chegou em prato enfeitado sem exageros. Um ramo de verdura por sobre o arroz marrom, quase preto, por causa do funghi, creio eu. O cheiro subiu às narinas e o estômago pediu pressa. Cada colherada foi muito bem saboreada e o palato se inchava quando era lavado com o vinho tinto encorpado.

A conversa estava agradável, de bom nível, porém, falávamos de frugalidades. Acho que melhor do que as frugalidades, só mesmo falar dos outros. Mas não falávamos de ninguém. Mas concordo com quem disse que melhor que falar dos outros, só falar mal dos outros.

Percebi que a cabeça estava meio zonza, mas nada que me tirasse o sentido de direção. Mesmo assim, terminada a refeição e o vinho, decidi pedir ao simpático garçom, um café. Um cafezinho expresso é o meu vício assumido. Não sei se quero outro vício, mas agora que estou na meia idade, a idade do lobo, penso que preciso de emoções mais fortes. Experimentar mais. Ousar mais. Mas não quero me viciar. Não quero ser dominado por uma substancia. Mas não vou me precipitar. Vou aposentar antes.

O garçom me informou que o estabelecimento estava trabalhando com uma nova espécie de café e me perguntou se eu não gostaria de experimentar. Achei fantástica a idéia. Café é o meu fraco e experimentar um café de qualidade naquele momento era ideal para fechar bem aquela agradável noite. Me informou que se tratava da espécie jacu board. Eu heim? Jacu board? Isso mesmo! Jacu board era o nome do café. Pedi logo dois, um para mim e outro para meu amigo. O moço se ausentou para providenciar o tal café e fiquei especulando com meu amigo. Jacu é ave e eu conheço. É pouco menor que uma galinha, mas sabe voar. É comestível. Eu comi muito jacu quando menino. Calma que eu explico. Nasci na roça. Meu pai era caçador. Matava tatu, cotia, viado, nambu, caititu, paca, e muito mais. Naquela época nem se ouvia falar em ecologia. Jacu a gente comia assado, frito, cozido... pra deixar bem claro.

Eu já tinha ouvido falar de uma espécie de café que era comido por uma espécie de esquilo... Australiano? O bicho comia o grão do café e as fezes eram catadas e depois de processados, tinha-se um dos melhores cafés do planeta. Me lembrei vagamente dessas informações e, me lembrei que ouvira também que tratava-se de um café caríssimo. Imaginei que o processo seria o mesmo, porém, o animal a digerir o grão seria o jacu.
Ao retornar com os cafés, solicitei que o garçom me informasse o porquê de tal nome. Ele explicou exatamente o que eu já suspeitava. Era isso mesmo. Em Minas Gerais o jacu come o grão do café e ao digeri-lo, toda a acidez do grão é retirada pelo suco gástrico do papo do bicho. Quando defecados, os grãos são recolhidos e processados. Informou que se tratava de um dos melhores e mais apreciados cafés do país. A ficha começou a cair. Nada que seja tão especial custaria o preço de um expresso normal. Disse que o estabelecimento estava a vender o tal jacu board. Ao me informar o preço do pacote de meio quilo quase caí de costas.

O cafezinho que me descia garganta abaixo me parecia ter o mesmo gosto de um bom expresso, porém, nada além disso. Com sorriso amarelo perguntei qual o valor daquele cafezinho que tomávamos. Jesus! Não podia imaginar que uma xícara de cafezinho pudesse valer tanto quanto ouro. Mas já era tarde. Eu já estava com a xícara quase vazia. Mantive a pose e disfarcei o meu embaraço. Fui para casa satisfeito. Paguei, mesmo que no cartão de crédito, o café jacu board. Não é todo dia que se toma café de merda de jacu.

Wanderley Lucena